CV: Gaby Benicio — Gama Revista
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CV: Gaby Benicio

Formada em letras, a paulistana já foi fotógrafa e, hoje, é a melhor sommelière da França, realizando um trabalho nada ortodoxo, mas afetivo, com vinhos naturais no sul do país europeu

Ana Elisa Faria 16 de Maio de 2023

É do Brasil o prêmio de melhor sommelière do ano entregue pelo Guia Michelin em 2023. A dona do título, inédito, é a paulistana Gaby Benicio, 43, que vive na França desde 2005, ano em que chegou por ali para estudar fotografia na Sorbonne, mas logo se apaixonou pelos vinhos. Desde então, não tirou as taças das mãos nem do nariz.

Ao lado da chef Amélie Darvas, ela já teve um restaurante em Paris, o Haï Kaï, localizado no canal Saint-Martin, região boêmia que foi devastada pelos ataques terroristas de novembro de 2015, fato que as fez fechar o estabelecimento. A distância da gastronomia e dos vinhos, no entanto, durou pouco.

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Algum tempo depois, durante uma viagem pelo sul da França – o paraíso do vinho natural –, elas se apaixonaram por uma construção medieval, um presbitério [parte da igreja reservada à moradia dos sacerdotes] na pequena cidade de Vailhan, que abriga cerca de 150 habitantes, e onde hoje fica o Äponem, a nova casa da dupla.

A 800 quilômetros de Paris, o local, cuja lista de espera chega a seis meses, tem uma estrela Michelin e a estrela verde, distinção do prêmio dada a restaurantes eco-responsáveis. Por lá, elas, junto a uma equipe formada apenas por mulheres, oferecem menu degustação com harmonização de vinhos, tudo às cegas.

Conhecida por uma sommellerie ousada, sem seguir padrões rígidos, porém afetiva e sensorial, Gaby diz que ficou surpresa e feliz com a premiação recebida no mês de março.

É um título novo, sou a primeira a recebê-lo: uma estrangeira, mulher, de visão nada ortodoxa. É algo raro por várias razões

“Eu parto sempre não de etiqueta, mas da experiência íntima da degustação. E acho muito incrível que esse trabalho, que é totalmente atípico, seja recompensado. É bem interessante”, conta.

No papo abaixo, Gaby Benicio fala a Gama sobre a mudança de carreira, o trabalho com vinhos naturais e detalha os bastidores da vida como sommelière em uma aldeia francesa.

  • G |Você começou a carreira como fotógrafa, foi à França para estudar imagens do século 17 na Sorbonne e por aí ficou, mas mudou de área. Da fotografia, como você foi parar no universo dos vinhos? Como enxerga os recomeços na vida profissional?

    Gaby Benicio |

    Eu sou fotógrafa, foi a minha primeira profissão. Eu vim à França em 2005 para fazer mestrado e doutorado. Trabalhava com a imagem invisível no século 17, as emoções contidas nas artes nesse período. Então, primeiro eu tive um pezinho na filosofia, na literatura e na estética, e, depois, entrei no mundo do vinho por uma via mais cultural, uma abordagem filosófica dessa bebida, que é sagrada, que acompanha a humanidade há muito tempo. Então, o meu approach é bem atípico com relação a essa maravilha. Comecei escrevendo textos de uma forma um pouco abstrata até que decidi fazer alguns cursos. Tirei o meu diploma de sommelière para entender de maneira mais empírica o universo dos vinhos. E aí eu comecei a frequentar os vinhedos, a ir em degustação, degustação, degustação. E acabei virando sommelière e trabalhando com isso. Abri um primeiro restaurante em Paris, em 2012, com a minha sócia atual, que é a chef Amélie Darvas.

  • G |Como foi a experiência com essa primeira casa, o Haï Kaï, na capital francesa?

