Carta de Recife para Porto Alegre — Gama Revista
COLUNA

Fabiana Moraes

Carta de Recife para Porto Alegre

Da capital nordestina que figura como a 16ª mais vulnerável do mundo aos efeitos das mudanças climáticas para aquela que viu suas ruas transformadas em lama, perdas, lixo e dor

22 de Maio de 2024

Oi, Porto Alegre. Estamos a quase 3 mil quilômetros de distância. No outro planeta em que vivemos, aquele que se acabou em plástico e desmatamento, aqui era quase sempre o calor, e vocês, frequentemente, o frio. Mas a destruição desse mundo que conhecíamos embaralhou mais esses climas, expectativas, representações. De alguma forma, talvez pela dor, talvez pela água, nos aproximamos mais.

Começo essa carta para você contando uma conversa entre duas amigas. Eu e Cláudia Mendes, esteticista. Nos conhecemos há quase 15 anos e ambas nascemos na Zona Norte de Recife. É uma área povoada principalmente pelos morros — ou melhor, altos, um batismo que talvez (talvez) tenha nascido com a intenção de afastar a estigmatização que o nome “morro” trazia e ainda traz.

Nunca esqueci quando conheci Claudinha: fui a um salão especializado em design de sobrancelhas, perto da minha casa. Era todo decorado com flores cor de lavanda, mesmo tom das paredes. Um balcão branco completava o cenário suave. Mas, quando ultrapassei a porta de vidro, lá dentro tocava uma música dos Racionais. Achei aquilo maravilhoso.

Desde ali, a cliente e a especialista descobriram que, além da mesma cor e quase a mesma idade, tinham a mesma origem. Desde ali, nossos encontros envolvem bem mais do que arrancar os pelos da minha cara. São conversas sobre política, casamentos, machismo, filhos, bichos e lembranças de nossas infâncias. Foi por isso — e desculpem a digressão — que falamos recentemente não só de você, Porto Alegre, mas sobre todo um Rio Grande do Sul devastado por uma tragédia político-climática, nessa ordem. Aqui, enquanto me dirijo à capital, trato também de todo o estado, de povoados e cidades como São Leopoldo, Canoas, Campo Bom, Alvorada, Esteio, Sapucaia do Sul, Cachoeirinha, Gravataí, entre outros afetados.

Nessa última conversa entre Claudinha e eu, havia um velho conhecido nosso, o medo. Ambas convivemos durante décadas com ele, que aparecia, grandão, quando as chuvas começavam a cair sobre locais como o Alto José Bonifácio (de onde venho), a Bomba do Hemetério (onde vive Claudinha), o Alto do Pascoal, o Alto de Santa Isabel, o Alto do Mandu, o Alto José do Pinho, o Morro da Conceição, o Córrego do Euclides, o Córrego do Abacaxi, etc.

Placa de rua do Alto José Bonifácio, onde Fabiana Moraes morou  Arquivo pessoal

Recife, cruzada intensamente pelos rios Capibaribe e Beberibe, está a apenas quatro metros acima do nível do mar. Quase 68% de nossa composição territorial é de morros; somente 23,26% de planícies. Quando não cuidadas, as últimas alagam. Os primeiros, desabam. Por isso, o medo.

Quando a chuva começava, a sensação primeira era de felicidade. Mas, quando ficavam mais fortes e adentravam a madrugada, o coração disparava

Quando a chuva começava à noite, perto da hora de dormir, a sensação primeira era de felicidade: as casas ficavam menos quentes e com menos muriçocas, o cheiro das telhas e o barulho dos pingos sobre elas produziam um embalo inesquecível. Mas, quando elas continuavam, ficavam mais fortes e adentravam a madrugada, o coração disparava: sabíamos que, ao abrir as portas e olhar lá fora, a paisagem que estava ali há poucas horas poderia ter sido, literalmente, arrastada. Que poderíamos ser nós sendo levadas.

