O filme que ninguém quer ver
Diretora reflete sobre fazer um filme que trata de um tema difícil mas necessário: exploração sexual infantil. “Em nosso lugar de privilégio, lidar com a dor do outro é o mínimo”
Em dezembro de 2018, a Estela Renner [diretora, roteirista e co-fundadora da Maria Farinha Filmes] me chamou para um café. Era um convite para fazer um documentário. Os olhos dela brilhavam com o entusiasmo típico da Estela, mas suas palavras vinham com peso. Ela disse que seria perfeitamente compreensível se eu não aceitasse o convite. Aliás, seria recomendável não aceitá-lo caso não tivesse certeza de que daria conta do tema. Refleti, me perguntei se seria possível lidar com os fatos e relatos mais lancinantes ao longo de vários meses e decidi que sim, vamos em frente, fazer o filme que ninguém quer ver: um documentário sobre exploração sexual infantil.
Um ano e meio depois, “Um Crime Entre Nós” está sendo lançado e eu não tenho nenhuma dúvida de que, se é difícil falar sobre esse tema, não falar tem as consequências mais nefastas e devastadoras. Vivemos em um país em que quatro meninas de até 13 anos são estupradas por hora e temos 500 mil casos de exploração sexual infantil todo ano +. Somos um país silencioso e impune.
Se é difícil falar sobre esse tema, não falar tem as consequências mais nefastas e devastadoras
Assistimos à criação de políticas públicas e leis em defesa dos valores da família tradicional brasileira interditando as discussões sobre gênero, educação sexual e direitos das minorias porque representam “ameaças à ordem”. Mas que valores são esses da família tradicional que se busca manter? 90% dos estupros de meninas e meninos acontecem dentro de casa. Neste momento de distanciamento social, estamos assistindo a um imediato crescimento da violência doméstica. No estado de SP, o número de mulheres mortas aumentou 46% durante o primeiro mês da pandemia. +
Nosso silêncio alimenta o ciclo da violência que se perpetua por gerações e só cresce. Faltam informações e dados, faltam políticas públicas para denúncia, acolhimento e prevenção. Falta que nós, como sociedade, transformemos nossos modos de pensar que naturalizam essas violências e invisibilizam a maior parte das vítimas. No processo do documentário, vi a naturalização ser consenso do Norte ao Sul do país. Vi meninas de oito, dez, doze anos trocando sexo por um pacote de macarrão, por dez reais ou pelo sonho de conhecer a Disney. Há pouca denúncia e um índice alarmante de impunidade. Entende-se que “a menina tá lá porque quer”. Em algumas varas, nos poucos casos em que o homem é julgado, essa frase vem junto com a sentença do juiz.
Que valores são esses da família tradicional que se busca manter? 90% dos estupros de meninas e meninos acontecem em casa
No dia anterior ao das filmagens na delegacia especializada em crimes contra crianças e adolescentes de Manaus, uma menina tinha sido encaminhada diretamente para o hospital para ser salva. Seus órgãos tiveram que ser reconstruídos pela violência que sofreu. Estamos falando de uma criança. Estamos falando de um dos países que mais consome pornografia no mundo, e que procura o termo “novinha” mais do que qualquer outro. Não estamos falando apenas de pedófilos, mas sobretudo de homens comuns, criados de uma certa maneira, por uma certa educação e cultura que objetifica a mulher e a coloca sob o poder irrestrito do homem. Como disse Amanda Ferreira, umas das líderes no combate à exploração sexual infantil no Amazonas, somos regidos pelo velho ditado “prenda as cabritas que o meu bode está solto”. Se a mulher sofreu violência, a culpa foi dela que não soube se comportar.
A construção do filme partiu da escuta de mais de 50 pessoas que trabalham na rede de enfrentamento à violência sexual infantil. A cada nova pessoa e organização que você escuta, mais se aproxima da complexidade do tema em um país tão grande e desigual. Somos formados por uma violência estrutural de uma nação colonizada – com forte herança machista e racista – e seguimos recriando as mesmas práticas.
A violência sexual é um crime cometido por pessoas comuns, por gente pobre, gente rica, das mais diversas profissões e orientações religiosas, mas é fundamental reconhecer que as desigualdades estruturais, especialmente motivadas por gênero, raça e classe, aumentam exponencialmente a vulnerabilidade das crianças e adolescentes. As mulheres jovens, de baixa renda e negras são as principais vítimas de violência.
É preciso se responsabilizar. São crianças violentadas todos os dias em todas as suas dimensões – das quais arrancamos a autoestima, a liberdade e a vida
O processo de fazer esse filme foi o de revelação de uma realidade instaurada, oculta para a maioria das pessoas. As histórias foram chegando numerosas, rasgando meu estômago, num exercício de transformar a revolta em ação, linguagem e narrativa. Tratei de esquecer algumas delas, outras escolhi para o filme, muitas ainda moram em mim. Diante das realidades que se apresentaram e se apresentam todos os dias, senti vergonha de me perguntar “será que consigo lidar com isso?”. Então respondo em voz alta: em nosso lugar de privilégio, lidar com a dor do outro é o mínimo. É preciso se responsabilizar. São crianças violentadas todos os dias em todas as suas dimensões – das quais arrancamos a autoestima, a liberdade e a vida.
Precisamos fazer melhores escolhas. Só assim protegeremos as crianças daquilo de que nós, adultos, não suportamos nem ouvir falar. Vamos lidar com isso?
“Um Crime Entre Nós”, filme dirigido por Adriana Yañez, produzido e idealizado pela Maria Farinha Filmes, Instituto Liberta e Alana está disponível nas plataformas Canal Brasil, Philos, Globosat Play e Videocamp.
Adriana Yañez Há mais de 10 anos trabalha com documentários, como diretora e roteirista. Seus filmes “A Sandália de Lampião” e “Vila Fiat Lux” foram selecionados para vários festivais dentro e fora do Brasil. Atualmente, está em pré-produção da série “A Sociedade do Cansaço”, para o Canal GNT e em desenvolvimento da série documental “Narrativas Femininas” em parceria com Katia Lund.