Vanessa Rozan
Use filtro solar?
Todos os anos de estudos sobre câncer de pele e testes com filtros solares não valem nada perto do que a Universidade do Tiktok tem a oferecer sobre o assunto
Qualquer pessoa que viveu no Brasil nos últimos 20 anos sabe que o áudio do Pedro Bial dizendo “use filtro solar”, resgatado pela Gama recentemente, é patrimônio nacional. O uso do filtro solar é uma indicação já bem estabelecida de cuidado a longo prazo e necessária para habitantes do planeta Terra — em especial, àqueles que estão em regiões onde a incidência de raios solares é alta, como a gente aqui no Brasil.
Eu estava sentada estudando ciências com minha filha e relembrei as aulas do sétimo ano sobre a camada de ozônio e a sua importância para a vida neste planeta. No livro do sétimo ano estava bem explicado: os raios ultravioletas causam danos aos seres vivos; a camada de ozônio é o que impede que a maioria deles não atravesse a atmosfera. Leia aí: a maioria deles, mas eles seguem atravessando e chegando até a nossa pele. Ou seja, desde o livro de ciências do sétimo ano, nós todos sabemos (ou deveríamos saber, se você me lê e já passou pelo sétimo ano do ensino fundamental) que a exposição aos raios solares pode causar câncer de pele. É o tipo de câncer com maior incidência no Brasil, pasmem. O principal fator de risco é a exposição cumulativa à radiação ultravioleta (UV) ao longo de décadas. Isso é um fato, comprovado, estudado, estabelecido e certo como o sol está lá no céu e o planeta é redondo (contém ironia, né?).
Quando não é uma pessoa dizendo que usar filtro solar faz mal à saúde, é outra inventando receita caseira sob a premissa de que é “natural” e, portanto, melhor
No entanto, todos os anos de estudos sobre câncer de pele e testes com filtros solares não valem nada perto do que a Universidade do Tiktok tem a oferecer sobre o assunto. Quando não é uma pessoa dizendo que usar filtro solar faz mal à saúde, é outra inventando receita caseira de filtro solar, sob a premissa de que são mais “naturais” e, portanto, melhores. Eu fiz uma pesquisa simples no Google, digitei “why sunscreen” (por que o filtro solar) e as sugestão de pesquisa são, nessa ordem, “why sunscreen is important” (por que o filtro solar importante?), e em seguida “why sunscreen is bad for you” (porque o filtro solar é ruim para você). Daí você escolhe em qual buraco do coelho da Alice vai cair. Porque aqui é uma questão de anos de estudo versus pseudociência. E do pior tipo de pseudociência: aquela que coloca a sua saúde em risco.
Vamos separar as loucuras, primeiro sobre o tal filtro caseiro. As pessoas que indicam esse tipo de prática demonstram a receita misturando ingredientes como quem prepara um bolo, uma coisa simples de fazer em casa. Mostram os itens e mesclam tudo em batedeira sem saber que óxido de zinco, um dos componentes principais da fórmula, precisa de uma máquina especial para que ele possa ser distribuído uniformemente e portanto estar presente de forma homogênea. Isso é o que garante que o filtro protegerá sua pele em todos os milímetros em que for aplicado. Já existem estudos e testes que comprovam que a proteção de várias receitas caseiras não bateram nem FPS6, toma aqui um pouco de ciência.
Mas o mais preocupante é que essas receitas chegam por contas de milhões de seguidores, como a da influencer que faz tudo do zero em sua casa vestida de Chanel dos pés à cabeça, pertencente à mesma seita das tradwifes de que já falamos aqui. São receitas sem nenhum fundamento científico que colocam a pele — e a vida — de pessoas que estão achando bem divertido brincar de cozinhar filtro solar em casa.
Penso na irresponsabilidade desses perfis e o quanto vai demorar para que a gente tenha uma regulação séria nas redes sociais
Essas dicas são passadas como grandes descobertas de consumidor para o outro consumidor, o que isenta o produtor de conteúdo de bancar qualquer consequência com seu público no futuro. Afinal, se você passar o seu protetor caseiro por anos e anos e isso te custar um câncer — e vamos aqui bater na madeira agora —, não vai ser a bonita lá do Tiktok que vai pagar seu tratamento, vai? Penso na irresponsabilidade desses perfis e o quanto vai demorar para que a gente tenha uma regulação séria nas redes sociais. Não sei se verei esse dia chegar.
Quanto mais estudo as redes sociais, mais sei que o algoritmo vai sugerir vídeos baseados no seu tempo de visualizações e curtidas de conteúdos prévios, apresentando mais e mais daquilo que te interessa para que você fique ali o maior tempo possível da sua vida. O que isso gera: um tipo de bolha de informação. Quanto mais você acessa contas e conteúdos que pregam que filtro solar faz mal ou que é melhor fazer em casa, mais você vai ser exposto a vídeos que confirmam isso. E mais vai ser difícil você cruzar um vídeo da @labmuffinbeautyscience ou do @vpinfante falando com embasamento de anos de estudo sobre os perigos desse tipo de maluquice. Isso vale para filtro solar e vale para política também.
O que as redes sociais fazem é criar um grande eco onde só o que você consegue ver e ouvir é aquilo que faz sentido para você, de acordo com o que você visualizou antes. Eu nem vou entrar aqui no segundo ponto dessa discussão que é falar daquelas pessoas que defendem que filtro solar faz mal à pele. Isso, para mim, deveria dar cadeia.
Agora, quando a gente fala sobre a importância do uso de filtro solar e sua relação com a prevenção do câncer de pele, é algo sério demais para ser leviano, e comprovado demais pra ser descartado. Vejo pessoas que não são dermatologistas e que incentivam essa ideia, assim como criadores de conteúdo e especialistas de qualquer assunto que se aproveitam de estudos sem embasamento algum para te fazer acreditar em algo que pode colocar sua saúde em risco. Para esses casos, block neles, vai de bloqueador solar na pele e bloqueador de desinformação nas redes.
Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.
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