Espaço Sonoro — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

Espaço Sonoro

Já que não dá para impedir o outro de ser o que ele quiser, nem de abaixar o volume dele, como muitas e muitas vezes gostaríamos, a saída vai ser inventar bolhas imersivas

26 de Setembro de 2023

Você já parou pra pensar que existe um espaço consideravelmente amplo ao nosso redor que emite ondas que nos invadem, queiramos ou não?

Neste minuto, por exemplo. Para e escuta.

O som é uma das poucas coisas das quais não conseguimos nos esconder. É impossível não ouvir um terremoto ou alguém enlouquecido gritando na sua frente. Fechar os olhos sim, tapar os ouvidos mesmo, jamais. É muito mais simples e barato erguer quatro paredes para nos tirar da luz do que do som. Deve haver inclusive razões evolucionistas para isso. Enfim, esse o espaço sonoro, que fica entre o eu e o outro.

Vim passar uns dias na praia pra escrever, como faço às vezes, na busca romântica (alô século XVIII) por um refúgio de paz e silêncio. Aí começa uma música bem alta que sai de uma casa lá longe. Depois outra, mais perto. Aí outra. De repente ficou bem claro que o mundo é um lugar em contínuo movimento e isso faz barulho. Estou trabalhando num novo projeto que envolve voz e som, e minha cabeça anda mergulhada no tema, deve ser por isso que ando sensível.

Então lembrei que há muitos anos fui para uma praia nos Estados Unidos — essa Meca da defesa das liberdades individuais e do direito de cada um ser o que quiser — e foi curioso ver uma longa placa com tudo o que podia e o que não podia fazer ali. Imagina você chegar num lugar lindo, numa época em que ainda não era moda esse grau de didatismo político, e estar escrito que tem que prestar atenção nas ondas e na correnteza, que ali não tinha guarda-vidas então você era o responsável pela sua vida (ou morte), que não podia jogar lixo na praia, nem fazer sexo, ficar pelado, fazer picnic, jogar bituca de cigarro, deixar camisinha, levar cachorro, nem qualquer tipo de aparelho de som. Enfim, você pode fazer o que quiser, desde que não vá atrapalhar a liberdade — e o espaço — do outro.

O mundo é um lugar em contínuo movimento e isso faz barulho

Como nos defender do outro? Ah, antiga, antiquíssima questão. Por incrível que pareça, uma das mais eficazes tecnologias de silenciamento que produzimos foi a prensa de tipos móveis, que deu origem ao livro individual, talvez uma das mais libertadoras invenções humanas. A partir daí, cada um podia ler sozinho e, mais importante, em silêncio e deixando sua própria mente pensar e assim produzir a sua verdade. As ideias não circulavam mais somente a partir dos púlpitos das igrejas ou das arenas, com o mestre da retórica da moda naquele momento. Sim, Gutenberg e a leitura silenciosa estão na base da subjetividade individual privatizada moderna e, assim, das ideias (ideais?) de autonomia e liberdade.

Atualmente fabricamos mais barulho e líderes carismáticos mais corrosivos que antes. Mas também estamos mais eficazes nas técnicas de defesa. Por exemplo, temos hoje o fone de ouvido com um recurso tão prosaico como o cancelador de ruído (ótima expressão, se a coluna fosse de humor, tava pronta). Mesmo se você não estiver ouvindo música, é ótimo para, por exemplo, usar o bloqueador no avião, esse lugar tão barulhento. Ou diante de gente chata, como os adolescentes descobriram há tempos.

Com a tecnologia concentrando em espaços cada vez menores todas as funções humanas, cada um de nós carrega consigo a hipertrofia de suas próprias habilidades. Além de um olho que vê e grava (naturalizado como câmera), temos sempre à mão um alto-falante bem mais potente que a mísera voz humana. E ligamos ele no metrô, na sala de aula, na laje, no carro. Uma pessoa pode ficar ouvindo áudios no metrô ou ‘baixinho’ no meio da reunião. Ou, num lugar público aberto, como uma praia ou um parque, formam-se pequenos coletivos com marcadores de estilo, cada um com seu figurino, cabelo, música, linguagem e caixinha de som.

Formam-se assim mini bolhas semipermeáveis. Se a bolha sonora do vizinho está um pouco alta, você aumenta a sua para ter o aconchego de estar na própria tribo, e não ser invadido pelo reggae ou sertanejo do outro. Digamos que há epistemes estético-identitárias concorrentes.

A pergunta que comecei a me fazer é: para onde iremos? Um caminho, talvez a primeira hipótese já desenhada no início da modernidade, é o de manter o conceito de espaço público e discutir as formas de uso desse território comum. Por exemplo, fazer votações para ver qual estilo a maioria gostaria de usufruir naquele momento. Estilo de música, de cobrança de impostos, de distribuição ou não de riqueza comum, de amor livre ou mais organizado etc. Também poderia ser um esquema de rodízio. Primeiro o meu gosto, meu estilo, meus representantes no governo da pracinha, depois os seus. Poderia se aplicar também a estratégia do consenso, buscar fazer um mix ou inventar um estilo eclético o suficiente para agradar gregos e troianos. Esse caminho pode ser resumido assim: há um só planeta e várias tribos – vamos nos organizar então galera.

Mas talvez estejamos indo (nós, a tecnologia e o mercado) em outra direção: a de criar espaços sonoros e mentais cada vez mais eficazmente protegidos. Uma espécie de isolamento acústico subjetivo.

Já que não dá para impedir o outro de ser o que ele quiser, nem de abaixar o volume dele, como muitas e muitas vezes gostaríamos, a saída vai ser inventar bolhas imersivas cada vez mais convincentes e ‘realistas’. Nossa mente já está se habituando com a ideia de cada um viver no seu meta-self-verso. A gente vai conseguir criar óculos e vestíveis e sensores neurais eficazes o suficiente para permitir a cada tribo uma Primeira Vida muito agradável (Second Life era só o aperitivo). Ou mesmo para cada subjetividade individual. Para cada um poder ser e falar e escutar o que quiser, bem em paz. E bem sozinho também.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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