Fabiana Moraes
Por um jornalismo que mire uma democracia radical
É hora de uma imprensa que esteja mais preocupada com o desconforto de quem enfrenta o trabalho precarizado, e não com o desconforto de generais
Ser jornalista me permite morar em 200 Brasis.
Acredito que nós, ao escolhermos esse caminho, precisamos estar fielmente abertos para todos eles. Deixar-se atravessar por cada pessoa, cada casa, cada cidade, cada entrevista.
O fato é que o jornalismo me ensinou a amar muito o Brasil — e diversas vezes a odiá-lo também.
O Brasil das cidades, das roças, dos morros, das praias e dos sertões.
O Brasil da destruição de patrimônios, de monoculturas devastadoras, de empreendimentos que resultaram em praias cujos tubarões hoje caçam gente.
O Brasil no qual, a cada vez que eu batia à porta de uma casa, alguém abria, me convidava a entrar e, coisa de uma hora, me chamava para uma festa, batizado, casamento, comunhão.
O Brasil do casal branco que almoça aos domingos enquanto a babá preta brinca na mesa ao lado com o filho dos dois.
(Pense numa coisa cafona.)
É o Brasil onde, há alguns dias, vi um menino escrevendo em um caderno grande, a chuva fina caindo, enquanto seu pai ziguezagueava entre os carros segurando um isopor no qual estava escrito “procuro trabalho”.
Os rostos deles estão impressos aqui, em mim, agora.
Não como imagem forte, como algo a se revoltar momentaneamente e só. Estão impressos porque eles estão, por exemplo, diretamente implicados em uma proposta como a PEC do Quinquênio, elaborada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Ela aumenta o salário de juízes e promotores em 5% a cada cinco anos.
Em um país profundamente desigual — e essa desigualdade jamais poderá ser desatrelada da nossa enorme concentração de renda — a criação de projetos voltados para parcelas extremamente privilegiadas, mas não diretamente para os quase 28% que vivem na extrema pobreza no Brasil, deveria nos fazer pensar profundamente, como jornalistas, no que exatamente falamos quando evocamos a palavra democracia.
Ser jornalista me fez compreender o quanto essas desigualdades se reproduzem em nós, que as repercutimos como se fossem somente mais um drama, um escândalo, uma notícia do dia.
Já passou da hora de buscarmos uma democracia radical, e não normalizar aquela que sempre permitiu genocídios e outras violências
Já passou da hora de buscarmos uma democracia radical, e não normalizar aquela que sempre permitiu genocídios e outras violências de diversas ordens no Brasil: de negros, de indígenas, de mulheres, de travestis, de crianças, de bichas, de pobres.
Ou seja: o genocídio do próprio Brasil.
Passou da hora de um jornalismo que entenda que o Brasil profundo não está localizado no sertão de Minas Gerais ou Pernambuco, mas sim no Vivendas da Barra, no Rio de Janeiro.
Jornalismo que denuncie não guiado por um exercício egoíco de transformar repórteres em heróis, mas para cruzar essa coisa que parece utopia — o país do futuro — entendendo que amanhã é aquele menino escrevendo na rua enquanto o pai procura por emprego sob a chuva.
Ninguém vai me convencer que isso é demagogia, populismo ou pieguice. Isso é vida e isso é morte.
O sofrimento é um dado objetivo.
Denunciar sim — porque é insuportável, por exemplo, que os partidos brasileiros tenham quase R$ 5 bilhões em dinheiro público para realizar campanhas eleitorais neste ano, o dobro de 2020.
Denunciar, porque a manutenção dos gastos com a previdência das forças armadas é obscena.
Porque as diferenças salariais no serviço público também é insustentável, e todos esses números perpetuam as desigualdades que denunciamos em reportagens especiais — mas a maioria aparece desconectada dos seus elementos geradores.
É mais que hora de um jornalismo que esteja mais preocupado com o desconforto de quem enfrenta o trabalho precarizado, e não com o desconforto de generais.
(Aliás, é sempre preciso lembrar que as forças armadas já possuem suas próprias assessorias de imprensa, deixemos que elas trabalhem sem nossa ajuda).
Um jornalismo que nomeie as coisas pelo o que elas são: para usar um exemplo recente, lembrando da ópera do aumento do dólar, um termo apropriado pode ser “terrorismo do mercado”.
*
Mas quero falar de um jornalismo que também tenha a capacidade de Iluminar aquilo o que dá ou deu certo, jogando luz nas possibilidades reais de sermos um país mais justo. Ele também existe.
Ele está na universalização da água no semiárido, atacada pelo governo de extrema-direita. Ele está no aumento de pessoas negras e pobres nas universidades públicas brasileiras. Ele está nas práticas empresariais que capacitam estas mesmas populações para serem lideranças. Ele está nas redes de solidariedade de combate à fome enquanto passamos pela tragédia sanitária-política da pandemia.
Um jornalismo que não desmonte aquilo que foi duramente conquistado por movimentos sociais, associações, coligações democráticas em câmaras, congressos, executivos, justiça. Um jornalismo que se responsabilize pelo que fez no passado e, mais ainda, que se responsabilize pelo o que pode fazer no futuro.
E o futuro, repito, é o menino sob a chuva com o lápis na mão.
Quando eu entrei no curso de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco, nos anos 1990, perguntavam para aquela turma de 40 pessoas: porque vocês escolheram essa profissão? A maioria dizia que queria mudar o mundo. A frase parece romântica e sonhadora demais vista de longe, três décadas depois. Piegas e talvez ridícula.
Mas, agora, aqui na frente de vocês, jornalistas, eu me pergunto: porque, afinal, escolhemos essa profissão? Eu posso responder, sem medo do sonho e do cinismo, que eu desejo, junto às minhas e aos meus camaradas, mudar o mundo.
Com letra e tule. Com apuração e festa. Com luta e lantejoula.
*
Dedico esse texto a vocês, que acreditam. Dedico ao Brasil que às vezes odeio, mas que invariavelmente amo – e por isso continuo a escrever.
Por fim, gostaria de dizer duas coisas para as nossas casas legislativas e os nossos conselhos de medicina: nem presa, nem morta.
Obrigada.
*Texto adaptado do discurso proferido pela colunista durante a homenagem concedida à autora pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo/Abraji, no dia 11 de julho de 2024
Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.
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