    GB |

    O restaurante ficava no canal Saint-Martin, uma região bem burguesa e descolada de Paris. É um bairro dinâmico, em que a cultura dos vinhos vivos e naturais é bem forte, há também ali uma gastronomia mais engajada. Mas a gente estava lá em [novembro de] 2015, no meio dos atentados terroristas [série de ataques simultâneos ocorridos em Paris e que deixaram mais de cem pessoas mortas e dezenas de feridos] e foi bem, bem complicado para nós. Estávamos no centro dos atentados, perdemos gente, tivemos de nos abrigar embaixo das mesas enquanto os terroristas passavam. Foi muito difícil, e o bairro ficou totalmente destruído. Tentamos nos recuperar moralmente e intelectualmente, a vizinhança tentou se mobilizar, porém, a região sofreu inúmeros prejuízos. Assim, decidimos nos mudar, sair daquele bairro, mas pensamos que o novo restaurante ainda seria em Paris, mas acabamos indo para o sul da França e ficando.

  • G |E como vocês foram parar lá?

    GB |

    Fomos para o sul visitar alguns vinhedos e encontramos um presbitério que estava à venda havia três anos e meio, num lugar incrível, lindo, maravilhoso, cheio de hortas abandonadas, numa cidadezinha de 150 habitantes, onde não existe nem comércio. É um local onde há realmente a noção de se estar em uma aldeiazinha, no meio de vinhedos e oliveiras. Foi assim que deixamos tudo para criar o projeto do Äponem aqui em Vailhan.

  • G |Como é o dia a dia de trabalho nesse ambiente tão bucólico que é simples, mas, ao mesmo tempo, abriga um restaurante estrelado, uma sommelière premiada? Vocês compram insumos para os pratos onde?

    GB |

    Temos uma vida de monjas, sem nenhuma distração, estamos aqui para trabalhar, para ficarmos bem concentradas. Mas é isso também que faz a força e a fragilidade do projeto, porque é uma dedicação total. Temos sete hortas e tentamos trabalhar com a ideia de subsistência. É um modelo um pouco virtuoso, de equilíbrio, bem engajado. Também trabalhamos só com a pesca de linha, pesca de anzol aqui da região porque estamos a meia hora do Mediterrâneo. Então, trabalhamos com alguns pescadores locais e a gente tenta realmente focar no que é daqui, tudo bem local.

  • G |Äponem em pataxó significa felicidade, e desde a inauguração do restaurante, em 2018, vocês já tiveram muitas alegrias com o projeto, como a estrela e a estrela verde no Michelin. Qual é a sensação?

    GB |

    Nossa, é ótima! O restaurante foi um super sucesso logo de cara, estamos sempre lotados, há uma fila de espera de seis meses para conseguir uma mesa aqui. A gente ganhou a primeira estrela Michelin com cinco meses de funcionamento. Depois, também recebemos a estrela verde; fomos o primeiro restaurante no mundo a ganhar essa estrela, que é um prêmio para estabelecimentos sustentáveis, eco-responsáveis, que têm um engajamento ecológico.

  • G |Apenas mulheres trabalham no Äponem e todas ganham um salário igual, certo? Por estar localizado a mais de 800 quilômetros de Paris, as funcionárias moram aí?

    GB |

    Exatamente. Não é que a gente não goste dos homens [risos], não é isso, mas é um projeto que atinge um perfil feminino, não sei bem o porquê. E como a gastronomia na França é um universo bem arcaico e bem masculino, acho que nesse modelo inverso, como tem muita mulher, os homens não ficam tão à vontade. E a gente aloja todo mundo, as oito pessoas da equipe moram aqui.

  • G |Qual é o público que frequenta o restaurante?

    GB |

    Temos uma clientela enorme vinda dos países nórdicos, de dinamarqueses, muitos suecos, bastante belgas, parisienses, suíços, espanhóis, e gente do sul da França também. Alguns ingleses vêm também, mas pouquíssimos brasileiros descobriram. A gente tem uma história bem conhecida, mas quase ninguém sabe que tem uma brasileira fazendo isso aqui. É muito louco.

  • G |Com o prêmio de sommelière do ano para você, uma brasileira, quem sabe esse cenário não mude, né?

    GB |

    É verdade. Eu espero, porque é legal valorizar o Brasil. Tento sempre contar a história desse país maravilhoso que é o Brasil, que tem talento pra caramba. A minha trajetória, a minha formação na USP [Gaby cursou letras na Universidade de São Paulo], por exemplo, foi tão maravilhosa e sempre me ajudou em todo o meu percurso profissional. A formação humanista que eu tive aí na USP foi muito melhor do que todas as que eu tive aqui. A gente é um povo que sabe fazer, que sabe se reinventar sempre, que não desiste. Isso é raro e tem que ser valorizado.

