Por que sentimos prazer ao ver outras pessoas comendo? — Gama Revista

Sociedade

Por que sentimos prazer ao ver outras pessoas comendo?

Práticas como o coreano Mukbang e as competições de comida evidenciam nosso fascínio por assistir a montanhas de alimentos sendo devoradas

Leonardo Neiva 26 de Fevereiro de 2021

Uma jovem magra, de cabelos pretos escorridos e usando fones de ouvido se apresenta em frente a uma mesa contendo miojo, três ovos fritos, cinco dumplings, geotjeo e kimchi — os dois últimos, pratos tipicamente sul-coreanos, feitos à base de couve chinesa. Ela olha para a montanha de comida à sua frente, abre uma lata de Coca-Cola e dá um gole. Em seguida, coloca gentilmente um ovo inteiro acompanhado de uma quantidade generosa de miojo sobre uma enorme colher e engole tudo em uma única e impressionante bocada.

A jovem é a sul-coreana Moon Bok-hee, dona do canal do YouTube Eat With Boki, que conta com mais de 5 milhões de inscritos. O vídeo descrito é um de seus maiores sucessos, com quase 20 milhões de visualizações. Ao longo dos dez minutos seguintes, ela devora metodicamente tudo o que tem à sua frente.

Pode ser que você nunca tenha ouvido falar de Bok-hee, mas ela é uma das principais celebridades do Mukbang, prática que virou febre na Coreia do Sul ao longo da última década. O nome vem da junção das palavras coreanas para “comer” e “transmitir”, que são até um tanto autoexplicativas. Trata-se da transmissão, principalmente pela internet, de uma pessoa comendo quantidades enormes de comida.

E a tendência faz grande sucesso já não só entre as fronteiras da Coreia do Sul, mas também em boa parte do mundo, com algumas de suas principais estrelas angariando milhões de fãs em sites como YouTube e Twitch.

Uma imagem da comida

O fascínio por assistir a outras pessoas comendo não vem de hoje. O sucesso de concursos de comida e programas de TV com apresentadores que devoram pratos enormes sem nem suar — um dos mais famosos deles é “Man V. Food” — vem de décadas atrás. E, segundo psicólogos e especialistas, é um comportamento comum que pode até ajudar em alguns casos, mas também tem potencial de trazer consequências negativas tanto para quem assiste como para quem se dedica a comer aquilo tudo para o deleite dos fãs.

Existem muitas razões pelas quais podemos nos divertir vendo outra pessoa comer. A principal delas é que, de certa forma, sentimos como se nós também estivéssemos participando daquele banquete, diz Uxshely Carcamo, psicoterapeuta e nutricionista da clínica inglesa The Food Therapy.

“Imagens de comida podem estimular nossos sentidos de forma similar ao ato de comer. Esse é o motivo porque muitos dos pacientes com quem trabalho, que passam por dietas altamente restritivas, acabam obcecados por assistir a esses programas — porque eles permitem conseguir algum prazer a partir da comida sem precisar ingeri-la.”

O problema é que eles também podem estimular um comportamento conhecido como “binge-eating”. Se o “binge-watching” significa assistir sem parar aos episódios da sua série favorita, o distúrbio se traduz em comer demais, muitas vezes escondido, até o ponto em que a pessoa se sente desconfortavelmente cheia — quando também acaba experimentando sentimentos de culpa.

“As pessoas sentem muita vergonha por esse comportamento e não percebem que há formas de tratá-lo. E talvez práticas como o Mukbang normalizem isso e façam com que o indivíduo se sinta mais confortável com a maneira com que frequentemente se alimenta”, diz Uxshely.

Ela acrescenta que glamourizar a ingestão excessiva de alimentos pode até levar o público a desistir de procurar ajuda para controlar o distúrbio. “Infelizmente essas práticas promovem sim uma relação muito pouco saudável com a comida.”

