Não se faz mais tempo como antigamente — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Não se faz mais tempo como antigamente

Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre o calendário bolsonariano, a Schadenfreude de carnaval, um alvoroço de esperança e o retrogosto do pior governo da história

27 de Fevereiro de 2023

Não se faz mais tempo como antigamente

Paulo Leminski, 1991

Já deu pro calendário gregoriano: vamos logo aderir ao recém-lançado calendário bolsonariano.

É a revolução com que sonha o trabalhador brasileiro.

Enquanto especialistas se digladiam debatendo vantagens e desvantagens da semana de quatro dias de trabalho, a versão de Jair Bolsonaro radicaliza e propõe duma vez três dias de labuta semanal.

Assim, faz jus à jornada média de 4,8 horas diárias de trampo do ex-presidente durante seu mandato. Melhor: o horário de almoço é maior do que o tempo gasto em reuniões com ministros.

Com dois sábados e dois domingos por semana, você tem muito mais tempo pra fazer nada. Paulo Leminiski deu a letra no poema “Blade Runner Waltz”, publicado postumamente em “La Vie en Close”: “Toda aquela fortuna em tempo a gente gastava com bobagens”.

Tenho certeza de que o empresariado, depois de quatro anos sem reclamar das taxas de juros mais altas do planeta, também vai aceitar em silêncio as taxas de descanso mais altas do capitalismo.

E no caso de alguma tragédia, como enchentes no sul da Bahia com 31 mil desabrigados e 27 mortos, o dia útil é convertido em ponto facultativo. Automaticamente, a agenda fica livre pra passear de jet ski ou andar de moto com os amiguinhos. Mas não pode reclamar das urnas eletrônicas quando levar uma surra eleitoral no estado.

Pra se diferenciar da concorrência das tradicionais folhinhas Seicho-no-ie com suas frases motivacionais, o calendário bolsonariano deveria trazer frases desmotivacionais, como “Sou Messias, mas não faço milagre” e “Todos nós vamos morrer um dia”.

Custa 49,90 reais (calendário de mesa) ou 59,90 reais (parede), ao alcance de um clique no e-commerce Bolsonaro Store – “Missão: oferecer produtos de qualidade a um público conservador e exigente”.

Francamente, achei caro. O lançamento só aconteceu agora, com o mês de fevereiro praticamente encerrado. O cidadão de bem recebe 12 meses mas na prática só fica com dez, tipo uma rachadinha cronológica. Alô, Celso Russomano, olha aí seu aliado roubando tempo do consumidor.

Vou festejar, vou festejar/ o teu sofrer, o teu penar

Jorge Aragão, Dida e Neoci, 1979

Atrás do trio elétrico, bloco, charanga, cordão ou cortejo só não vai quem já morreu – ou quem ficou com preguiça mesmo.

E o resignado folião de sofá nem conta mais com aquelas longuíssimas transmissões dos bailes de carnaval madrugada adentro, misturando embromação pura e simples com soft porn de salão.

Era um jeito de entrar na festa sem sair de casa.

Hoje é preciso se conformar com a cobertura chapa-branca das redes sociais. O Instagram tomou da Band e da TV Manchete a tarefa de mostrar ao mundo o que acontece no front da folia – seja no chão da praça ou nos bailes da vida.

São lugares física e emocionalmente distantes dos sambódromos, donde as superescolas de samba S/A há tempos expulsaram qualquer espontaneidade com seus desfiles tecnicamente perfeitos.

Mas por aqui também não sobra muita naturalidade, depois de tanto filtro e 57 selfies. Com o celular no ângulo certo, a fantasia improvisada vira figurino da Rosa Magalhães e uma fanfarra murcha parece a bateria furiosa do Salgueiro.

Pudera: ninguém esperou três anos pelo carnaval pra se conformar com a realidade. Daí não haver feed com o arlequim chorando pelo amor da colombina e sobrem stories com tanto riso, oh, quanta alegria.

O internauta, então, se pega num scroll infinito entre o FOMO, “fear of missing out”, e o JOMO, “joy of missing out”.

Navega indeciso entre a agonia de ser a única pessoa intocada pela euforia momesca e a alegria de ser única pessoa intocada pela euforia momesca – sorrindo no conforto da sua poltrona, longe dos inevitáveis perrengues de carnaval.

É perfeitamente compreensível uma leve Schadenfreude recreativa nessa época do ano. Afinal, a melhor reflexão sobre sentir prazer com o infortúnio alheio veio justamente de um samba, não de algum tratado metafísico alemão.

Jorge Aragão, Dida e Neoci são os autores de “Vou Festejar”, que Beth Carvalho transformou num hino da desforra: “Vou festejar/ vou festejar/ o teu sofrer/ o teu penar”. Com direito a repetição de “festejar”, pra reforçar o deleite com o tropeço do outro. Fala, Schopenhauer de Ramos.

Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem

Wislawa Szymborska, 1987

Mas como alguém pode gostar disso?

Disso, no caso, são centenas de pessoas sambando suadas, espremidas, sensação térmica de airfryer, sol na cabeça, possivelmente também chuva nalgum momento, celular malocado pra não ser roubado, eventualmente celular roubado mesmo malocado, cerveja quente, purpurina no olho, banheiro químico elevado a item de luxo, melhor com ele que sem ele, banda não necessariamente ensaiada.

Devolvo a pergunta: mas como alguém pode não gostar disso?

Disso, no caso, são corpos se esbarrando como se fossem um corpo só, ocupando as ruas como se as ruas tivessem sido feitas pra eles e não pros carros, ego dançando miudinho diante da efusão coletiva de serotonina, sacudindo sem lenço e sem documento, afinal é dia de perder a identidade mas só no sentido figurado, pochete enganchada na meia-arrastão, amor pra durar dois quarteirões – ou a vida toda.

Ah, para de romantizar o carnaval. Não tô romantizando nada.

Romantizar é fumar vape de vitamina e acreditar que faz bem pra saúde: na embalagem tá escrito “Restore”. Romantizar é entrar no link do stories que marcou seu perfil no Instagram, prometendo um sorteio capaz de fazer de você o cara mais rico do Brasil: atenção, depois da fraude nas Americanas essa bio ficou bem menos atraente.

Carnaval não é romantizável, não tem nada menos romântico que carnaval. Mas, como defende a polonesa Wilsawa Szymborska em seu poema “Possibilidades”, “prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem”.

E todo mundo se beneficia desse caos momesco.

Até quem foge pro mato ou pra uma praia deserta – diz que ainda restam alguns metros de areia sem cadeiras de plástico nem caixinha de som no talo, entre os 7.491 quilômetros de litoral brasileiro.

A folia, democrática, espalha seus benefícios mesmo entre aqueles que passam fevereiro todinho sem escutar um tamborim. Quando a vida como ela é retoma seu rame-rame habitual, quem pulou carnaval se encontra com quem pulou o carnaval e pronto: polinização cruzada de alegria, banho de cheiro pra lavar a alma, alvoroço de esperança.

Depois de tanta névoa uma a uma se desvelam as estrelas

Giuseppe Ungaretti, 1918

Parecia impossível, mas o governo de Jair Bolsonaro piora a cada dia que passa.

Ora, o mandato mais calamitoso da história do Brasil não terminou em 31 de dezembro de 2022?

Mais ou menos.

Mais: sim, terminou. Não há mal que dure pra sempre. Nem esse armagedom, embora os últimos 4 anos tenham se arrastado por uma eternidade, como se a Terra fosse Netuno e cada volta ao sol levasse 59.860 dias.

Menos: não, de certo modo não terminou, as consequências tão aí – e vão continuar por aí bastante tempo.

Sua herança é um rabo de lagartixa, agonizando mesmo depois de separado do corpo do bicho. Seu legado, o retrogosto de uma bebida ruim, capaz de amargar a boca muito depois de engolida. Seu espólio, um espírito público obsessor, assombrando o país diretamente do além-túmulo – mas pode chamar de Flórida.

Só agora, quando enfim começamos a espiar por baixo dos sigilos de 100 anos e o desfibrilador institucional tira do coma induzido os órgãos de fiscalização, enxergamos a dimensão real do que aconteceu.

Pra qualquer lado que se olhe, o cenário é ainda mais desolador do que se imaginava. Fome, desmatamento, rachadona, genocídio, isolamento, corrupção, aparelhamento e golpismo exibidos em todo seu horror.

Ah, alguém duvidava disso? Bem, pelo menos os 58 milhões de eleitores que votaram 22. Pior: boa parte dessa turma segue duvidando do desastre, numa resistência feroz em reconhecer o óbvio, a despeito das evidências se acumulando dia a dia.

Às vezes, excesso de claridade atrapalha a visão.

Na minha ingenuidade de Pollyana Moça, imaginei que ninguém acreditaria que os yanomamis morrendo seriam um truque do socialismo venezuelano, nem defenderia o pagamento gasolina e lanche pra marmanjo participar de motociata como um uso legítimo do cartão de crédito presidencial.

Mesmo quando “depois de tanta névoa uma a uma se desvelam as estrelas”, como escreveu o italiano Giuseppe Ungaretti no poema “Céu Claro”, tem quem prefira ficar com a cabeça enterrada num buraco negro.

Já passou da hora da autocrítica da direita.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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