‘A realidade da imagem não é a do fato’
Como interpretar uma fotografia e descobrir o que ela traz para além do que se vê? O fotógrafo e professor Boris Kossoy fala das técnicas e conceitos que desenvolve desde os anos 1980 e que estão em seu novo livro
A máxima de que uma imagem vale mais do que mil palavras não faz tanto sentido. É o que diz o fotógrafo e historiador da fotografia Boris Kossoy. “São muitos os códigos a serem decifrados, muitos enigmas a esclarecer, mas é justamente nessa complexidade que reside o desafio e o fascínio das imagens”, escreve em seu novo livro, “O Encanto do Narciso – Reflexões sobre a fotografia” (Ateliê Editorial, R$ 68).
No lançamento, o professor titular da Universidade de São Paulo faz uma espécie de síntese de sua obra teórica de análise fotográfica e, por meio de textos curtos e independentes, abre caminhos para se observar as imagens de maneira mais reveladora. Trata ainda de fenômenos contemporâneos como as selfies, daí o “Narciso” do título.
Boris lançou seis livros teóricos ao longo de sua carreira. Nos anos 1970, seu olhar atento fez com que o então jovem professor questionasse a história da fotografia escrita a partir da França. Em seu livro de 1976, “Hercule Florence – A descoberta isolada da fotografia no Brasil (Edusp, 2020), ele documentou a invenção paralela da fotografia em território brasileiro (a partir de 1833) pelo inventor francês Hercule Florence, que viveu no Brasil por 55 anos. O livro foi traduzido para quatro idiomas.
O paulistano ostenta ainda uma produção fotográfica centrada no realismo fantástico, corrente estética que mistura realidade, sonho, ficção. Suas fotos figuram em coleções permantentes de instituições como o MOMA, em Nova York, a Bibliothèque Nationale, em Paris, e na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Confira a seguir a conversa com Gama.
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G |No seu novo livro você desconstrói algumas ideias relacionadas à interpretação fotográfica. O que você tem a dizer quando alguém fala que “uma imagem vale mais do que mil palavras”?
Boris Kossoy |Para o estudioso das imagens eu não acho que seja possível a pessoa aceitar essa ideia sem questionar. Se você não conhece o contexto e não sabe dos fatos, essa imagem não substitui mil palavras. Por outro lado, ela também não é ilustração desse conhecimento, como normalmente se quer que seja. Mas o que ela é? Ela, juntamente com o texto, com a leitura, com a cultura, com o conhecimento, ela se compõe. Então é uma composição. Na pintura dos grandes mestres por exemplo há certos detalhes que você só percebe se tem conhecimento daquela época, dos costumes. As pessoas ficam bravas quando eu digo que não existe leitura da imagem. Eu não acredito em linguagem fotográfica. Linguagem vem de língua, da palavra escrita, da comunicação verbal, e a comunicação pela imagem é outra. O não-verbal não se lê, apenas se vê e se busca compreender.
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G |Então você não acredita em linguagem fotográfica e em leitura da imagem?
BK |Não. Acredito em interpretação da imagem e em expressão, mas não leitura. Tem gente que fala ‘uma frase visual’ – um absurdo. As pessoas vão no museu esperando que as obras lhes digam alguma coisa. A obra não vai falar nada, tanto não estamos falando de linguagem. Isso é ser um pouquinho chato também, é pegar no pé. Mas faz parte desse exercício de compreensão da imagem quanto uma entidade que pode ser independente ou dependente da palavra.
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G |Você diz nos seus livros que não é possível ler uma imagem. Mas de alguma maneira seu novo livro e os anteriores ensinam essa “leitura”.
BK |Eu falo de análise iconográfica e de interpretação iconológica. Isso não é uma leitura, é uma pesquisa. Quem foi o autor, em que época se deu essa foto, onde que nós estamos, que rua é aquela, que campo é aquele, que bosque é aquele. Quanto mais precisa sssa identificação, melhores elementos ela vai nos trazer para uma compreensão interior [da fotografia], que eu chamo de realidade interior. É o estudo das imagens para além da superfície, além do plano, na esfera das mentalidades, nas ideologias, no conhecimento.
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G |Você diz no livro que muitas vezes o fotógrafo registra algo e nem se dá conta. Poderia falar um pouco disso?
BK |Você pode ter elementos nessa imagem que são secundários em relação ao tema principal. Você vê, lá no fundo, uma placa de rua, do outro lado um anúncio publicitário de um filme que está passando. Você vê certos elementos ou vestuários, a marca de um automóvel e pode determinar o ano aproximado, ou quase exato, da fotografia. Vai cercando com esses elementos secundários, uma série de vestígios que podem ser decisivos para a compreensão do tema principal. Essa pesquisa é sempre fascinante. Então a gente lembra do filme “Blow-up”[1966, Michelangelo Antonioni], em que o fotógrafo não sabia que estava fotografando um crime. Mas de repente, ampliando, ampliando, no detalhe aparece uma mão com uma arma.