De acordo com a psicóloga Valéria Palazzo, fundadora do Grupo de Apoio e do Tratamento dos Distúrbios Alimentares e da Ansiedade, no entanto, os vídeos não causam efeitos negativos em todos. Eles só teriam esse impacto sobre pessoas que já possuem tendência ou o hábito de comer compulsivamente.

“Apesar de normalizar aquilo, se você não tem tendência a comer até não aguentar mais, não é o programa que vai te levar a desenvolver esse comportamento.”

O sofrimento por trás das telas

De modo geral, os fãs de Mukbang gostam de saber que seus ídolos são capazes de comer tanta coisa de maneira aparentemente tranquila. E, como basicamente todo fã, odeiam ser enganados. Então não é surpresa que, além das alegações de fazer publicidade sem avisar o público, enfrentadas por vários adeptos da prática, Moon Bok-hee tenha sido acusada por seus fãs de não comer tudo a que se propõe em seus vídeos.

O público notou que, em determinados momentos da transmissão — que é gravada previamente —, a jovem fazia um sutil movimento com os dedos. Logo em seguida, havia um corte quase imperceptível para uma próxima cena. Os fãs desconfiaram que Moon aproveitava esses “sumiços” para cuspir toda a comida que tinha na boca.

Após as acusações, a sul-coreana precisou vir a público em seu canal para refutar as denúncias. Em um vídeo de mais de uma hora, ela afirmou que fazia pequenas edições para limpar a boca, que ficava suja, já que era perfeccionista demais com o visual. Por fim, ainda fez questão de comer tudo, desta vez sem cortes, para supostamente confirmar sua versão do caso.

Para a psicóloga Graça Maria de Carvalho, do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, é importante que todos os que praticam o Mukbang ou qualquer outra atividade que envolva comer em excesso com frequência sejam acompanhados por uma equipe médica. “Cabe o alerta sobre a importância de uma alimentação balanceada, ligada à saúde e qualidade de vida, para um bem-estar físico e emocional.”

Segundo Uxshely, essas pessoas provavelmente incorrem em um comportamento alimentar compensatório. Ou seja, para se manter saudáveis e com peso estável, restringem a alimentação nos dias anteriores ou seguintes, pulando refeições e exagerando na prática de exercícios para compensar o excesso de comida. Senão, a longo prazo, podem acabar contraindo doenças crônicas como as cardiovasculares e a diabetes.

“Ainda assim, comer em quantidades tão grandes pode causar desconforto físico, distorcer os sinais de fome do indivíduo, causar náuseas e até problemas como refluxo e outros males digestivos”, afirma a psicoterapeuta.

Solitário ou sádico?

Mas nem tudo é negativo, especialmente considerando os valores culturais. Um estudo realizado pela Universidade de Seul entre 2017 e 2019 analisou mais de 100 mil vídeos de Mukbang, concluindo que assistir a eles ajuda a aliviar o sentimento de solidão que uma pessoa experimenta ao fazer uma refeição sozinha. “Um artigo de revisão de 2020 relata que vários estudos anteriores também apontam para a solidão como a principal razão para o sucesso dessa prática”, informa Graça.

Na Coreia do Sul, onde a prática surgiu, a solidão é considerada um problema social. Uma pesquisa realizada em 2018 pela Associação de Psicologia Clínica Coreana apontou que ela é uma das principais ameaças à saúde mental de seus habitantes. Só entre 2010 e 2015, a proporção de casas ocupadas por apenas um morador no país cresceu de 15,8% para 27,1%, segundo informação do jornal The Korea Herald.

E, além do conforto de ter alguém praticamente comendo à sua frente, pode existir também uma vocação voyeurística e até uma ponta de sadismo em assistir a esse tipo de entretenimento, explica Uxshely.

“A palavra ‘schadenfreude’ descreve o prazer que os humanos sentem a partir da dor alheia. É muito parecido com a natureza viciante de assistir a um concurso em que os competidores precisam comer pimentas extremamente ardidas — você sabe que eles estão sofrendo, mas ainda assim não consegue parar de olhar.”

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