Marilene Felinto: “O ataque que sofri era não apenas racista como também misógino”
Em entrevista a Gama, jornalista e colunista da revista comenta condenação de réu por e-mails racistas que recebeu quando trabalhava na Folha
Em 2021, a jornalista e escritora Marilene Felinto, colunista da Gama, foi alvo de mensagens racistas, atacada com expressões como “negrinha feminista”. Nesta quinta-feira (14), Ricardo Rodrigues da Silva, responsável por enviar à jornalista dois e-mails com ofensas racistas na época em que Felinto atuava como colunista da Folha, foi condenado a dois anos de reclusão em regime aberto pelo crime de injúria racial.
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Na sentença, divulgada pela Folha, a juíza Carla de Oliveira Pinto Ferrari, da 20ª Vara Criminal de São Paulo, aponta que as ofensas à “cor e raça da vítima” também incluem “conteúdo sexista e misógino” e “preconceito social-econômico”, todos contidos nos e-mails enviados por Silva. A pena de prisão foi substituída pela prestação de serviços a comunidade. Ainda cabe recurso da decisão.
Segundo a jornalista, em entrevista a Gama, embora tenha sido a primeira vez em 20 anos trabalhando como colunista que foi atacada de maneira racista, os e-mails são um “sintoma da doença que assola o país: machismo, feminicídio, desigualdade de gênero”. Ocorridas na época do governo Bolsonaro, Felinto espera que a condenação pelo envio das mensagens se torne um estímulo para que outras vítimas se defendam.
Foi ela quem requereu o inquérito, atuando na ação penal como assistente do Ministério Público de São Paulo, que denunciou Silva. O réu chegou a confirmar o envio das mensagens, justificando que tinham a ver com divergências políticas em relação a artigos que Felinto publicou à época no jornal — alegação rejeitada pela juíza, assim como a possibilidade de arrependimento ou retratação por parte do acusado.
Em 2022, Silva chegou a ser condenado a pagar uma indenização de R$ 50 mil mais custas processuais e honorários advocatícios, 10% do valor da condenação. O réu não recorreu, mas ainda não pagou o valor.
A seguir, leia a entrevista completa com Marilene Felinto.
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G |Qual a importância de uma condenação como essa para além desse caso?
Marilene Felinto |Esta foi a primeira vez, em 20 anos como colunista em jornal e revistas, que sofri um ataque de cunho racista. Estávamos em 2021, sob o governo fascista de Bolsonaro, numa atmosfera de incentivo a todo tipo de violência baseada na diferença, de raça, de gênero, de sexualidade etc. Isso dava aos perpetradores de atos racistas a impressão de que estavam impunes. Então, uma condenação na forma da lei é importantíssima não apenas porque pune o criminoso como também estimula outras vítimas a se defenderem.
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G |Na sua opinião, as mulheres são mais vulneráveis a esse tipo de ataque?
MF |Sim, sem dúvida. O ataque que sofri era não apenas racista como também declaradamente misógino, sintoma da doença que assola o país: machismo, feminicídio, desigualdade de gênero . O condenado me atacou com expressões do tipo: “negrinha feminista” ou “você, pela sua cor, vai ser sempre uma marginalizada”, e assim por diante. Tanto ódio é mesmo chocante, foi um ultraje ler isso num e-mail direcionado a mim por um leitor de jornal.
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G |Você acha que casos como o seu são capazes de impactar também o próprio Poder Judiciário?
MF |Mistério. Tomara. Acho que a condenação é exemplar como defesa da liberdade de expressão, uma vez que o condenado me atacava também como jornalista, dizendo que “preto quando sobe numa folha de jornal começa a fazer discurso”, e argumentado que eu, por ser negra, jamais seria aceita nos “salões da elite”.
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G |Nesse sentido, qual a sua avaliação sobre a campanha por uma ministra negra no STF? E sobre as reações?
MF |Acho que isso ainda transita no território do sonho, ter uma ministra negra no STF. Fundamental que isso aconteça, mas eu já não tenho ilusões faz tempo. Travo minha batalha e espero que ela ajude outras vítimas. Só isso. Que o governo, o parlamento e a sociedade seguem ultrajantemente misóginos, não há dúvida.
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