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Conversas'As pessoas sabem que a cadeia não funciona, mas seguem pedindo mais prisão'
Em entrevista a Gama, advogado e pesquisador Daniel Achutti defende diálogo e coloca em xeque eficácia de soluções como o encarceramento em massa
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‘As pessoas sabem que a cadeia não funciona, mas seguem pedindo mais prisão’
Em entrevista a Gama, advogado e pesquisador Daniel Achutti defende diálogo e coloca em xeque eficácia de soluções como o encarceramento em massa
No Brasil, mais de 820 mil pessoas vivem em algum tipo de regime prisional, segundo uma pesquisa realizada pelo Departamento Penitenciário Nacional no final de 2021 – número que mantém o país muito perto do topo no ranking das maiores populações carcerárias do mundo. Em 2019, dois terços dos que lotavam presídios pelo Brasil eram negros, mesma população que foi vítima em 78,9% das mortes ocorridas em ações policiais ao longo de 2020. Mesmo quando saem da prisão, 45% dos egressos enfrentam dificuldades para achar emprego e 42% acabam retornando ao sistema prisional.
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Inconformado com essa realidade e a falta de alternativas de reinserção para quem deixa o sistema carcerário, o advogado criminalista e pesquisador da PUCRS Daniel Achutti dedicou seus trabalhos de mestrado e doutorado à busca de alternativas ao encarceramento em massa. Um sistema prisional que, segundo ele, ainda por cima adquire os contornos da desigualdade e do racismo que marcam a sociedade brasileira. “Me envolvi com o tema por não acreditar no sistema penal”, explica. “Nunca concordei que enjaular pessoas fosse uma solução.”
Em suas pesquisas, acabou dando de encontro com o princípio da justiça restaurativa, um modelo de resolução de conflitos criminais por meio do diálogo entre vítima e ofensor. “Quais são os nossos limites para solução de problemas da convivência humana? Será que não conseguimos ser minimamente criativos para além da prisão?”, questiona o advogado, autor do livro “Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal” (Saraiva, 2016). “A restaurativa questiona como incluir alternativas que não representem mais punição, mas sim a ampliação dos espaços de liberdade.”
Hoje temos robôs e drones em Marte, mas o presídio segue sendo a mesma coisa de 300 anos atrás
Apesar de ainda não dar as caras na legislação brasileira, hoje há aberturas que permitem que o modelo seja usado. Sempre aplicado de forma voluntária de ambas as partes, Achutti explica que o perdão ao longo do processo, apesar de desejável, não é obrigatório. Além de um mecanismo que pode ajudar tanto a vítima quanto o acusado em termos de saúde mental, existe a possibilidade de que, caso o diálogo seja positivo, as consequências penais sejam atenuadas.
O advogado também destaca a importância de movimentos como o abolicionismo penal, que prega, como última instância, a abolição do sistema penal, para fomentar o debate de formas alternativas de resposta à criminalidade, com viés menos punitivo. “Hoje temos robôs e drones em Marte, mas o presídio segue sendo a mesma coisa de 300 anos atrás”, argumenta . “É um contrassenso ter uma revolução tecnológica tão grande tão rapidamente e, ao mesmo tempo, em tantos séculos não alcançar nenhum progresso na questão penal.”
Achutti, que também é fundador e professor da Escola Justiça Restaurativa Crítica, fala a Gama sobre a falta de políticas públicas para egressos da prisão no Brasil, a violência seletiva das forças estatais e a insistência no encarceramento como um remédio que já se sabe não tratar a doença.
Mais do que benefícios jurídicos, são os psicológicos, de conseguir levar a vida adiante, reelaborar o passado e projetar um futuro
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G |No Brasil, existe uma tendência punitivista que ainda dificulta tratar de temas como justiça restaurativa e abolicionismo penal?
Daniel Achutti |Não é só no Brasil, o punitivismo também é muito forte nos EUA. Assim como várias outras questões envolvendo direito e sociedade, a gente acaba se espelhando em outros países. No caso da punição, apesar de termos alguma influência europeia, o impacto do punitivismo norte-americano na nossa política criminal é bastante pesado. A gente tem uma tradição que nos coloca numa posição complicada, uma história construída explorando o racismo que cria uma desigualdade tremenda, a ponto de ficarmos entre os países mais desiguais do mundo. Então essa tendência punitivista ganha contornos particulares no Brasil por envolver uma sociedade extremamente desigual, ainda muito racista e patriarcal, o que impede as pessoas de perceberem que os problemas sociais podem inclusive se agravar com o punitivismo. Essa simplificação na busca pela criminalização é que faz com que seja muito difícil avançar em temáticas como a justiça restaurativa ou o próprio abolicionismo penal.
