Maria Homem
A fantasia messiânica do ano novo
Sobreviver é algo complicado e, para ajudar, a gente tem que alimentar a mente com histórias que fazem sentido para vários indivíduos
Fechei o ano passado aqui na coluna comentando o mito da Caixa de Pandora e nosso doce, antigo, tocante apego à ideia da esperança. Vários leitores trouxeram comentários valiosos e pediram “mais explicações”.
Como sempre começamos o ano com novas metas e, ainda, insistindo em preferir figuras messiânicas que nos tragam mudanças mágicas, como Milei e Trump, talvez seja um bom momento mesmo para aprofundar o tema.
Contrariando a fantasia libertária, vamos começar por uma premissa peculiar: uma pessoa é bem menos livre do que acha. Somos bem menos livres do que achávamos quando havíamos imaginado que a razão, a consciência e o livre-arbítrio eram a base do humano. Eram os seus atributos principais. Alô Rousseau, Kant e iluministas europeus ou africanos…
Qualquer um que tem a experiência de fazer uma análise descobre, por exemplo, que, por trás de nobres ideais de liberdade, conquista e salvação do mundo, se está de fato identificado como lugar do herói rebelde na narrativa inconsciente de uma família que passou séculos destruindo o mundo. E, mais irônico, que o seu pai, contra o qual você luta tanto, é quem no fundo deseja que você faça tudo o que você vem há anos fazendo. Que no fundo ele te ajuda e aplaude. E é por isso que você faz tudo isso: para obedecer e ser aplaudido pelo pai contra o qual você luta. Confuso? Na verdade não.
Uma pessoa é bem menos livre do que acha
Assim funcionam nossos mais profundos impulsos, sempre apoiados em fantasias inconscientes que passam de geração em geração e formam o caldo das histórias que circulam no interior de cada família.
Esses mecanismos se dão também no interior de cada grupo humano. Para além da subjetividade individual, a estrutura grupal também funciona como uma “subjetividade coletiva”, repetindo narrativas antigas e achando que se está criandos novas. É como se déssemos uma recauchutada em velhas ideias – e ideais.
E assim vamos continuamente negociando nossas crenças individuais com as fantasias inconscientes desse coletivo, as que pulsam na realidade do momento e vem à tona como as ‘verdades’ do grupo. A pergunta é sempre, como diria Darwin: como podemos sobreviver mais e melhor no mundo que se apresenta diante de nós?
Um dia alguém do grupo tem uma ideia que logo cola na ideia de outro que logo faz sentido para o terceiro e assim, eureka: inventa-se um novo deus, um novo profeta, um novo sistema de vida que se chama, por exemplo, Alpha. E, com essa luz no coração e essa ideia na mente, nós criamos uma nova identidade para esse coletivo. E o pior é que funciona. Escrevemos textos (que sacralizamos), fazemos rituais, replicamos palavras de ordem e eis que, em nome de Alpha, nos enchemos de coragem e saímos para conquistar o mundo.
Sobreviver é algo complicado e, para ajudar o corpo a achar comida e reproduzir a vida, a gente tem que alimentar a mente com histórias que fazem sentido para vários indivíduos simultaneamente – de tal forma que determinado grupo tenha mais chance de ficar vivo por mais tempo. Aqui é, aliás, onde a biologia encontra a economia e a psicologia.
Nossos mais profundos impulsos são apoiados em fantasias inconscientes que passam de geração em geração
Quando o jogo de forças entre diferentes grupos que buscam sobreviver se desequilibra, há conflitos. E o conflito é o tecido mesmo da equilibração contínua da vida: o cobertor é estruturalmente curto e estamos o tempo todo lutando pra puxar um pedaço maior que o do vizinho.
De vez em quando a coisa se desequilibra a tal ponto no sistema que se entra em guerra. O jogo que chamamos “política” não funciona mais e precisamos acrescentar uma outra camada nele: a “guerra” que, como se diz, é a continuação da política pelos meios violentos de destruição do outro. E de tudo que é importante para o outro – suas fábricas, pontes, símbolos etc, etc.
A fantasia das fantasias é eu pensar que meu grupo é superior e eterno. Falso, sempre. A verdade é que somos fracos e mortais. Somos tão fracos que precisamos viver em grupo e ter que ajudar e sermos ajudados pelos demais. Mas a ideia de nosso próprio valor em detrimento dos demais é a história central, com leves variações, que sempre contamos.
“Criar narrativas”, como dizemos hoje, é uma das artes mais antigas que existem para a sobrevivência em grupo. Elas organizam a moral e o aparato jurídico daí decorrente (sempre portador de ideias de bem e mal), além de fornecer uma causa pela qual lutar.
Nesse sentido, qualquer “narrativa” é da ordem da ficção, e carrega uma fantasia inconsciente. A mais comum é a fantasia messiânica: neste momento a vida está terrível mas algo de bom e salvador vai acontecer. Como teorizou Bion, a narrativa messiânica é um dos três tipos de pressuposto básico (basic assumption) em jogo no funcionamento inconsciente dos grupos.
Qualquer união de pessoas tem que ser um pouco messiânica, até pra gente acreditar num projeto, arregaçar as mangas e trabalhar. Mas o que diferencia uma pitada messiânica que nos impulsiona para a ação do delírio messiânico?
Somos tão fracos que precisamos viver em grupo, ajudar e sermos ajudados pelos demais
A diferença é a nossa posição em relação a esse projeto: se nós mesmos vamos criar o novo ou se esperamos sentados, agarrados dogmaticamente às ilusões, enquanto esperamos a vinda do messias, do milagre. Essa é, aliás, a diferença entre o princípio da realidade e o princípio do prazer. Operar no princípio da realidade é trabalhar para transformar o real a partir do pensamento reflexivo. Permanecer no princípio do prazer é torcer pela mudança salvadora que o pensamento mágico almeja – e o líder mágico e messiânico vai me trazer.
Aliás, além de Milei e Trump com os quais abri a coluna, uma observação curiosa: ouvindo podcasts sobre política brasileira das últimas décadas, como Collor versus Collor e República das Milícias, e lendo “A Fé e o Fuzil” (Todavia, 2023), me chamou a atenção a mesma estrutura identificatória do povo brasileiro diante dos “ungidos” Fernando Collor e Jair Messias Bolsonaro.
“Feliz ano novo” pode ser um impulso de transformação. Ou pode ser um leve delírio messiânico compartilhado por todos nós. Autorizado uma vez por ano, quando muda o calendário. Ou, em alguns países, uma vez a cada quatro anos. Vamos ver onde isso vai nos levar.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.