“Sou feliz de ter feito essa mudança da cidade para o mato”
Luisa Matsushita, vocalista do Cansei de Ser Sexy, conta como há dois anos vive em uma casa de 12 m²
“Eu nunca me considerei uma pessoa do mato. Daquelas que curtem trilha em floresta. Então naturalmente nunca pensei que seria assim. Mas descobri que esse personagem de pessoa do mato nem mesmo existe — cá estou eu vivendo no mato e não sendo esse clichê.
Nasci em Campinas e fui para a capital paulistana aos 16. Estudei e trabalhei com moda por um tempo até iniciar o Cansei de Ser Sexy, quando fiz 19 [o grupo fez sucesso internacional, deu uma pausa nos últimos cinco anos e voltou aos palcos em 2019 no Festival Popload]. Eu e as meninas gostamos muito uma das outras e conquistamos os fãs mais incríveis. Eles são inteligentes, esquisitões e muito presentes. A banda não acabou; a minha vida é que foi para outro extremo.
Em 2015, fiz uma residência artística na Amazônia, dentro da floresta, para pintar durante três meses. Comecei também a tomar ayahuasca, o que desencadeou várias mudanças dentro de mim e na minha rotina: me aproximei de conceitos como o minimalismo e gosto do livro ‘Goodbye Things’, do Fumio Sasaki, sobre minimalismo japonês.
Mas a minha grande mudança veio depois de me interessar por bioarquitetura e estudar no The Earthship Biotecture Academy +, lá no Novo México. Depois de me formar no programa, eu me voluntariei na construção de duas cabanas em uma região no extremo norte da Argentina. E passei 30 dias nesse lugar, com outros 22 voluntários.
Ali mora um povoado indígena, os Wichí. Nem adianta dar Google neles, porque são mais antigos do que os países em que vivemos e você não encontrará tudo o que eles são nessa pesquisa. Mas posso resumir como um povo muito dedicado ao artesanato. Nós construímos duas casas sustentáveis lá.
Aquele foi o lugar mais pobre em que eu já estive, mas também o momento mais feliz pelo qual já passei. A situação era adversa e absolutamente todos tiveram contaminação alimentar. Mas houve um esforço que não era pautado pelo dinheiro. E ficou para mim essa importância do trabalho em conjunto e como ele pode se materializar em coisas.
Vida nova
Quando voltei para casa, em São Paulo, me deparei com o apartamento de 98 m². Eu não usava todo aquele espaço e não precisava de tudo aquilo. Vendi meu apartamento e acabei meu namoro. Aprendi a dirigir, tirei carta. Joguei tudo para cima e fui para uma nova cidade.
Hoje moro próximo a Garopaba, Santa Catarina, sem conexão alguma. Foram várias as vezes em que me perguntei ‘o que eu estou fazendo’? Agora eu respondo ‘going with the flow’. Mas, quando cheguei, fiquei ainda mais deprimida do que já estava em São Paulo. Aqui eu não tinha amigo, não tinha nada familiar. E, quando você não tem ninguém, você fica ainda mais estranha. E outro ponto me incomodava: se você tem tudo nas mãos para ser feliz e se dá conta disso, você sente medo. Eu me cobrei, me culpei e senti muito medo.
Eu sei. Conto essa história de um lugar de privilégio, mas todos têm as suas dores. E as minhas eu senti de uma só vez. Foi assim que decidi começar a yoga e a bioconstrução e fui parar nos estudos de permacultura+. E, a partir desse movimento, tudo começou a andar mais junto — o emocional, o físico e o espiritual. A vida está melhor. Eu desapareci e a razão para voltar e contar tudo é porque isso me fez bem.
Depois de quatro anos morando aqui, a minha rotina se ajeitou. Acordo às 6h30 todos os dias e faço jejum intermitente pela manhã. Vou comer só no almoço porque ganho tempo na primeira parte do dia. Pratico a minha yoga, surfo às vezes e manejo as minhas plantas nesse horário. Arrumo as hortaliças e olho as sementeiras porque planto de acordo com a biodinâmica das coisas+, respeitando o tempo delas.
Eu mesma colho e faço meu almoço vegano. Depois, passo um tempo com o Fabinho, que é meu gato. Ele está comigo desde o começo. Hoje já tem outra, a Rebeca Kelly, mais nova. Mas, claro, o Fabinho segue preferido. A minha vida não tem rotina, mas é cheia de manutenção. Eu uso um banheiro seco, por exemplo, então mudo a serragem, mexo na composteira. Moro assim, neste barraquinho de 12 m². Parece pacato, certo? E realmente é.
Hoje eu sinto que, depois do perrengue da depressão, veio a maturidade. E agora eu busco uma harmonia de todas as minhas facetas. Não as nego e deixo tudo vir. Aqui, do mato. Me chamam para discotecar e eu sigo dando close, mas hoje meu trabalho mais bafo e fino é o cultivo de sementes crioulas. Esse é um projeto deque faço parte por meio do Multiplica Sabedoria. A ideia é preservar essas sementes — que não têm pesticidas, são adaptadas ao clima local e são mais nutritivas do que as outras — e conscientizar os agricultores dessa importância de guardá-las [bancos dessas sementes ficam espalhados pelo país, com os chamados guardiões de sementes, para garantir que os produtores rurais não sofram com mudanças climáticas drásticas, como a falta ou o excesso de chuva]. Nós levamos essas sementes originais e os incentivamos a colher e manter esse ciclo de preservação.
Com esse grupo impulsionamos também ações como a Comunidade que Sustenta a Arquitetura. Esse incentivo cria pontes diretas entre o produtor e os compradores. Nós tiramos os intermediários das relações. Afinal, por que dar dinheiro para o supermercado se você pode pagar melhor o seu fazendeiro? Além disso, esse método traz entre muitas coisas um pouco mais de calma, porque os produtores já têm a certeza de que aquele produto será comprado.
Eu sou feliz de ter feito essa mudança da cidade para o mato, não prolongando-a para o futuro, como as pessoas costumam prometer. Me sinto alegre aqui. Hoje eu sou menos vulnerável ao sistema porque tenho água, comida e esgoto próprios. Não dependo de muito e meu impacto é menor. Acredito que essa autonomia é mais importante do que o conforto. E isso me traz alívio quando eu me deito à noite.”
Depoimento a Gabriel Monteiro