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G |A justiça restaurativa é um processo que costuma colocar frente a frente vítima e ofensor. Pela sua experiência, o que esse diálogo traz de positivo?
DA |A primeira coisa é a possibilidade de as pessoas entenderem que a punição não é a única forma de resolver conflitos. Essa é uma vantagem oculta que a gente acaba não percebendo. Mais diretamente, as pesquisas indicam que, quando se reúne vítima e réu, ambos conseguem perceber que não são pessoas tão diferentes quanto imaginavam. Acontece uma desconstrução de estereótipos comuns envolvendo crimes, uma imagem do criminoso como aquele monstro sem conserto que deliberadamente pratica uma ação violenta. No encontro, a pessoa percebe que não foi tão deliberado assim. Pode ter sido fruto do acaso, a pessoa estava num dia ruim ou tomou uma decisão errada, o que não significa que ela seja má. Então as pessoas passam a se enxergar um pouco no outro. Não significa dizer que está tudo bem, mas reconhecer que as pessoas têm dias ruins ou fazem coisas que não deviam. Isso nos coloca frente ao espelho, mostra que todos somos paradoxais e contraditórios. Não somos pessoas boas 100% do tempo, como gostamos de pensar. E a vítima também pode esclarecer dúvidas. Mas por que comigo? Era necessário? O acusado, quando deseja participar de um encontro desses, tem um interesse mais utilitarista, de reduzir a pena, ou humano mesmo, de querer dar uma justificativa ou até pedir desculpas. Mais do que benefícios jurídicos, são os de ordem psicológica, de as pessoas conseguirem levar a vida adiante, reelaborar o passado e projetar um futuro com mais sanidade.
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G |O que um perdão da vítima ao agressor implica, em termos judiciais?
DA |O perdão da vítima para o acusado é desejável, mas não obrigatório. Nem sempre o réu vai pedir perdão e nem sempre a vítima vai oferecer. Ela pode até entender, mas não perdoar, e está tudo bem. Um encontro restaurativo bem-sucedido pode gerar um impacto na pena? Pode, mas depende da legislação. É o caso da Bélgica, que autoriza que isso aconteça. Algumas províncias da Argentina preveem que o processo pode ser até extinto se o encontro restaurativo der certo. No Brasil, não temos uma lei sobre justiça restaurativa. O que temos são pequenas aberturas normativas. Existe uma atenuante que permite minimizar a pena caso haja um documento comprovando um encontro restaurativo em que as partes se entenderam. Então dá para impactar na pena, de forma muito tímida e esporádica, mas dá. Mas também pode haver um encontro muito bem-sucedido, em que a vítima perdoa o acusado, e mesmo assim o juiz opta por condenar.
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G |A quais tipos de delitos esse processo pode ser aplicado?
DA |A justiça restaurativa pode ser aplicada para qualquer delito. Curiosamente, os melhores resultados na justiça restaurativa acontecem nos casos mais graves, como homicídios, em que a conversa se dá com os familiares da vítima, ou mesmo crimes sexuais. Até casos de terrorismo na Europa tiveram encontros muito bem-sucedidos. Uma interpretação é de que talvez esses casos sejam aqueles em que as vítimas mais precisam de apoio ou explicações. A gravidade pode ser um modulador para que ela receba algum tipo de atenção. No processo penal, a vítima sempre foi relegada a um segundo plano, então a restaurativa oferece uma possibilidade de fala, de escuta, de ser levada a sério.
É naturalizada a ideia de que quem comete um crime tem que ser preso. O abolicionismo penal obriga a pensar que a prisão é uma construção social
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G |Quais costumam ser as resistências tanto da vítima quanto do acusado?
