Marilene Felinto
Apagão, descaso e “questão arbórea”
São Paulo segue às moscas, refém de gestões públicas bizarras, corresponsáveis pela morte de gente que perece debaixo de árvores, muros e postes
Só quem viveu cinco ou seis dias sem energia elétrica em São Paulo, desde sexta-feira (3), conhece o sentimento de indignação, raiva, impotência, o grau de estresse e o montante de prejuízo que sofreu. Um escândalo, crime contra a cidadania (para não dizer contra o “consumidor”), descaso inaceitável do poder público, irresponsabilidade e cinismo da concessionária de energia elétrica – a Enel, que atua na cidade e região metropolitana.
O apartheid social manifestou-se também em sua plenitude nos dias de apagão: basta comparar o tempo que faltou luz para a nobreza do Morumbi ou de Higienópolis com o inferno vivido pelos moradores da comunidade de Paraisópolis, que precisaram montar barreiras, queimando pneus e pedaços de pau, numa das principais avenidas de seu vizinho de porta, o bairro rico do Morumbi, interditando a via, protestando contra tamanho ultraje.
A gestão do prefeito secreto de São Paulo (Ricardo Nunes, do MDB) está por trás do corte de eletricidade que acometeu a cidade por quase uma semana – “secreto” porque o prefeito vive nos bastidores de uma administração já por si inócua, como se não existisse, um desconhecido, que ninguém sabe direito quem é nem por que ocupa o cargo.
Na dianteira do apagão que deixou mais de 2 milhões de pessoas sem luz por dias seguidos, está a Enel, empresa de péssima qualidade, que só traz problema para a cidade, que nem mesmo atende telefone, e que exige que a pessoa vá presencialmente a um de seus postos de atendimento para conseguir simples alteração de nome de cliente na conta de luz – porque o “sistema” da concessionária não funciona como se espera neste século 21 da era da informática.
São Paulo (cidade e Estado) às moscas, entregue a duas administrações que parecem de gente extraterrestre: o estranho governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o estranhíssimo prefeito Nunes – a passagem deste último por aqui talvez seja a pior que a prefeitura paulistana já viveu desde a sequência de horror das gestões Paulo Maluf (1993-1997) e Celso Pitta (1997-2000).
Quanto ao governador ET, que vai montando aqui em São Paulo uma espécie de bunker do fascismo bolsonarista, ele se saiu com a seguinte explicação para o crime da falta de energia que castigou a população: disse que foi uma “questão arbórea”, as árvores que caíram com os ventos e as chuvas e derrubaram a fiação!
Que palavreado é este, de que planeta, “questão arbórea”? E disse que vai colaborar com a prefeitura de São Paulo para a manutenção das árvores. Vai? Por que não foi até hoje? A próxima tempestade deverá ocorrer muito em breve, neste verão que se anuncia catastrófico. Vamos ver quantas árvores o governo do Estado vai “ajudar” o prefeito paulistano a podar.
Catástrofe é o abandono das políticas sociais, da coisa pública, pela privatização, pela ganância irracional desses governantes perversos
Ao analisar o resultado da “questão arbórea”, no entanto, o governador Freitas não tratou em nenhum momento do fato de a Enel ser resultado da sanha privatista neoliberal de que ele mesmo é incentivador. Ele agora quer avançar a pontapés na privatização da companhia de abastecimento de água de São Paulo, a Sabesp. O resultado já se sabe: São Paulo sem luz nem água se a privatização ocorrer.
A gestão do prefeito Nunes, a quem caberia cuidar das árvores que tombam a qualquer chuva mais forte, matando pessoas e aleijando outras, destruindo casas e automóveis, ignora o número de pedidos de cidadãos que estão há anos esperando por uma poda de árvore na frente de suas casas. Não é à toa que as pessoas passaram a ter medo de árvores na pauliceia
Em público, o prefeito adota uma fala em tons pasteis, perfeitamente, para não se comprometer – fala organizada, bem montada, como se estivesse executando a mais perfeita das gestões. Pura falácia, cheia de frases feitas, retórica para enfeitar a cara dele na mídia.
Aliás, Nunes tem aparecido mais em público nestes tempos pré-eleição, é claro exibindo sua gestão especialista em maquiagem: vê-se nos últimos dois meses alguma movimentação do serviço de remendos de piche aqui e ali nas ruas, recapeamento de algumas avenidas, trato no asfalto que estava havia tempos em petição de miséria, a cidade toda esburacada.
E quando o prefeito resolve sair do padrão pastel de sua fala, mete os pés pelas mãos, revelando toda a sua falta de sensibilidade (para dizer o mínimo) para com a coisa pública: veio propor à população traumatizada pela falta de luz que pague uma taxa para enterramento da fiação da cidade.
Outra falácia, como se enterrar fios numa megalópole como São Paulo fosse solução simples e, ainda mais, imediata. Enganação. Só se for na rua do prefeito, do governador. Com certeza estas têm árvores podadas e terão fios enterrados. Ricardo Nunes é herança da dinastia nefasta do PSDB (era vice do falecido ex-prefeito Bruno Covas) e seu reinado de décadas na cidade e no estado de São Paulo.
Enquanto isso, resta ao povo comum acreditar que serão punidas – ao menos desta vez – a prefeitura e a Enel pela “questão arbórea”, pela “questão ventosa”, pela “questão chuvosa”, pela criminosa ineficiência da concessionária de energia e a mentira da gestão Nunes. E é mesmo de pasmar que haja uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Assembleia Legislativa de São Paulo investigando a Enel!
São Paulo segue às moscas, refém de gestões públicas bizarras, corresponsáveis pela morte de gente que perece debaixo de árvores, muros e postes. Enquanto isso, eis que a gente comum prepara seu kit-sobrevivência para a próxima escuridão: lâmpadas de emergência, lanternas de led, carregadores portáteis para celular, minirrádio a pilha.
Catástrofe pior do que a da natureza (ou da “questão rajadas”) é esta: o abandono das políticas sociais, da coisa pública, pela privatização, pela ganância irracional desses governantes perversos na sua mentira cotidiana.
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.