Ilusionismo de informação — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

Ilusionismo de informação

Os portais da mídia comercial macho-branca apresentam esqueletos do que seria o texto, resumos ralos, como se o leitor internauta fosse analfabeto ou muito desinteressado

30 de Junho de 2023

Perder tempo nas redes sociais é melhor do que procurar uma informação nos noticiários digitais das corporações da imprensa comercial. Nada para ler nesses portais de notícias hoje esvaziados, afora o fato de já serem todos comprometidos, manipulados, mal escritos e pautados pelo interesse dos grupos econômicos proprietários de tudo.

(Estou no Rio de Janeiro, no bairro do Leme, num quarto que dá de frente para o mar – e esta, aqui entre parênteses, é minha redação paralela, de uma postagem para as redes virtuais, as “redes egocêntricas”, como dizem os estudiosos de psicologia social e comunicação, o espaço onde se assume a postura narcísica pós-moderna.)

Procuro informação sobre um tiroteio na favela da Rocinha, mas, na mídia tradicional, só encontro notícia sobre a guerra Rússia/Ucrânia, sobre os mercenários russos do grupo paramilitar Wagner, sobre Putin e Prigojin, a pauta hegemônica macho-branca dominante.

Algumas dessas plataformas noticiosas, de ideologia neoliberal e que obviamente não operam em prol do interesse público – e que, portanto, pouco se importam com a violência da polícia, da milícia e do tráfico na Rocinha –, já padecem até mesmo da falta de textos estruturados. Apresentam a notícia na forma de dropes, no modo de perguntas e respostas (o que aconteceu? Como ocorreu? O que vai ser feito? ).

Oferecem uma espécie de ilusionismo de informação, não se constrangem em expor o roteiro primário, o esboço que daria no texto corrido final, com começo, meio e fim. Apresentam esqueletos do que seria o texto, resumos ralos, como se o leitor internauta fosse analfabeto, ou muito apressado, ou muito desinteressado.

Se não bastassem os rascunhos de textos que agora apresenta, a mídia digital de mercado ainda bloqueia o não assinante

(Continuo a redigir minha postagem para as redes, o lugar da democratização da comunicação: “estou no bairro do Leme, Rio de Janeiro, vendo ao longe o horizonte no mar, tentando raciocinar com começo, meio e fim; e estou triste pra danar!”.)

Acontece que, como escrever é às vezes uma tortura, e como eu precisava de uma informação para prosseguir com o texto e acabar com o suplício da escrita que realizava, buscava em portais da internet a informação necessária. Procurava detalhes da notícia e não encontrava: era pouco conteúdo e muita especulação na imprensa comercial, lacunas, insuficiências… E, é claro, ninguém considera mais a versão impressa destas hoje publicações mirradas, transformadas em tabloides, isso que antes levava o nome de jornais ou revistas.

Não se trata de saudosismo – é indignação, pois se não bastassem os rascunhos de textos que agora apresenta, a mídia digital de mercado ainda bloqueia o não assinante, a pessoa que clica num título, numa chamada, para se informar daquilo, mas não consegue.

(Prossigo aqui na redação paralela da postagem para as redes: “muita vida online, pouca vida ‘inside’… Mas não deixa de ser divertido perder tempo nas redes sociais, construindo imagens atenuadas de si mesmo, agindo como os ‘sujeitos estimulados a gozar narcisicamente e impelidos a vender-se constantemente para conquistar seu lugar nesta sociedade do espetáculo’, conforme observa, em sua tese de doutorado, Antônio Carlos de Barros Júnior”).

Volto ao internauta não assinante dos canais da mídia de mercado, barrado, forçado a ver atirada na sua cara, na tela, a proposta de assinatura, o preço da mercadoria, o site noticioso se exibindo ali como coisa importante! É a reprodução do capital mediada por tecnologias da informação.

Pois não assino nada. Nem “play” isso nem “play” aquilo. Nem “bolha” isso nem “bolha” aquilo. Defendo o direito humano à informação como um direito fundamental. Não assino. Acho ultrajante me bloquearem. Mas serão imbecis esses conglomerados da mídia mercantil? Pois se logo encontro a mesma notícia, com leitura gratuita, em portais e sites de revistas e jornais digitais alternativos, minoritários, não convencionais, chamem-se como for!

Já não somos escravos da pauta única, da notícia que se vende como informação e que não passa do silenciamento da pauta coletiva, esta pauta que importa – o tiroteio na favela, naturalizado, ignorado pelas corporações de imprensa empresarial.

(Prossigo na redação da minha postagem, mas não escondo meu sofrimento nem minha tristeza, como é de praxe se fazer na rede social: “estou no Rio, no bairro do Leme, num quarto com vista para o mar. E não posso olhar para o mar que as lágrimas já engrossam na minha cara, salgadas até demais. Não posso – porque tenho muita saudade da minha mãe, que adorava a praia… Estou no Leme, e sei que lá na ponta do calçadão desta praia tem uma estátua de Clarice Lispector com seu cachorro. Ela que viveu aqui no bairro, essa minha escritora preferida. Isso também me comove. Será que vai ser possível viver alguma coisa como era antigamente? O começo, o meio e o fim. Será que vou ver de novo essas pessoas vivas, do modo como elas viveram – minha mãe e Clarice Lispector?”)

(Fim da postagem nas redes sociais: “não posso ver navios no horizonte deste mar do Leme, porque já me dá vontade de ir embora para qualquer lugar. “Leme” é também sinônimo de destino, de direção, rumo, orientação… Não quis ir ver a estátua de Clarice Lispector, que estátua é a pessoa petrificada… Preferi ficar da janela vendo o movimento das ondas em que minha mãe gostava de se banhar… preferi, portanto, ficar vendo minha mãe viva…”).

O interessante também na redação de postagens em rede social é o reforço dos emojis. O meu preferido é o do vômito, que eu dedico ao chamado “jornalismo normativo”, o jornalismo do desdém, o jornalismo que substitui direitos sociais e interesses coletivos por “serviços” a preço de mercado. Um vômito real e digital para eles. (O que eu queria mesmo era rever minha mãe um dia, era ter visto Clarice caminhando pela praia do Leme, era não ter me indignado, me distraído nas redes – era ter escrito sobre o tiroteio na favela da Rocinha como quem escreve com começo, meio e fim).

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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