DA |Nem todo mundo quer se encontrar. Temos uma cultura bastante paternalista, em que precisamos do Estado para muita coisa. Isso é bom, porque o governo precisa oferecer serviços num país tão desigual quanto o Brasil, mas o efeito colateral é que a gente acha que o Estado deve ser responsável por tudo. Muitas pessoas não têm o menor interesse em se encontrar com o réu ou a vítima. Elas preferem que o Judiciário decida. Isso não é ruim, é o esperado. Um dos princípios da justiça restaurativa é que as pessoas só participam se quiserem. As pesquisas mostram que metade das pessoas aceita participar. E pelo menos metade dos que aceitam não quer se encontrar cara a cara com a outra parte. Aí tem a possibilidade da mediação indireta, em que o facilitador serve como uma ponte, levando mensagens de um para outro. Desses 25% que topam se encontrar com a outra parte, muitos desistem no meio do caminho.
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G |Na prática, quais os maiores entraves para que esse modelo seja aplicado de forma mais ampla?
DA |O primeiro é a vontade das pessoas, que tem que ser respeitada. O segundo é a dificuldade financeira. No Brasil, a desigualdade complica o ato de se deslocar ou abrir mão de um dia de trabalho para fazer o encontro. Outra dificuldade é abordar as pessoas para oferecer esse serviço. É muito delicado. Uma palavra colocada de forma errada afasta todo mundo. Então o que dizer para deixar claro que é um benefício, e não algo para prejudicá-la? Como muitos não sabem que isso existe, quando recebem a oferta podem ter uma reação negativa. Fora o entrave mais explícito, que é o fato de muitos ainda estarem atrelados a uma ideia simples de punição. Então eles vão dizer que não querem se encontrar com esse vagabundo, esse bandido e todos os demais termos que se costuma usar.
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G |O que propõe o abolicionismo penal?
DA |O abolicionismo penal é uma ideia que envolve a abolição do sistema penal. Ele é tanto uma teoria quanto um movimento social. Tem quem defenda o fim do sistema penal, tem quem defenda só o fim das prisões. De maneira geral, o abolicionismo é a proposta de projetar modos diferentes de lidar com o crime e suas consequências. O mais importante é que ele dá ferramentas para interpretar e compreender os fundamentos da estrutura punitiva que existe na engrenagem da Justiça penal. Enquanto crítica, ele te permite enxergar para além da pena e da prisão como uma resposta natural para o crime. Aí tu começa a te perguntar: Essa é a melhor forma de lidar com o crime? Será que o índice de violência na sociedade não tem relação com o hiperencarceramento? Será que a violência estatal, como no caso do Genivaldo, não colabora para o aumento da violência? As pessoas naturalizam a ideia de que quem comete um crime tem que ser preso. O abolicionismo penal te obriga a pensar que a prisão é uma construção social para lidar com questões que não sabemos resolver. Os abolicionistas estiveram entre os primeiros a sugerir que os conflitos poderiam ser resolvidos com diálogo, então a justiça restaurativa talvez seja a proposta que mais se aproxima das críticas abolicionistas. Mas, se o abolicionista pede o fim da prisão, não é pela via restaurativa que vai conseguir, porque ela parte do pressuposto da voluntariedade. Enquanto não for obrigatório, e espero que nunca precise chegar nesse ponto, sempre vai ter gente que vai optar pelo processo tradicional. Então a restaurativa pode ser o primeiro, mas não é o último passo. O Brasil ainda tem um caso peculiar de justiça restaurativa muito atrelada aos tribunais. Por isso, há uma forte tendência de ela ser cooptada pelo Estado de modo a tornar inviável qualquer intenção abolicionista.
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G |Os negros são a maior parte da população carcerária no Brasil e sofrem com racismo e violência estatal cotidianos. Num sistema desigual, como encontrar alternativas que impeçam essa ação desproporcional do Estado?
DA |Se uma comunidade quiser, ela pode estruturar um programa comunitário de solução de conflitos. Você não vai resolver um caso de homicídio, mas, se conseguir tirar 20% ou 30% dos conflitos que naturalmente iriam para a delegacia, abre uma porta para que as pessoas solucionem seus problemas sem recorrer ao Estado. Na América Latina, debatemos por que tanta gente segue atrelada à perspectiva europeia ou norte-americana de justiça restaurativa, quando aqui temos outra configuração social. Talvez a restaurativa no Brasil deva estar mais atenta às peculiaridades daqui, como o grande encarceramento, a violência do Estado e as desigualdades estruturais. Ela não vai resolver tudo isso, mas precisamos preparar os mediadores para lidar com essas questões. Algumas pessoas são ótimas mediadoras, mas não estão prontas para lidar com o contexto brasileiro.
