Coluna Letrux: Abraça o tempo — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Abraço o tempo

Não sei quando começou, mas uma hora não mais cabia no colo da minha mãe

01 de Abril de 2020

Réveillon de 1995, talvez. Estou prestes a fazer 13 anos. Meu pai dá uma de suas famosas festas na casa tijucana com piscina. A família está toda presente. Depois da meia-noite, vamos entrar na piscina com roupa e tudo, é a tradição. Não sei o que está acontecendo comigo; inferno astral, diriam pessoas místicas, já que meu aniversário é daqui a cinco dias. Mas tem um vulcão inédito aqui dentro. Vejo minha família: avós, avôs, pai, mãe, irmãos, primas, primos, tenho um estalo no esôfago e desato a chorar. “Todo mundo vai morrer”, repito baixinho. Subo correndo para o quarto da minha mãe, e uma prima querida, mais velha, de Cachoeiro de Itapemirim, vem me consolar. Não consigo nem explicar o que estou sentindo, mas ela pesca algo e diz coisas bonitas, vou respirando e me acalmo superficialmente, mas internamente já era. Todo mundo vai morrer, eu inclusive, e agora seria assim que eu viveria a vida, com essa certeza óbvia, mas que talvez tenha demorado um tanto pra bater. Há pessoas que lidam com a morte ainda crianças, e eu me pergunto se isso é pior, pelo quão efêmero foi a relação com tal pessoa que partiu, ou se crianças lidam com o mistério de maneira muito mais sagaz que a gente.

Ainda me sinto criança. Os pentelhos cresceram, os traumas idem. Mas ainda vejo a fila do banco e não consigo acreditar que preciso ter uma postura ereta e aceitar aquilo. Balanço meu corpo, quero enfiar a cara na saia da moça na minha frente, quero correr em volta da lixeira e competir com essa outra criança que pintou aqui agora e, mesmo sem saber seu nome, já sinto que somos melhores amigas para sempre.

Não sei quando começou, mas uma hora não mais cabia no colo da minha mãe. Me dói lembrar qual foi a última vez que me carregaram. De repente lá estava eu já com quase 2 metros, que absurdo. Deveria demorar mais. Mas não. Ontem meus sobrinhos nasceram, eu literalmente pisquei e agora um já fala de namorada e o outro vê filmes de terror, já criticando cenas. Que raio.

Ainda que seja triste pensar que o auge da minha mente vai ser o declínio da minha pele, eu abraço o tempo, aceito seguir, luto contra a nostalgia que vez ou outra tenta me enlaçar

Fui criança curiosa, um tanto quanto chata na fase dos porquês, sem dúvida. Queria explicações, mas não era exigente também. Se fossem criativos, eu caía como patinha, como ainda caio, inclusive. Há coisas que nunca mudam. Ainda sou a mesma. Sinto, e é comprovado por psicanalistas, que nossa personalidade é formada do zero aos 7 anos. Portanto, que precioso cuidar de uma criança, apresentar qualidades, levar pra passear, mostrar arte, debater diferenças, que cabecinhas lindas e abertas e prontas para enfrentar esse mundo que MEUDEUSDOCÉU, viu?

Crianças são mais próximas da morte do que a gente. A gente cresce e vai criando cascas, manias, loucuras, neuroses. Bebês acabaram de nascer, ainda devem lembrar do “”””outro lado”””””. Eu rio disso mas também me arrepio. Até que se saibam, ninguém sabe de nada. Pois. Amo quando criança solta uma pérola espiritual do tipo “eu lembro quando eu vim aqui e a casa era de outro jeito” e constata-se que é a “reencarnação” da avó, umas coisas assim. Sei diversas histórias. Fico ultrabolada e mexida. E tenho um respeito imenso por essa minigente.

Toda vez que fico doente é quando estou há muito tempo sem fazer minhas predileções da infância. Basta eu não ir à praia por mais de mês, e rolar da areia para a água e da água para o céu, que adoeço um tanto. Era uma criança que amava miniaturas, criar minimundinhos, minicasinhas, passava horas inventando diálogos, resgates, paixões, viagens espaciais. Estou com 37 anos e, vez em quando, ainda preciso fazer isso. Deitar na cama e pensar em minimundinhos de loucura em vez de estudar economia ou investimentos no banco. Eu deveria fazer isso para me preparar, talvez uma hora faça, mas ainda preciso deitar e delirar como aos 5. Isso me ajuda a enfrentar o megamundão e suas contas, débitos ou créditos, engajamentos sociais, responsabilidades afetivas e por aí vai. Não reclamo: há prazeres e sabores e pensamentos que só a idade me traz. Ainda que seja triste pensar que o auge da minha mente vai ser o declínio da minha pele, eu abraço o tempo, aceito seguir, luto contra a nostalgia que vez ou outra tenta me enlaçar.

Lá no infinito das noites de alerta, “todo mundo vai morrer”, lembrar que viemos de outra morte, talvez. E os ciclos são emocionantes e suas fases são todas cheias de delícias e dores. Abraçar. O presente, essa pele, essa mente, esse corpo, esse trauma, essa falta de colágeno, abraçar. Mas não esquecer jamais do abraço mental, interno, telepático e terapêutico na criança interior. A gente só cresceu. Mas ainda é.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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