Marcello Dantas
Atos de dois gumes
O Brasil continua sendo o país mais mortífero do mundo para defensores do meio ambiente. Proteger a própria vida passou a ser uma tarefa primordial do ativismo
O maior desafio do nosso tempo é conseguir separar sinal de ruído. Chamar a atenção das pessoas para fora das suas bolhas é das coisas mais difíceis de se fazer.
De que vale uma sirene se estamos todos com fones nas orelhas? Hoje, o ativismo precisa se infiltrar nos ouvidos de quem já não se atenta para mais nada além das próprias redes, e a realidade virou um ruído que atrapalha a percepção do Instagram. Com pautas que vão de mudança climática à discursos golpistas, os ataques às minorias e proteção a refugiados, existe um fenômeno ativista despertando no mundo.
Trabalhei por anos com um dos mais prolíficos ativistas do nosso tempo, Ai Weiwei. Com ele, aprendi que o ativismo exige ação rápida objetiva e, acima de tudo, poética, mas que quem o faz são seres raros e que, ademais, precisam se manter vivos.
O ativista, que deveria ser um especialista em mudança social, assume para si a responsabilidade de fazê-las, compensando (ou não) a falta de ação dos demais frente às questões. Definir-se como tal, significa estabelecer seus atos como aquelas que trarão transformações sociais efetivas, desconsiderando a atividade de milhares de outras pessoas. O ativismo é baseado nesse equívoco de que são os únicos que fazem algo, embora a mudança social esteja acontecendo o tempo todo.
Ser revolucionário é também saber parar e esperar. É importante saber como e quando agir para obter a máxima eficácia e quando é preciso não agir. Por vezes, os ativistas têm essa atitude de urgência que acaba sendo pouco estratégica.
É importante saber como e quando agir para obter a máxima eficácia e quando é preciso não agir
Da esquerda à direita, a mobilização ganhou novos tons recentemente. Porém, nem sempre foi assim, uma grande parte de protestos terminaram em fatalidades.
A história é repleta de exemplos. O advogado Robert Sobukwe liderou, na África do Sul, em 21 de março de 1960, muito antes de Nelson Mandela, um movimento de insubordinação às avessas. Ele pedia às pessoas negras que deixassem seus passes em casa e se entregassem para serem presos nas delegacias. Durante o violento regime de segregação racial, vigorava a Lei do Passe, entre outras, que exigia dos cidadãos não-brancos o porte de uma caderneta na qual constava autorizações para circular em determinados locais nas cidades sul-africanas. O protesto foi de natureza não-violenta, mas se tornou-se brutal em Sharpeville, onde a polícia abriu fogo contra uma multidão de manifestantes, matando 69 e ferindo 180. Sobukwe passou o resto de sua vida em uma cela solitária na Robben Island, na Cidade do Cabo.
Outro exemplo é, talvez, uma das mais fortes e famosas imagens de protesto da história, quando o monge budista vietnamita Thich Quang Duc ateou fogo em si mesmo, nas ruas de Saigon, em 11 de junho de 1963. O monge protestava contra o regime de Ngo Dinh Diem que era extremamente católico e aplicou políticas discriminatórias contra o budismo, enquanto cerca de 70 a 90% da população no Vietnã era budista.
O ato desencadeou uma reação em cadeia que mudou a história para sempre. Ao longo dos séculos, a autoimolação foi traduzida como uma forma de sacrificar o próprio corpo atirando fogo em si mesmo, em prol de uma causa que pode ser de cunho moral, político ou religioso. A prática tem raízes no budismo e hinduísmo.
Naquela manhã, cerca de 500 monges marcharam atrás de um carro enquanto carregavam faixas exigindo que as promessas de igualdade e tolerância religiosa fossem estabelecidas. Quando o grupo chegou em seu destino final, foram cercados por policiais que faziam barreiras de contenção.
Hoje, os protestos mudam de caráter e são menos marcados pelo sacrifício do que pela vontade de furar a bolha das redes
Thich Quang Duc desceu do carro junto com outros dois monges. Um deles colocou uma almofada no meio da rua, onde ele se sentou, na posição de lótus, enquanto o outro foi até o porta-malas do automóvel e tirou 20 litros de gasolina. Após recitar uma oração, em pouco minutos Quang Duc entrou em um estado de meditação profundo. Logo depois, um dos monges despejou a gasolina e, calmamente, Quang Duc apanhou um fósforo e o riscou. A multidão assistiu resignadamente as chamas tomarem conta do corpo do monge, que não se moveu de sua posição, tampouco alterou sua expressão à medida que o fogo o consumia.
Outra manifestação que marcou história foi o enfrentamento de tanques ocupando a praça da paz celestial, em Pequim, em 4 de junho de 1989, por um homem sozinho, até hoje nunca identificado, chamado apenas de tank man. A fotografia correu o mundo revelando o confronto entre o poder armado do governo chines que massacrou centenas de estudantes em protesto. Este homem, muito provavelmente, deveria ser um deles, e carregava consigo a determinação em permitir-se martirizar para se tornar um símbolo. A imagem emblemática foi censurada e, hoje em dia, na China, apenas 13% das pessoas sabem do que se trata, mostrando que o símbolo se perdeu para as novas gerações.
Estes protestos marcaram uma mudança em nossa percepção, articulada por meio do poder que estas imagens tiveram na grande mídia, especialmente, na nascente televisão. Hoje, com a fragmentação desta mesma mídia, os protestos mudam de caráter e são menos marcados pelo sacrifício do que pela vontade de furar a bolha das redes.
Inclusive em movimentos fratricidas, como vandalizar obras de arte em museus – como se fossem esses seus verdadeiros inimigos e, não, um de seus maiores aliados. Independentemente da causa nobre do alerta climático, os ativistas do Just Stop Oil trocaram os gigantes do petróleo pela pintura à óleo. Eles encontraram um jeito de chamar atenção para a sua ação, mas não conseguem uma aderência maior à causa por usarem como símbolo a fragilidade da arte, confundindo a audiência sobre seu alvo. A ideia de que obras de arte representam o status quo a ser atacado, falha por falta de fundamento.
No outro extremo, vemos movimentos ativistas desesperados, pessoas acampando na frente de quartéis rogando por uma intervenção militar sobre um processo democrático que consolidado à duras penas desde as Diretas Já, em 1984. Como se fizesse sentido se mobilizar contra o próprio direito de se manifestar que eles mesmos estão usufruindo.
Se Thich Quang Duc se imolasse hoje, em um vagão do metrô, ele só seria notado quando postado nas redes sociais. Os presentes, anestesiados pelas redes, correriam o risco de ignorar o martírio.
Por isso proteger a própria vida passou a ser uma tarefa primordial do ativismo, como uma luz de esperança. O Brasil continua sendo o país mais mortífero do mundo para os defensores do meio ambiente. Em 2022, mais de 200 pessoas foram mortas de acordo com a Global Witness. E a maioria dos assassinatos está em áreas rurais, onde a aplicação da lei é mais tênue e onde a história tóxica da escravidão no Brasil é mais sentida. Afinal, para todos os ativistas, estar vivo é essencial para manter essa faca cortando só no gume que se precisa.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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