Maria Homem
Do outro lado do espelho
Todas essas são histórias de amores desencontrados. Amores reais ou imaginários
Muita gente comentou a última coluna, por todos os canais. Comentários aliás sempre muito bem-vindos. Vários homens disseram que o texto – sobre amores perdidos – falava muito mais de um ponto de vista feminino, no que tinham total razão. E pediam, literalmente, um lugar de fala. Assim, na coluna de hoje, vamos atravessar o outro lado do espelho e dar voz aos vários depoimentos que chegaram até aqui.
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Quando você era adolescente e estava aprendendo a se relacionar sem a mediação da sua família, você logo entendeu que talvez fosse melhor disputar o brinquedo com o irmão do que disputar a atenção da menina que você gostava com metade da sua sala. Na verdade, na época você não entendia ainda, mas você talvez gostasse daquela menina justamente porque todos os seus amigos também gostavam. Quem sabe no início da vida a gente goste mais de algo não tanto pela coisa em si mas pelo valor que os outros dão para a coisa. Sua primeira dor de amor foi justamente perceber que ia ter que enfrentar ou ser traído ou trair o melhor amigo. Tudo o que você queria era achar um lugar confortável no mundo mas logo caiu no jogo intrincado da vida, que parecia já tão estranha. Com os meninos, jogo e competição; com as meninas, fuga, cobrança e outro tipo de jogo.
Diante do imperativo de movimento e diversão e festa, você se sentia fazendo coisas sem parar. Na quinta-feira já estava cansado de se relacionar mais outros quatro dias
Aí você cresceu e entrou — ufa — na categoria jovem, com todo um universo, uma universidade ou um mercado de escolhas à sua volta. Num primeiro momento foi uma linda sensação de liberdade, poder passear em todas as rodas (gigantes) das possibilidades de relação. Depois, justamente por isso, você percebeu que estava perdido, girando de roda em roda, de corpo em corpo, e de repente não sabia mais o que queria ou para quem se mostrava ou o que conquistava. Diante do imperativo de movimento e diversão e festa, você no fundo só se sentia fazendo coisas sem parar e chegava quinta-feira já estava cansado de ter que trabalhar se “relacionando” mais outros quatro dias da semana.
Depois de ter “aproveitado bem a vida”, você chegou aos 30 anos e agora tinha acabado a brincadeira. Você nem estava muito bem preparado para saber no que ia trabalhar ou se desempregar nas próximas décadas e de repente as meninas, aliás, jovens mulheres só queriam compromisso e futuro. Elas estavam na idade de casar e a questão era se você era ou não era um bom partido. Ou um partido digno desse nome, elegível para o cargo. Como você estava posicionado no mercado afetivo-sexual? Quantas moças de boa família ou dinheiro ou beleza você tinha ao seu dispor? Pera, e o amor, isso existe? Talvez tudo não passasse de uma invenção romântica medieval-provençal. A dama e o proponente. Não importa tanto você ser quem você é, o negócio (sim) é cumprir a fantasia dela e da sociedade sobre o que se espera de você: jovem promissor com futuro brilhante. O moço que todo pai e mãe desejaria para sua filha/o. Será que mudamos tanto assim nos últimos séculos da história da sobrevivência humana?
Se isso era verdade nessa época, aos 40 importa menos ainda quem você é e tudo o que pensa no fundo do seu coração (ops que coração?). Porque, agora, as mulheres estão chegando ao seu limite reprodutivo e você foi relegado ao papel de macho reprodutor. E não reclame. Elas ainda desejam você (ou sua figura) e ainda não partiram totalmente para um bom espécime do banco de sêmen. Sim, você estava evitando a faixa das mulheres de 30 anos nos aplicativos pois todas estavam desesperadas para casar. E agora ficou atônito que as de 37-43 estão querendo transar só se for sem camisinha. Oi? Esse papel não era meu? Sim, agora você se sente um pobre touro funcional.
Quer seja dessa maneira ou de outra, você acabou sendo pai e tem um lindo baby para passear na praça todo orgulhoso e assediado num dia de sol. Mas a alegria dura pouco. Logo os bebês crescem e as mulheres cansam ou se irritam e agora a briga é por cada gesto mal colocado. Como você não percebeu que tudo o que você construiu ia virar pó? No fundo, ela te desqualifica e diz que você não vale nada como homem: nem na cama, nem na vida, nem na sala de visita.
Pois é, o mundo mudou muito rápido desde que você entrou nesse labirinto e agora bateu a crise. A famosa, a clássica, a incontornável crise da meia-idade. Aos 50, quase tudo perde o sentido e você já viveu o suficiente para ver que não é tão maravilhoso quanto sua mãe, seu espelho e sua primeira namorada da província (ou da bolha) achavam. E, enfim, você entende, pobre avestruz: ela gosta do casamento e não de mim. O seu mundo começa a desmoronar.
É o momento da apatia cínica, da ira semifascista, da síndrome do pânico ou da depressão. Depende da moda diagnóstica que seu psiquiatra segue ou do tipo de coach que sua empresa oferece – qualquer um desses serviços sai mais barato para segurar a “produtividade” no final. E também do gabarito do advogado de família que você pode contratar. Separação? Às vezes você ousa sonhar. Mas não tem coragem, melhor não. Então você fica nessa família mesmo, com medo da ameaça velada ou explícita dela fazer da sua vida um inferno. Ou medo do seu superego sussurrar que você é um loser total, sem ao menos uma família pra exibir nos eventos.
Logo vai respirar bem e se maravilhar com o fato de que você pode até estar muito cansado, mas a vida é incansável
Aos 60 ou 70, dependendo da aparência física que deu pra conservar, você já está mais experiente e casca-grossa e aprendeu o óbvio: elas só querem saber do seu dinheiro. Sugar daddy. Ou você está velho demais mesmo para isso?
Mas tudo bem se você não for o pica das galáxias com a Ferrari na garagem, ou o phodástico do superbônus na manga. Se você for um boy fracasso ou mesmo boy lixo. Ou a farsa que só você sabe no fundo que é mesmo. Agora tem dez mulheres interessantes para cada homem no mercado, e você, finalmente, está nadando de braçada.
Todas essas são histórias de amores desencontrados. Amores reais ou imaginários.
Você vai então perceber que o sim é, de fato, o descuido do não. E se perguntar se ainda tem energia e uma colher de coragem para se desvestir desses inúmeros papéis e se revelar desarmado diante de um outro alguém.
Nessa hora, você até pode sentir um pouco de medo. Mas logo vai respirar bem e se maravilhar com o fato de que você pode até estar muito cansado, mas a vida é incansável.
Que haja a sorte do encontro, a coragem de sustentar o desejo e a graça de não definhar.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
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