Claudinha me contou: nas décadas de 1980 e 1990, criança e adolescente, ela perdeu muitos amigos e amigas por conta dos deslizamentos de barreiras. “Como tínhamos poucas opções de escolas nos bairros, estudávamos praticamente nos mesmos colégios. Quando chegava o inverno, a gente sempre ficava pensando em quem morava nas áreas de risco, em quem seria a próxima família a ser mais afetada. E nunca foi só uma família, sempre foram duas, três. Muita gente não saía das casas com medo de perder as coisas, de levarem tudo mesmo, e aí pagavam para ver. Os deslizamentos aconteciam quase sempre na madrugada. A gente acordava com a sirene dos bombeiros, então já sabíamos. Eram tragédias anunciadas. Vimos as mortes de muitas famílias, muitos amigos mesmo”.

Uma dessas perdas, em especial, marcou a trajetória de Claudinha, e foi quando ela me falou desse episódio que decidi escrever essa carta para vocês. Em uma noite de muita chuva, as barreiras que circundavam a área onde ela, suas irmãs, irmãos, pai e mãe ainda moram, começaram a colapsar. Nesse momento, os muros de contenção eram pouquíssimos — um problema que só veio a ser encarado como prioridade, é preciso fazer justiça, na prefeitura liderada por João Paulo (PT). Essa excelente reportagem de Maria Carolina Santos, da Marco Zero Conteúdo, fala melhor a respeito.

Barreira coberta por plástico ao lado de uma casa  Arquivo pessoal

Pois bem: com as barreiras sem vegetação para “segurar” a terra, com a ocupação acelerada de residências de estruturas frágeis, a água transformava o barro em ondas de lama. Uma casa desabou e uma das tias de Claudinha, ao lado do marido e de uma amiga, correram para ajudar um vizinho que morava mais abaixo. Mas quando a última voltou para seu lar, ele não estava mais lá. O mais devastador: sua filha de 14 anos, que provavelmente estava dormindo, foi soterrada e morreu no local que durante mais de uma década a protegeu. “Nunca me esqueci. Eu estudava com a irmã dela. Foi muito triste, muito triste mesmo.”

Eu e Claudinha olhamos para a tragédia em Porto Alegre e todo Rio Grande do Sul como se fosse nosso passado, nosso presente, e, assustador, nosso futuro.

O medo, para mim, foi registrado em uma fotografia que eu não fiz, mas permanece muito nítida na minha lembrança: quando íamos para a escola de ônibus, passávamos, até chegar em Beberibe, pelo Córrego do Euclides, também conhecido como o Boqueirão. A pista ficava entre uma barreira sem contenção e um vale fundo cujas paredes de barro iam, cada vez mais, sendo pintadas por casinhas frágeis.

Passei por ali, alguma quarta-feira besta, pouco depois da hora do almoço, e fiquei olhando aquele vale, a barreirona, os restos de mata atlântica, os barracos e as pipas. À noite, já em casa, veio aquele conhecido roteiro: a chuva começando, o cheiro das telhas, o som dos pingos, o sono embalado. De manhã, as notícias: uma barreira tinha deslizado no alto X, outra barreira no alto Y, outras no Boqueirão, outras a poucos metros de nós.

Depois do almoço, fui para a escola. Quando o ônibus chegou na pista espremida entre duas barreiras, o cenário era completamente diferente de um dia antes: não tinha mata, não tinha casa, não tinha barraco, não tinha pipas. Não tinha gente. Tudo era lama e restos de madeira, plástico, papelão, isopor. Em casa, mais tarde, a sensação é que estávamos — e estávamos — acompanhando um grande e coletivo funeral.

Fiquei pensando se essas imagens foram alguma construção imprecisa que fiz ao longo das décadas e resolvi perguntar que lembranças minhas irmãs e meu irmão, a maioria vivendo fora do Alto José Bonifácio hoje, tinha dessas chuvas, lamas e morte. Meu pai, madrasta, irmã, sobrinha, e primos vivem no alto.

