Bairro da Liberdade: Donairre, garbo, graça, dona Margarida - Uma investigação — Gama Revista
©Andres Sandoval

Bairro da Liberdade O lugar dos restaurantes, dos karaokês e de um mundo inteiro de cantos e pessoas interessantes é examinado por Fabrício Corsaletti

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Donaire, garbo, graça, dona Margarida

Fabrício Corsaletti 29 de Março de 2020

Elegância. Sempre que penso em Margarida Haraguchi, a Dona Margarida, elegância é a palavra que me vem à cabeça. Não elegância quase sinônimo de ostentação (capricho neurótico, luxo sem riqueza, distinção de classe). Nem elegância quase sinônimo de indiferença (bom gosto morno, chatice estética, medo de se comprometer). Mas elegância de fato, como na primeira acepção do Houaiss: “disposição marcada pela harmonia e leveza das formas, linhas, combinação e proporção das partes, e no movimento; donaire, garbo, graça”.

Donaire, garbo, graça. Dona Margarida e tudo o que ela faz no seu izakaya Issa chegam até seus súditos (me incluo entre eles) como que envolvidos por essas qualidades antigas, que talvez sejam eternas. Se eu fosse rei, baixava uma lei: pessoas elegantes, verdadeiramente elegantes, devem ser tratadas com respeito redobrado, com embasbacada admiração. Pessoas elegantes são o mel da colmeia. Pessoas elegantes deixam essa joça melhor. Exemplos de pessoas elegantes: Chico Buarque, Chico Alvim, Susan Sontag, Dona Ivone Lara, Monarco, Mahatma Gandhi, Cate Blanchett, Marcello Mastroianni, Fernanda Montenegro e Dona Margarida.

A elegância, como a boemia, não dá camisa a ninguém. Mas quem precisa de camisa quando se tem elegância? Dona Margarida usa vestidos suntuosos, que eu não saberia descrever, mas não é isso que faz dela uma pessoa elegante — e sim o espanto que sua humildade produz quando entramos em contato com sua comida. Elegância: faísca que surge do atrito entre a humildade e a obra dos grandes. Pra ser elegante, é preciso ter lastro; é preciso ter chegado sozinho a algum topo inexplorado do mundo; é preciso que o tempo tenha passado através de você — e que você tenha marcado de modo afirmativo o seu tempo.

***

Segundo o editor de livros e hedonista profissional Milton Ohata, existe um antes e um depois de Dona Margarida no quesito botecos e restaurantes japoneses. E o que mudou desde que, em primeiro de dezembro de 2009, Dona Margarida assumiu o comando do Izakaya Issa? Ohata responde:

— Os restaurantes e bares japoneses às vezes eram sérios demais. Dona Margarida trouxe ao ambiente uma informalidade muito bem-vinda. Havia também certo preconceito, por parte dos proprietários, com fregueses que não fossem japoneses, nisseis ou sanseis. Dona Margarida trata qualquer um com igual simpatia. A variedade de saquês era mínima e o shochu era raro em São Paulo. No izakaya Issa você encontra uma incrível quantidade de rótulos de saquês e shochus, dos mais caros aos mais baratos.

Essa fartura de birita tem tudo a ver com o conceito de izakaya, que hoje é carne de vaca (adoro carne de vaca) mas em 2009 era novidade em São Paulo. Pra quem ainda não sabe (não escrevo pra minha turma, ô esnobe), izakaya é o boteco japonês especializado em bebidas. Nesses lugares, a comida é, ou deveria ser, secundária, como a tapa espanhola — sua função seria a de “forrar o estômago” e não te deixar cair de bêbado. Entretanto, mesmo no Japão os izakayas se tornaram famosos por seus ótimos pratos.

O izakaya da Dona Margarida tem mais ou menos o tamanho de uma garagem: é acolhedor como uma avó com janelas (embora não tenha janelas)

No izakaya Issa, eles são especiais. Ouçamos o que diz o crítico gastronômico Josimar Melo, em artigo publicado na Folha de S.Paulo no dia 11 de março de 2010: “Entre os petiscos, a estrela é o takoyaki, o popular bolinho de polvo, que se come nas ruas de Tóquio, preparado no balcão, na forma apropriada — é bonito o preparo, e gostoso o bolinho, de massa levíssima e cremosa. Também valem a pena as ovas de ouriço com limão e wasabi, a manjuba à vinagrete, o atum cru com soja fermentada, o tofu com algas…”

Dos pratos quentes, meu favorito é o sara udon: macarrão crocante acompanhado de frutos do mar, fatias de lombo de porco, shitake, legumes, massa de peixe etc. (Etc. = tempero secreto.) Mas se você não confia no meu paladar, no que estaria coberto de razão, escuta essa: a chef Helena Rizzo, do badalado Maní, de tempos em tempos se aboleta feliz no balcão do Issa — e quando vai embora parece satisfeita.

Falei do balcão e fiquei com vontade de comentar um pouco mais a estrutura física do Issa, sua arquitetura. Como o Kintarô, o izakaya da Dona Margarida tem mais ou menos o tamanho de uma garagem: é acolhedor como uma avó com janelas (embora não tenha janelas). O famigerado balcão — baixo, largo, de madeira nem escura nem clara — fica à esquerda de quem entra. Atrás dele estão as atendentes, duas ou três, depende do dia, e atrás delas a prateleira mágica, suas garrafas coloridas (com nomes em etiquetas que nunca são o seu) de saquês e de shochus. À direita, três mesas baixas, no tatame, mas que não obrigam ninguém a sentar na deveras humilhante posição de lótus, graças ao buraco (será essa a palavra?) de dois ou três palmos que há embaixo de cada uma delas: dá pra esticar as pernas sem problemas. Existem ainda duas salas depois da porta que leva à cozinha e aos banheiros. Porém a meu ver o verdadeiro Issa consiste na parte anterior a essa linha divisória: o espaço que vai da entrada até o caixa. Ali convivemos numa luz macia, indireta, caramelo (do outro lado a luz é branca, fria) — e a beleza do aposento japonês, de acordo com Tanizaki em seu ensaio de 1933 Em louvor da sombra (Companhia das Letras), provém da sua “gradação de sombras, nada mais, nada menos”.

Gradação de sombras, gradação alcóolica, gradação do volume da conversa. Quantas gradações antes da fatal degradação. Mais cedo ou mais tarde Dona Margarida se acomoda no canto da sua mesa barulhenta e pergunta pros seus amigos e amigas se querem mais saquê. Queremos. Comeram torô? Comemos. Vou mandar uma porção de tokoyaki de cortesia, aquela menina (aponta com o dedo) chegou tarde e não comeu. Aí alguém pergunta se ela gosta da própria comida.

— Eu gosto mesmo é de comida baiana e mineira. Faço comida japonesa porque é a única que eu sei fazer — diz.

Gargalhadas de espanto. Um brinde à grande dama! As perguntas não param, e ela não se importa de respondê-las. Conta que nasceu em Avanhandava, no interior de São Paulo, onde morou até os seis anos; em seguida foi pro Paraná, Açaí, cidadezinha; depois vários lugares, vários lugares. Quais? Vários lugares. Tinha dez irmãos, seis estão mortos; o caçula, Inácio, é cozinheiro do Issa; nove homens, duas mulheres, desde pequena ajudava a mãe a cozinhar. Antes de ter o primeiro restaurante, Goen, no Jaguaré, por dezoito anos, trabalhou numa joalheria. Trabalhou dezoito anos numa joalheria? Não, tive Goen dezoito anos. Fazia joias? Não, mandava fazer. Já foi ao Japão? Muitas vezes. Em Tóquio fez curso de patchwork (aqueles desenhos geométricos formados por recortes de tecidos). Tem dois filhos, Lucio e Sergio, que tocam o izakaya Matsu, em Pinheiros. O marido é o gigante Masanobu Haraguchi, o único cozinheiro no Brasil com diploma assinado pelo imperador.

Mais saquê, e outro brinde. Dona Margarida ri, tímida e envaidecida, e agita no ar a mão num gesto que significa que-bobagem-não-exagerem-a-vida-é-muito-maior-que-isso. Então se põe de pé, arruma o cabelo recém-pintado, reclama que precisa ir ao cabeleireiro, traz a conta, abraça um por um (como ela é bonita, alguém comenta calçando os sapatos) e diz voltem logo, voltem logo.

Voltaremos.

FABRÍCIO CORSALETTI nasceu em 1978 em Santo Anastácio, Oeste do Paulista. Formou-se em letras pela USP e desde 1997 vive na capital. Publicou quase 20 livros, entre eles “Esquimó”, “Perambule”, “Poemas com Macarrão” e “King Kong e Cervejas”

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