Coluna do Marcello Dantas: 'Os grandes momentos da vida são espasmos' — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Mal passado

A grande evolução que podemos imprimir em nossas vidas é nos desconectar de um mau passado e buscar um novo ponto de equilíbrio — ao ponto, bem temperado, ou mal passado, como prefiro

17 de Agosto de 2020

Talvez o maior impacto que todos sentimos em 2020 foi a mudança da nossa percepção do tempo. Se antes não tínhamos tempo para nada, repentinamente passamos a tê-lo para fazer nada. Tempo é uma das mais fantásticas abstrações do homem. Sabemos contá-lo mas nunca conseguimos entender o seu sentido de forma absoluta, um fenômeno essencialmente relativo.

Até 2019 a vida era marcada pelos eventos que preenchiam os nossos calendários, como marcadores que relacionam contagens progressivas e regressivas aos acontecimentos que norteavam as nossas ações. De uma hora para outra, todos os marcadores desapareceram e o tempo, que era feito de eventos, virou vento. O que sempre marcou nosso deslocamento no espaço passou a ser uma questão de permanência dentro de um mesmo espaço. Os dias tornaram-se contagem de desacontecimentos. Nos restou vivenciá-lo enquanto fenômeno, meteorológico, sazonal, os tempos de cozimento e os fluxos do dia. Nos distanciamos de um mau passado, no qual o tempo se manifestava mais contundentemente como aceleração e velocidade. Enfim desaceleramos.

“Falar sobre música é como dançar sobre arquitetura” é uma das citações cuja origem mais se questiona, sendo creditada a diversos autores como Frank Zappa, Martim Mull e Laurie Anderson. O que importa, porém, é que às vezes as palavras são inadequadas para converter as ideias que percebemos. Se não há como dançar sobre a arquitetura, é possível introduzir o tempo dentro dela. O eco de um espaço é a mais linda manifestação disso. Quando se edifica uma construção que produz eco, constrói-se o tempo dentro do espaço e que só pode ser revelado por meio de uma ação sonora dentro dele. O tempo é um potencial que se revela a partir do ponto de um observador; é a percepção que o transforma. Einstein que o diga.

Os grandes momentos da vida são espasmos: nascimento, sexo, morte, amor e decisão. Vivemos entre espamos, cíclicos, irregulares e fluídos

A intenção de transformar a percepção em narrativa linear nos distancia da plena apreciação do presente. Esta condição de viver sem luz no fim do túnel, porém em paz, é algo que comecei a entender melhor neste ano. Um dos ensinamentos da Yoga é que para alcançar o equilíbrio é preciso focar no presente. Muitas das nossas neuroses são causadas por uma melancolia nostálgica ou pela ansiedade sobre o futuro. Lugares da mente que deslocados do momento presente nos levam ao desequilíbrio. É impossível estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Apesar do triste cenário, a oportunidade que este momento nos proporciona é a capacidade de observar o tempo de forma diferente, com uma medida menos cronológica e mais espasmódica. Todos os grandes momentos da vida são espasmos: nascimento, sexo, morte, encontro, alucinação, respiração, amor e decisão. Vivemos entre espamos, cíclicos, irregulares e fluídos.

O que fazer com o tempo consagrado pelo hiato imposto pela pandemia é a pergunta que estamos todos fazendo. Neste ponto, houve um surgimento de mentes artísticas, convergidas pela prática criativa, seja na cozinha, na folha em branco, na oficina, as pessoas que antes observavam a arte se aventuraram a experimentar fazê-la. Isso desenha uma nova linguagem para a dinâmica da relação artista e público. Como Lawrence Weiner previu há mais de 50 anos, um dia a arte nem precisará ser feita, será apenas uma história ou uma receita para ser compartilhada.

O tempo sem as coisas é o tempo do vazio fértil, que pode ser preenchido pela mente. O tempo sem movimento é a espera. Isso me fez lembrar de uma frase de Samuel Beckett sobre a peça “Esperando Godot”, quando indagado porque o personagem Lucky (Sortudo) tinha esse nome ele responde: “Eu acredito que ele seja Sortudo porque ele não tem mais expectativas”.

A grande evolução que podemos imprimir em nossas vidas é nos desconectar de um mau passado e buscar um novo ponto de equilíbrio que não seja nem quente nem frio, nem lento nem rápido; ao ponto, bem temperado, ou mal passado, como prefiro.

There is more to life than simply increasing its speed.”

“A vida merece algo além do aumento da sua velocidade.”

? Mahatma Gandhi

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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