  • G |No Äponem, vocês trabalham com menu degustação harmonizado com os vinhos?

    GB |

    Isso. A gente tem um menu que é totalmente às cegas, ninguém escolhe nada, cada dia é um cardápio diferente [o restaurante funciona de sexta a segunda]. A ideia é como ir a uma peça de teatro. Então, os clientes chegam todos ao mesmo tempo, são acolhidos ao mesmo tempo. E a gente vai fazendo um percurso, uma narrativa gastronômica surpresa, na verdade. Contamos uma história que eles não conhecem nem escolhem. E eu crio as harmonizações a partir de muitas referências. Eu tenho 1,2 mil referências de vinhos, e só vinho vivo [natural]. Isso é muito importante pra gente, trabalhar só com vinhos vivos, engajados, sem artifícios.

  • G |O que você sentiu ao ser eleita a melhor sommelière do ano na França?

    GB |

    Achei incrível ganhar um prêmio que é tipo o Oscar na minha categoria. Fiquei bem surpresa. É um título novo e eu sou a primeira a recebê-lo: uma estrangeira e, além disso, sou mulher, então, é algo raro por várias razões. Inclusive, o trabalho que eu pratico não é nada ortodoxo, é uma sommelierie afetiva, sensorial. Eu parto sempre não de etiqueta, mas dessa noção de degustação, dessa experiência íntima da degustação. E acho muito incrível que esse trabalho, que é totalmente atípico, seja recompensado. É bem interessante.

  • G |O que te moveu a trilhar o caminho do vinho?

    GB |

    A emoção. É uma bebida sagrada que pode levar a gente bem longe, bem bem longe; é uma bebida que implica cultura, magia, que implica ebriedade, uma elevação, estar um pouco ébrio. É o encontro de homens, de mulheres, de terroir, de anos, esse espaço-tempo, que é bem interessante. O vinho não é só uma bebida, é um encontro de outras coisas além de uma bebida.

  • G |O trabalho com a fotografia artística também pode ser abstrato, levar as pessoas para longe. É possível fazer alguma relação entre essas duas ocupações que você já teve na vida, como fotógrafa, lá trás, e como sommelière, função que você ocupa agora?

    GB |

    Com certeza. O meu trabalho de artista sempre foi tentar concretizar conceitos abstratos. Ou seja, acho que pouca coisa traduz uma emoção como uma imagem. Acho que a cozinha, e o que a gente sente no vinho, são uma tradução também desse conceito abstrato. O amor e a paixão são emoções que a gente sente. Como é que você cria uma imagem disso? Às vezes, a gente pode traduzir isso por meio da arte. E isso existe também na gastronomia. Muitas vezes, quando queremos dizer que amamos alguém, a gente cozinha para essa pessoa. Ou você bebe um vinho. Também é emoção, né? Então, está totalmente ligado. Eu acho que poucas coisas podem estar tão ligadas quanto esses trabalhos. É uma ligação muito precisa. Eu continuo o trabalho que eu sempre fiz como pesquisadora, artista e agora como sommelière. É exatamente o mesmo trabalho.

  • G |Você tem vontade de voltar ao Brasil, abrir um restaurante por aqui?

    GB |

    Tenho muita vontade de fazer pontes com o Brasil, poder levar esse trabalho ao país. Eu já faço alguns trabalhos sobre os álcoois brasileiros, como a cachaça, e também gostaria de descobrir as potencialidades dos vinhos do Brasil, sei que tem muita gente fazendo vinho natural no Brasil, no sul. Tentar criar pontes e fazer encontros seria muito interessante, e é algo que pode também trabalhar nossa autoestima de brasileiro, sabe? Não é pouca coisa uma brasileira ter sido eleita a melhor sommelière da França. Precisamos falar disso porque eu sou brasileira também. A nossa tendência é a de elogiar muito o estrangeiro,  venerar o que vem de fora, mas há coisas maravilhosas no Brasil que têm de ser valorizadas, e talvez a gente só precise desse olhar encantado, mágico, de fascinação que quando estamos dentro enxergamos menos.

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