O pai de Fabiana, José, e sua madrasta, Cícera, na escadaria no fim da rua onde viveram  Arquivo pessoal

Tudo isso porque quero te contar como tua lama e teu medo também estão compartilhados conosco, mesmo distantes a 3 mil quilômetros, Porto Alegre.

O Boqueirão apareceu em quase todas as memórias da minha família. Meu irmão Flávio disse que seu maior pavor era, ao passar de ônibus ali, achar que a barreira que sustentava a pista iria também cair, com o ônibus indo junto. “E a tristeza de ver as imagens após os deslizamentos, acompanhando as notícias, ouvindo as pessoas que tiveram vítimas nas famílias.”

Patrícia e Flávia também traziam imagens daquele córrego que, aos olhos de um grupo de crianças, parecia ainda mais gigante. “Eu lembro quando fomos em excursão para São Severino dos Ramos [em Paudalho, zona da mata norte]. Quando o ônibus passou pelo Boqueirão, foi a hora que eu mais rezei. Eu sabia que ali tinha desabado e morrido muita gente”, conta Pat.

Flávia: “Lembro de que demorei a entender que aquele local das mortes era um caminho recorrente do transporte que nos levava para o Alto. Também lembro que tinha medo da barreira onde uma amiga morava, eram três pequenas residências ainda sem contenção. E tinha nossa casa. Nosso muro ficava distante de uma barreira apenas pela descida da rua e também não tinha contenção. Também guardo outra lembrança ainda na escola, quando muitas ocupações surgiram. Apareceu um tatu, acho que bola, no meio da quadra. Depois dessa ocupação, que todo mundo chamava de invasão, também passamos a ouvir mais histórias de abusos e de fome”.

Fabiana Moraes e suas irmãs e irmão  Arquivo pessoal

Minha irmã toca em um ponto central aí: as diferenças sociais entre quem morava nas barreiras “invadidas” e quem já estava mais estabelecido. Acredito, Porto Alegre (e todo RS), que a tragédia pela qual vocês estão passando vá redefinir bastante as posições de classe na capital e no estado, sejam sociológicas, sejam de mercado (classe A, B, C, D…). Na verdade, a própria tragédia política-climática já demonstrou isso, uma vez que foram as pessoas pobres as mais afetadas na capital e região. A incompetência política tem disso: roer ainda mais a vida de quem já vive roído.

Pois bem: muito embora a imprensa ainda ignore esse ponto, também nos morros e periferias são variadas as posições sociais. Jaqueline, minha prima, comentou isso na mensagem que me enviou. “As famílias que habitavam em casas de alvenaria, que eram minoria, eram consideradas privilegiadas, pois eram mais comuns as moradias construídas com barro. E eram essas casas que ficavam localizadas nas barreiras, ficando mais suscetíveis às chuvas.” Kelly, como a chamamos, também falou do medo de passar de ônibus pelo Boqueirão e ser tragada pela lama.

Não eram piscinas, sistemas de segurança ou carros o que garantiriam algum destaque social. Era poder habitar uma casa mais segura

É isso mesmo: nos morros, não eram piscinas, sistemas de segurança ou carros o que garantiriam algum destaque social. Era poder habitar ou não uma casa tecnicamente mais segura (mas isso também dependia de sua localização).

Éramos só mais uma família, um grupo de crianças, que não sabia o que ia acontecer conosco se a chuva ultrapassasse demasiado o momento de nos fazer dormir.

E olhem que nossas casas eram de alvenaria.
*
Quis dividir essa memória coletiva com você, Porto Alegre, para dizer que sinto muito, e não é de maneira meramente figurada. Eu sinto que vocês tenham sido, como população, entendidos como uma “agenda” não prioritária, como disse o governador do RS, Eduardo Leite (PSDB). Ter vivido no Alto e hoje viver em um bairro de classe média me mostra exatamente como o poder público trata um e trata o outro. Que agendas são entendidas como prioritárias para um e para outro também.