Fica fácil pedir mais punição. Difícil é dizer que todo mundo merece uma oportunidade
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G |É comum dizer que as penitenciárias se tornaram fábricas de criminosos. Ao mesmo tempo, os passos em direção a um processo menos punitivista são bastante tímidos. Por que essa contradição?
DA |As pessoas sabem que a cadeia não funciona, mas seguem pedindo mais prisão. É como se você soubesse que um remédio não combate determinada doença, mas insistisse em continuar usando. Parece que o foco está sempre na busca por culpados. Como nossa sociedade é muito hipócrita e tem o costume de varrer os problemas para debaixo do tapete, fica fácil pedir mais punição. Difícil é dizer que todo mundo merece uma oportunidade.
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G |Quando um preso é libertado, ele passa por dificuldades que vão desde o preconceito até a baixa empregabilidade. O Estado faz o suficiente para lidar com a questão?
DA |Um sujeito que quer sair da prisão e achar uma nova perspectiva de vida encontra tantas dificuldades que a oferta de uma facção criminosa é mais tentadora. Ele sai e não tem o que fazer. Ninguém dá emprego, todo mundo pisoteia e depois reclama que ele volta para o crime. Dizer que está errado é muito fácil. E não é que amanhã você vai ter 500 pessoas soltas. No Brasil, vai ser meio milhão. Supondo que, de cada cinco presos, um tenha família – provavelmente o número é maior –, significa que tu está afetando um contingente populacional maior do que dá para imaginar. Afeta o preso, a família, os amigos… É um efeito dominó do qual a gente não se dá conta. A ausência de políticas de reinserção de egressos é uma coisa tenebrosa. Num país desenvolvido, isso já é um problema, imagina com as desigualdades que a gente tem.
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G |Qual é a proposta da Escola Justiça Restaurativa Crítica?
DA |A gente percebeu que não existia no Brasil um espaço para discutir justiça restaurativa que não tivesse vínculo com tribunais. Então eu e um grupo de profissionais criamos um canal no YouTube para falar do assunto, e as pessoas começaram a pedir para fazermos grupos de estudos. Quando montamos os cursos, apareceu um monte de gente e aí decidimos abrir uma escola. A proposta é criar um espaço de debate e construção de ideias sobre justiça restaurativa de uma perspectiva crítica, porque a gente entende que o processo no Brasil tem um protagonismo exagerado dos tribunais, a ponto de ter gente que acha que a restaurativa só pode ser aplicada ali. Isso é um contrassenso. A ideia era justamente que fosse um trabalho da comunidade. A JR Crítica pauta a justiça restaurativa por perspectivas que não são tratadas devidamente nos tribunais, como racismo, feminismo e gênero. Nosso projeto para 2022 e 2023 é expandir e transformar a escola num centro de referência de estudo e pesquisa no Brasil, quem sabe até com um braço no exterior. Também estamos num processo de formação do Fórum Latino-Americano de Justiça Restaurativa. A ideia é construir um lugar para discutir as particularidades da cultura da região e projetar um modelo de justiça restaurativa adequado à nossa realidade.
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G |Considerando as dificuldades que soluções não penais enfrentam no sistema judiciário, falar em abolicionismo penal hoje não é um tanto precipitado?
DA |Quando se trata de abolicionismo penal, os juristas mais tradicionais entram em parafuso. Como assim acabar com as prisões? Vai ser o caos. Muita gente acha que os abolicionistas são anarquistas, mas a grande maioria não é. Todos eles convergem numa coisa que pode ser materializada na justiça restaurativa, para o bem ou para o mal. Tem abolicionista que vai dizer que restaurativa é mais do mesmo e, pela experiência brasileira, não estão errados. O abolicionismo tem o poder de tocar na ferida. Então, mais do que acabar com o sistema penal – algo que inclusive não proponho –, essa crítica nos permite desconstruir seus fundamentos. Quando a gente consegue transformar a negação em algo propositivo, chega num modelo que eu denomino de justiça restaurativa crítica, que está atenta aos problemas do sistema penal para não replicar sua seletividade ou desigualdade. Uma vez, uma aluna minha encontrou um sujeito que trabalha com justiça restaurativa e que avisou para ela ter cuidado comigo, porque sou muito abolicionista. Eu agradeço, para mim é um elogio, mas para ele era um alerta. Ser abolicionista demais pode ser um problema.
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