Fernando Luna
Injustiça e veneno
Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre as emoções brasileiras de “Divertidamente 3”, a elonmuskinização dos CEOs, o TDAH nacional e um 7 de Setembro com independência e morte
Injustiça e veneno é dizer que só me deito sobre os louros. Também sob os morenos…
Leila Míccolis, 1990
Antologia Profética
Depois de se tornar a maior bilheteria da história do Brasil, “Divertidamente 2” chega ao streaming.
Hollywood bateu a meta e quer dobrar a meta: planeja uma sequência de olho no mercado daqui. Porém, Alegria, Medo, Raiva, Tristeza, Nojinho, Ansiedade, Tédio e Vergonha não dão conta da complexa psiquê nacional.
Por isso, “Divertidamente 3” vai trazer novas emoções made in Brazil:
Vergonha Alheia: Metade do país vive constrangida com a outra metade do país, e tá coberta de razão. Só não confunda as metades.
Anticomunista de BYD: Sai o Socialista de iPhone, entra o Anticomunista de Carro Elétrico Chinês, viciado em TikTok e cadelinha da Shein. Quem conta?
Mentalidade Empreendedora: O brilho nos olhos encara o app do Uber em busca do próximo passageiro, enquanto a faca nos dentes corta o engarrafamento. CLT Premium é pros perdedores.
Ódio do Bem: Deseja enforcar o último ministro do STF nas tripas do último discípulo do Paulo Freire, mas sem violência desnecessária.
Fã de Bilionário: Acredita que o Elon Musk tá ao seu lado pro que der e vier.
Medo Imaginário: Boitatá, Curupira? Não mais. A assombração favorita da nação é a Venezuela, um espectro que ronda a América.
Espírito de Porco: Com a Bíblia numa mão e um candidato na outra, faz um milagre econômico só pra si mesmo.
Desconstruído Machista: Engasga com a cerveja no Mamãe e com o galeto no Sat’s ao se dar conta de que sua mocinha, oh, se deita sobre os louros e também sob os morenos, como no poema, oh, “Posição”, que Leila Míccolis publicou no livro, oh, “De 4”.
Negacionista Progressista: Sem crise de consciência com exploração de petróleo na foz do Amazonas, afinal exportar é o que importa – quem disse isso mesmo?
Racista Enrustido: Seu bordão é “Tenho até um amigo preto”.
Fascista Antifascista: Depois da cadeirada em Pablo Marçal, José Luiz Datena foi convidado pra fazer a dublagem em português.
Os dias roem nossa vida sem alarde
Giorgos Seféris, 1931
Saudade de quando o mundo era chato.
Não digo chato como o contrário de redondo, terraplanismo jamais, mas no sentido de aborrecido. Uma época mais previsível, em que os dias roíam nossa vida sem alarde, como no poema “Rima”, do grego Giorgos Seféris.
Hoje é vixe atrás de eita, um sobressalto permanente.
Taí o Chief Executive Officer, que não me deixa mentir.
Antes o CEO era um homem branco de meia-idade regiamente pago pra ser enfadonho, pois assim não atrapalhava os negócios. Agora, 94% continuam sendo um homem branco de meia-idade, porém estão fora de controle.
Ocorreu uma elonmuskinização do cargo.
Inspirados pelo boquirroto do Vale do Silício, seus pares também deram de causar. Começaram a abrir a boca ou a caixinha de perguntas dos Stories e, em vez de provocar bocejos com suas declarações protocolares, geram revolta com suas confissões constrangedoras.
“Deus me livre de mulher CEO”, disse, adivinha, um CEO homem branco de meia-idade. A reação foi proporcional ao disparate, das redes sociais aos jornalões tradicionais, donde ele acabou obrigado a renunciar ao cargo.
Outro exemplo da falta que faz o tédio: os debates eleitorais já tiveram edições maçantes.
Foram décadas soporíferas, com cidadãos cochilando em paz diante da tevê, eleição após eleição. Nesta era espetaculosa, é preciso aparafusar as cadeiras no chão pra evitar surpresas.
Tá tudo tão puxado, que até a insossa conversa de elevador começou a dar confusão.
Lembro da cordialidade modorrenta dos papos com o vizinho até o térreo: Esquentou, hein, assim ninguém aguenta, um dia gelado, outro esse forno, pois é, tchau, bom dia.
