Comer, comer e comer em Buenos Aires
Uma nova geração de chefs une cozinha autoral a ingredientes locais e faz a cidade ainda mais gastronômica e menos… argentina
Paris é uma festa. