Isabelle Moreira Lima
Dizer “frutado” é dizer pouco
Livro de Bruna Beber evoca memórias e dá reconhecimento a frutas banalizadas pelo cotidiano, mas que estão até nas mais caras e antigas garrafas da Borgonha
Na cozinha da minha mãe, há uma tela pequena com a pintura de duas laranjas, uma inteira, outra ainda com a casca mas cortada em quatro. Ela conta que estava passeando em uma feira de artesanato em Copacabana, no Rio de Janeiro, quando bateu o olho no quadro e não se conteve, começou a chorar: era como o seu pai, que havia morrido há menos de um ano, cortava a fruta todos os dias depois do almoço.
Mas há quem prefira desnudar as laranjas por completo:
“Todos os dias, depois do almoço, uma espiral mais bonita que a outra eu consigo esculpir no tempo. Sinto orgulho da laranja e das espirais que desembrulhamos juntas, como quem desfolha o bem-me-quer. Antes, lavo as mãos. E depois de arrebentar o corpo da laranja com os dentes passo o resto do dia cheirando minhas patas, estátua de cão de jardim de infância”.
Essa é a poeta Bruna Beber que, descobri, ama tanto as frutas quanto eu. Ela acaba de lançar a plaquete “Sal de Fruta”, pelo Círculo de Poemas, união das editoras Fósforo e Luna Parque. Neste pequeno (mas imenso) livro, já entre os melhores do ano, ela homenageia 14 frutas e, no único desacordo comigo, humilha lindamente o pobre melão. “É um janota sem humor, o parvo das previsões, e nota-se que até a água não sente qualquer satisfação em viver represada numa bolota amarela e calhar de ser confundida com pus.”
Para a manga, Bruna é só romance (“A cereja do bolo das frutas não é mãe nem cão, é amante, e nunca se confunde”). Com o caju, faz filosofia (“Quem é fruta sabe que somos carne e alívio, o peso está no espírito e o espírito, só de busto, tem noventa e sete centímetros”). Para o figo, elegante e sedutor, faz reverência (“Gostoso! Na geleia e no perfume, abre a penteadeira das emoções; na escala celeste só é contemporâneo do mel.”).
Na minha família, além de nos ajudar a marcar nossos hábitos e os traços de nossas personalidades, as frutas têm lugar também de comunhão: na infância, eu e meus irmãos nos reuníamos em círculo, de boca aberta, esperando a vez que o pedaço da espécie a ser descascada e cortada por minha mãe ou por meu pai fosse oferecido na ponta da faca em vôo direto às nossas bocas. Era um momento de diversão, de hedonismo, mas, às vezes, também de disputa — especialmente quando se tratava de morangos trazidos em pequenas caixas de madeira diretamente de São Paulo no fundo da mala de mão da minha mãe.
E que surpresa encontrar o caju, esta fruta tão nordestina, em garrafas do outro lado do Atlântico
Um dos meus irmãos era louco por sapoti mas, quando fazia dieta, era só melancia. Já minha mãe, quando queria emagrecer, a receita eram dois dias na água de coco e nada mais. Na minha casa da infância, havia uma árvore de cajaranas, que jamais cruzaram meu caminho novamente, mas que eram devoradas por nós polvilhadas de sal, como fazíamos também com as mangas verdes. Qual foi meu prazer, então, ao descobrir, no ano passado, o colombiano mango biche, que ainda por cima reúne limão e ají? Outra descoberta tardia foi a lichia, com quem me deparei apenas aos 23, apresentada por um colega de jornal que obviamente não pôde escapar desse apelido (“o” lichia).
Hoje, as frutas também me chegam pelo nariz. No vinho, os aromas primários geralmente têm a ver com a casta da uva que foi fermentada e podem remeter às diferentes famílias: as cítricas (limão tahiti e siciliano, laranja pera e baía, lima da pérsia, tangerina), as de caroço (pêssego, damasco), as vermelhas (morango, cereja, framboesa), as pretas (ameixa, cassis, amora), as do bosque (uma mistura das chamadas berries dos dois grupos anteriores), as de polpa branca (maçã, pêra), as tropicais (abacaxi, maracujá, caju, goiaba), entre outras que talvez nem conheçamos por aqui. Se o vinho for feito das variedades da família Moscato ele pode trazer ainda o aroma de… uva.
Quando o vinho é jovem, é comum que esses aromas sejam bem flagrantes e podemos decifrar de que variedade de uva falamos pelas notas de outras frutas. À medida que vai envelhecendo (e se isso acontece de maneira feliz) a nota frutada vai ficando mais discreta para dar vez a outras como couro, terra molhada e cogumelo. Mas se a fruta some e fica um vácuo é porque a hora de beber aquela garrafa passou e você não aproveitou.
Mas há também os casos em que frutas mais inesperadas aparecem como nota de evolução de um vinho. Um caju, por exemplo, pode aparecer em Borgonhas brancos antigos que são caríssimos. E já pensou a surpresa que é encontrar esta fruta tão nordestina em uma garrafa feita do outro lado do Atlântico? Já soube que essa nuvem doce e deliciosa é capaz de sair, como em um feitiço, de antigas garrafas de Montrachet.
Entendo que o melão não é a fruta mais sexy, mas ele tem seus momentos
Dizer que um vinho é frutado, portanto, é dizer pouca coisa. Para ser mais específico, melhor falar a que fruta nos referimos e qual é seu ponto de maturação. Se estiver fresca, concluímos que o vinho está cheio de acidez. Neste caso, os portugueses usam o termo “crocante” para remeter ao estado físico da fruta. Já eu penso na sensação que deixa nos dentes, ásperos e secos. Se a fruta parecer madura, falamos que o vinho é generoso e é possível que seja mais alcoólico e amplo. Se a fruta parecer em compota, o vinho deve ser mais pesado ainda, talvez tenha até alguma sobra de açúcar por ali. E, caso mais lamentável, também pode ser o da fruta passada: uma coisa flácida, plana, triste.
E aí, falando em tristeza, volto ao melão de Beber, que, “adestrado na autoridade da melancia e na arrogância do pepino, espelha e contradiz toda a tristeza do mundo em sua republicaneidade cintilante”. Preciso falar com a poeta. Entendo que o melão não é a fruta mais sexy, mas ele tem seus momentos. Se vem envolto em redinha vermelha e está gelado, ele oferece açúcar e frescor suficientes para iniciar um novo dia, como um dentifrício que dilui a saliva quase sólida herdada de uma noite de bebedeira, repleta de frutas que chegaram não só à boca, mas às narinas também.
- Sal de Fruta
- Bruna Beber
- Círculo de Poemas
- 40 páginas
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Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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