Quis dividir esses relatos, também, porque não guardo apenas essas lembranças de dor para compartilhar, mas porque tenho memórias muito queridas de PoA e de amigos espalhados pelo Rio Grande do Sul. Uma é especial: aconteceu na primeira vez que fui até a capital para participar, em 2006, de um congresso de pesquisadores em jornalismo. Foi um daqueles você gasta muito com passagem, hospedagem e no fim não sabe muito bem o que está fazendo lá porque mandou o texto para o grupo de trabalho errado.

O hotel, o Erechim, ficava no centro, perto do Viaduto Otávio Rocha. Me hospedei ali. Eram apenas três dias, e, no último, um domingo, estava sozinha e só tinha conhecido o Mercado Municipal. Fui andar pela cidade perto da hora do almoço em busca de uma refeição antes de voltar a Recife e as ruas estavam especialmente vazias, mesmo para um domingo. Andei para um lado, para outro, nada. Voltando, derrotada, para o hotel, parei em frente a um boteco, desses clássicos, com balcão grande e parede de azulejo. Bonito.

Quase todas as mesas estavam ocupadas por homens. Fiquei indecisa se deveria entrar quando uma senhora, atrás do balcaozão, me chamou. “Vamos, querida, entre!”. Um monte de gente olhou para mim. Eu não tive outra opção a não ser entrar. Sentei em um banco alto. Ela: “tudo bem? Está procurando o que? Quer comer algo? O jogo daqui a pouco vai começar”. Só ali a ficha caiu e entendi as ruas vazias: era dia de Grenal, clássico jogo de futebol entre Grêmio e Internacional. Por conta de uma decisão judicial, me contou a senhora, a partida seria sem a presença de torcidas — no último jogo, a confusão nas ruas tinha sido grande.

Infelizmente não sei o que pedi para comer, talvez uma polenta com carne. Para beber, uma cerveja. Fiquei ali no balcão durante uma hora, olhando, ouvindo e conversando com aquela senhora extremamente simpática (que não me encheu o saco falando do meu sotaque, por exemplo, nem eu falei sobre o dela). Contou que tinha conhecido o Nordeste fazia tempo, contou do sufoco do veranico (eu nunca tinha ouvido falar), contou das coisas que eu precisava conhecer na cidade da qual ela até falava mal, mas ao mesmo tempo tinha orgulho de ter nascido.

Eu me senti acolhida, me senti em casa. Mas não na casa que poderia desabar se uma barreira caísse. No centro de Porto Alegre, eu estava em uma moradia segura, protegida por um muro de contenção.

Nunca esquecerei dessa recepção. Muito obrigada a essa senhora que me chamou para entrar. Ela para mim, é PoA. É Canoas, Cachoeirinha, Gravataí. É também o Córrego do Euclides, o Alto José do Pinho, o Bonifácio. É saber cuidar do outro.

Um abraço e o desejo de uma recuperação rápida para vocês. E de medidas que não tragam, de novo, tanta lama e sofrimento.

***

Em tempo: O documento Análise de Riscos e Vulnerabilidades Climáticas e Estratégia de Adaptação do Município do Recife, lançado na Conferência Brasileira de Mudança do Clima, em 2019, mostra que o “litoral de Recife possui 45,7% de sua extensão sob zona de alta vulnerabilidade, o que significa que a região será rapidamente atingida com a mudança do nível do mar. Cerca de 81% das construções urbanas estão a menos de 30 metros da linha costeira e localizadas em terrenos abaixo de 5 metros de altura. Além disso, a cidade sofre com as chuvas sobre as áreas de ocupação inadequada e uma infraestrutura de drenagem insuficiente, trazendo como consequências inundações e deslizamentos. Neste contexto, a projeção de aumento de risco de inundações até 2040 é de 68,44%.”

***

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Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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