Marcello Dantas
Pela luz dos olhos meus
Acredita-se que a psilocibina tenha efeitos em todo o cérebro, inclusive, nos nervos que o ligam a nossos olhos e nas regiões que processam a visão
Desde que me entendo por gente usufruo da vida com o daltonismo. Quase toda semana ouço coisas do tipo: “Mas como você pode ser curador, sendo daltônico?” Mas quem disse que arte é só cor? E quem disse que as cores que vejo não são cores, apenas por não serem as mesmas que as outras pessoas veem? Nunca me interessei por curar essa minha condição, pois acho que ela me ajuda a ver o mundo de outro jeito.
Daltônicos são testados com um método chamado Teste de Ishihara, onde números são escritos usando pixels de cores variadas que podem ser lidos por quem tem a visão normal, mas são impossíveis para quem é daltônico. Já fiz esse teste inúmeras vezes e sou qualificado como um severe protan, ou seja, um alto índice de daltonismo.
Pesquisadores acham que as mudanças geradas pelos psicodélicos são causadas por alterações na atividade cerebral
Semana passada, um artigo foi publicado na imprensa internacional sobre o caso de um homem que havia tido uma sensível melhora em seu daltonismo depois de uma dose importante de psilocibina, os cogumelos psicodélicos. O relatório foi escrito por médicos e pesquisadores da Cleveland Clinic, em Ohio, e da Universidade do Alabama, em Birmingham, publicado na revista Drug Science, Policy and Law.
Acredita-se que a psilocibina tenha efeitos em todo o cérebro, inclusive, nos nervos que o ligam a nossos olhos e nas regiões que processam a visão. Os pesquisadores acham, então, que as mudanças geradas pelos psicodélicos neste sentido provavelmente são causadas por alterações na atividade cerebral. Não existem evidências de que tomar essas drogas pode modificar nossa sequência de DNA, logo, não é de surpreender que os efeitos da psilocibina no daltonismo sejam parciais e temporários. Mas o fato de qualquer alteração ter sido observada, e por um período prolongado, escrevem os autores, “levanta questões importantes sobre a possibilidade da psilocibina induzir alterações duradouras no processamento visual em algumas pessoas”.
Quando a minha irmã me enviou o artigo, não tive dúvidas: preciso fazer esse teste. E assim o fiz. Na primeira vez que fiz acertei apenas 6% do teste, então, tomei 3 gramas de cogumelos albinos e esperei por aproximadamente uma hora. Fiz o teste novamente e obtive 17% de acertos. Esperei mais uma hora, fiz o teste novamente e acertei 33%. Continuo sendo qualificado como daltônico com os três resultados, mas é nítida a mudança de percepção quintuplicada em menos de duas horas. De fato, os psicodélicos têm capacidades regenerativas e de neuroplastia em como nosso cérebro se conecta.
Quase todos os benefícios dos psicodélicos são medidos de forma subjetiva e bastante alongada no tempo
O mecanismo pelo qual a psilocibina pode afetar a percepção de cores em pessoas daltônicas não é bem compreendido ainda. Uma teoria é que ela pode alterar a forma como o cérebro processa a informação visual, permitindo a percepção de cores que antes eram indistinguíveis. Outra teoria é que a psilocibina pode aumentar a sensibilidade das células cone no olho, responsáveis pela percepção das cores.
Quase todos os benefícios dos psicodélicos são medidos de forma subjetiva e bastante alongada no tempo. Encontrei nesse teste uma maneira de mensurar, de forma muito objetiva e rápida, o que está acontecendo no cérebro quando ele é ativado por uma substância com esse poder, entendendo que mesmo condições genéticas podem ser recambiadas para um novo caminho na nossa máquina de percepção, isso se ativadas pelas moléculas certas.
Isso não se trata de uma cura, mas, de uma primeira evidência mensurável do potencial que o conhecimento dos psicodélicos pode ainda gerar para a humanidade.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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