O tempo virou um assunto sensível: Caramba, nunca vi um setembro tão quente, ah, nem vem, sempre foi assim, nem vem você, seu negacionista, melhor negacionista que comunista, vai pra Cuba, vai pra Cubatão.
E há quem diga que o mundo anda muito chato. Quem dera.
Haverá um acordar
Mário Cesariny, 1957
Sabe aquelas conversas difíceis, que tentamos evitar a todo custo?
Então. Tudo indicava que, antes tarde que mais tarde ainda, a gente teria uma discussão definitiva sobre como enfrentar a crise climática. Graças ao empurrão de uma semana apocalíptica, finalmente o Brasil parecia pronto pra encarar de frente o problema.
Mas aí o Datena deu uma cadeirada no Marçal e mudamos de assunto.
Esquecemos, literalmente da noite pro dia, que o fim do mundo vai ser exibido em Technicolor – e a gente morre no final.
Lembra do sol vermelho, como se o Instagram tivesse lançado um filtro chamado “Juízo Final”? Era cadeira ou banqueta? O rio verde, com as algas se refestelando na poluição concentrada pela seca? Ele mereceu. E a chuva preta, trazendo de volta ao chão as partículas de fumaça das queimadas? Cadê o atestado médico da costela?
O telecatch eleitoral foi o gatilho da vez pro TDAH nacional.
Sofremos um Transtorno Coletivo de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Incapazes de nos concentrar naquilo que realmente importa, e nada importa mais do que um planeta habitável, desperdiçamos toda energia caótica e não renovável de nossos afetos em qualquer distração.
É aí que a antipolítica se cria.
Já que político é tudo igual, que tal um apresentador de programa de tevê policialesco e um ex-coach condenado por roubo se candidatarem à prefeitura da maior e mais complexa cidade do hemisfério sul? Pior que tá não fica. Só que não.
O governo Lula demorou a se mexer? Sim. E também os governos Bolsonaro, Temer, Dilma, Lula 2, Lula 1, FHC 2, FHC 1, Itamar e Collor – isso se a gente quiser parar a contagem regressiva na Eco-92.
“Haverá um acordar”, escreveu o português Mário Cesariny.
Nem sei o que falta acontecer pro alarme do despertador arrancar a gente desse berço esplêndido. Até lá, decidi começar a fumar: pelo menos assim respiro algo mais limpo que o ar paulistano.
Coragem grande é poder dizer sim
Caetano Veloso, 1981
Foi um Sete de Setembro rachado entre independência ou morte.
Desde que ouviram às margens plácidas do rio Ipiranga o tal brado retumbante, poucas vezes o conflito embutido no grito de um desarranjado D. Pedro I foi representado de maneira tão didática.
Não falo da parada anual de soldadinhos, mas da coincidência de dividirem o mesmo sábado paulistano a abertura da exposição “Uma Vertigem Visionária” e uma manifestação bolsonarista: eram independência e morte separadas por apenas quatro quilômetros de distância.
(O título da mostra veio de “Nu com a Minha Música”, em que Caetano Veloso canta “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor/ Vertigem visionária que não carece de seguidor”, antes de encerrar com “Coragem grande é poder dizer sim”.)
No Memorial da Resistência, instalado no antigo prédio do Departamento Estadual de Ordem Política e Social, que serviu como centro de repressão na ditadura militar, o curador Diego Matos celebra o projeto “Brasil: Nunca Mais”.
Entre 1979 e 1985, um pequeno grupo de advogados, jornalistas, militantes e religiosos acessou, copiou, organizou e publicou informações contidas nos 707 processos judiciais contra presos políticos do Superior Tribunal Militar.
Expor, a partir de documentos oficiais, como a tortura e o assassinato foram institucionalizados durante os anos de chumbo era dizer nunca mais àquele Brasil, uma declaração de independência daquela página infeliz da nossa história.
Na Avenida Paulista, uma turba de camisa da seleção batia palmas pra Jair Bolsonaro, Silas Malafaia e, quem pariu Mateus que o embale, Pablo Marçal. Em vez de “Brasil: Nunca Mais”, pareciam dizer “Brasil: Quero Mais”.
Quero mais discurso de ódio, mais dessa gente que celebra o coronel Brilhante Ustra, que comandava Doi-Codi durante pelo menos 502 casos de tortura. Quero mais golpismo, mais oração pra pneu, enfim, mais morte.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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