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G |O deep fake, uma inteligência artificial usada para fazer montagens, é tratado como uma novidade ora divertida, ora perigosa quando lida com fatos. Como você relaciona esse fenômeno com a maneira como pensa a verdade na fotografia?
BK |Você está falando de uma [antiga] fantasia que já não é mais uma fantasia, que se tornou realidade. Para mim o futuro da fotografia é uma representação 3D de alguém com memórias implantadas. Em um dos textos do livro eu falo disso, onde de repente uma pessoa que morreu há 15 anos ressuscita. Imaginou que horror? Ela ressuscita e está falando com você numa entrevista.
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G |Não parece tão distante.
BK |Nada! São como androides companheiros que fazem o trivial, mantém uma relação, uma conversa. Eles nunca vão te contrariar, vão ser sempre legais em todos os sentidos. De repente, essa figura vai estar falando para você o que ela pensa sober as coisas pessoalmente ou através do vídeo. Já imaginou se isso chega a acontecer do ponto de vista ético e se as pessoas gostarem disso? Isso que eu estou falando parte da extração de uma fisionomia, de um modo de pensar, de uma série de coisas que identificam um indivíduo. A fotografia tem essa trajetória, que vem lá de trás. No final do século 19 para o 20 descobriram o uso da fotografia como controle social.
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G |Se a gente compara texto e imagem, quem é mais verdadeiro em relação ao fato na sua opinião?
BK |Nenhum dos dois. Sempre existe um acento naquilo que a gente escreve, seja estético, seja ideológico, um modo de pensar interior que se acaba projetando para fora. Se você está descrevendo um fato social, comentando um acontecimento então sempre vai entrar uma questão política. A subjetividade sempre vai estar presente.
Se você não conhece o contexto e não sabe dos fatos, essa imagem não substitui mil palavras
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G |Suas fotos e estilo, que você enquadra no realismo fantástico, são um exemplo de que a fotografia não é uma representação literal dos fatos. Quando começa o interesse nesse estilo de fotografia?
BK |Eu tinha uns 12, 13 anos e era muito fascinado pelos óvnis. O interesse nos discos voadores foi o meu primeiro contato forte com o jornalismo. Me lembro muito bem de uma matéria super famosa que saiu na revista O Cruzeiro [que durou de 1928 a 1975], com muitas fotos de um disco voador que estava sobrevoando a Guanabara, em volta da Urca, da Gávea. ‘Quer dizer que os discos voadores existem mesmo!’ Por que existem? Porque saiu na revista a fantasia do disco voador como um fato, um fato histórico. Acho que o ímpeto inicial para o meu caminho para o realismo mágico tem início nesse momento do disco voador. O documento e a ficção ficaram na minha cabeça desde cedo. Depois de pensar muito sobre isso e fazer fotografia durante inúmeros anos, isso acabou se tornando um mote para eu estudar profundamente numa perspectiva acadêmica, teórica, a natureza da fotografia, a sua essência.
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G |Há uma construção nessa sua série do realismo fantástico, uma intenção de ser ficção?
BK |Não, há uma intenção de provocar em torno da ideia do documental. A série Viagem pelo Fantástico, que resultou em meu primeiro livro de imagens, é uma construção assim como a fotografia documental. Porque o documental decorre da ideia de verdade, mas a palavra ‘verdade’ na fotografia é uma ficção documental, uma verdade relativa. ‘Es como un espejo roto’, tem mil pedacinhos quebrados e todos são verdade.
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G |Daria para confiar em você como fotojornalista?
BK |Acho que daria para confiar porque todos os fotojornalistas escolhem um ângulo, uma posição, se ajoelham, se abaixam, se levantam, sobem em uma cadeira. Dizem ‘isso não é manipulação’, claro que é! Você está construindo a segunda realidade. A primeira está ali, aconteceu, é o momento do ato ou do fato ocorrendo. A segunda é a realidade da representação, que nós tomamos como um documento. Fotografia não é só um registro. O registro não acontece de forma autônoma, ele é produto de um processo criativo e construtivo. A fotografia não é a realidade, ela não substitui a realidade, mas ela informa quanto mais cultura e repertório tiver o receptor. A aparência é a matéria-prima da fotografia e nisso você engana, promove ficções, mascara fatos, rostos e olhares. E tem o extraquadro. É aquilo que não está lá, mas que influi diretamente no que você está vendo. Aquilo eu tenho que descobrir, que é o contexto e os fatos que não conheço.