Exposição e ilusão do empreendedorismo na favela — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

Exposição e ilusão do empreendedorismo na favela

Causa estranhamento a desfaçatez com que a mídia associa uma eventual superação da pobreza a um passe de mágica operado pelo “espírito empreendedor”

18 de Abril de 2024

Que o empreendedorismo seja visto como panaceia para o câncer da desigualdade social brasileira não é novidade na agenda neoliberal. Também não há nada de novo no fato de a Rede Globo de Televisão ser uma das mais entusiastas divulgadoras de iniciativas e eventos de empreendedorismo Brasil afora. Afinal, o padrão Globo de trabalhismo é a ideologia do Estado mínimo, do combate a direitos trabalhistas e ao sindicalismo, é a promoção da precarização, da pejotização e da uberização do trabalho.

O que causa estranhamento é a desfaçatez com que essa corporação de mídia associa uma eventual superação da pobreza a um passe de mágica operado pelo “espírito empreendedor” do indivíduo pobre ou do “sonho” por ele realizado – ou em vias de ser realizado – unicamente pelo esforço pessoal e alguma estratégia de marketing.

Assim é que a Globo investe em programas do tipo “Pequenas Empresas & Grandes Negócios”, e que tem encampado agressivamente a divulgação de eventos como a Expo Favela, feira de negócios do povo das favelas realizada anualmente em São Paulo.

O que se questiona não é a ocorrência de iniciativas de empreendedorismo em si (afinal, gente de todo tipo já deve ter “subido na vida” por essa via). É a propaganda enganosa, arquitetada para invisibilizar a luta de classes, para fazer a favela acreditar que sua ascensão financeiro-social tem tudo a ver com o espetáculo da difusão, e que a ausência de Estado na vida dos pobres não passa de um detalhe.

O que se questiona não é o empreendedorismo, mas a propaganda enganosa, arquitetada para invisibilizar a luta de classes e para fazer a favela acreditar que a ausência de Estado não passa de um detalhe

E mais do que isso: causa indignação a estratégia de manipulação midiática articulada de modo a vincular a coisa privada (o poder econômico da Globo) à coisa pública, numa justaposição farsesca, como se Globo e governo fossem a mesma coisa. Exemplo disso encontra-se em matéria jornalística do “g1”, site da empresa, que anunciava o lançamento da Expo Favela no início de dezembro de 2023.

Depois de explicar o objetivo da feira como sendo o de “promover um encontro com investidores que possam acelerar esses empreendimentos e gerar negócios”, o texto dizia: “Entre as presenças confirmadas no evento está a ex-BBB Thelminha Assis, a ministra da Cultura Margareth Menezes, a jornalista Natuza Nery, o ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida, e o apresentador Luciano Huck”.

Pronto. O Estado, colocado assim lado a lado de representantes do show de imbecilidades (BBB e Luciano Huck) que é o conteúdo de grande parte da programação da empresa, e ao lado do seu jornalismo loiro de resultados “para assinantes” (Natuza Nery) – jornalismo golpista, é bom lembrar, hoje travestido de “análise política” –, o Estado, naquele parágrafo noticioso da Globo, vira mero avalista da Expo Favela, fiador dessa inversão descarada entre realidade da pobreza e espetáculo ilusionista de empreendedorismo que não se propõe a outra coisa senão garantir que a riqueza permaneça nas mãos dos ricos e que os pobres aceitem sua pobreza quietos, desmobilizados, crentes que participação política é sinônimo de votação na turma do BBB.

Sobre a menção a autoridades do governo federal equiparadas às outras presenças na Expo Favela, não vale a pena neste espaço iniciar a discussão sobre a conduta de uma gestão pública de perfil popular e trabalhista como a do PT fazer concessões a certos princípios essenciais ou não se dar conta da jogada de marketing em que é envolvida.

Em quadro recente (31/03) de seu programa “Pequenas Empresas & Grandes Negócios”, a Globo deu merecido destaque – a despeito do tom personalista, utilizado certamente para inspirar outros “afro-empreendedores”– ao criador da Expo Favela, Celso Athayde, em matéria intitulada “De origem humilde aos prêmios: conheça a trajetória do empresário criador da ‘Expo Favela’”.

A estratégia de manipulação midiática é articulada de modo a vincular a coisa privada à coisa pública

O passe de mágica está aí no arranjo sintático da frase, na transição milagrosa da “origem humilde” para os “prêmios” – em 2023, aliás, o empreendedor primeiro colocado nessa espécie de gincana que é a Expo Favela ganhou o maior prêmio, no valor de R$ 80 mil, quantia suficiente para calar a boca de qualquer favelado, para abafar conflitos e desarticular iniciativas coletivas, lutas populares e movimentos sociais.

No site da Expo Favela (cujas inscrições para dezembro de 2024 já se encontram, aliás, abertas com grande estardalhaço) só se fala na “potência” da favela, em “negócios e inovação”, no crescimento da feira que agora se chama “Expo Favela Innovation” e faz parte do “calendário nacional de eventos”.

Ali é como se a favela tivesse deixado de ser um lugar físico e se transformado em plataforma digital asséptica e tecnológica. Nenhuma menção à ausência do Estado e de serviços públicos naquele território, nenhuma referência às condições insalubres, à falta de saneamento básico, ao racismo ambiental expresso duramente na falta de áreas verdes, de sombra, de silêncio, de paz. Nenhuma alusão à fome, ao desemprego, à violência policial, à opressão criminosa das milícias, do tráfico, à banalização da morte de pretos e pobres.

Tudo dominado pelo “negócio” da ilusão – quer dizer, da “innovation” empreendedora –, montado de modo tal a dar uma cara de caduco, de obsoleto, ao conceito de direitos e dignidade do trabalhador.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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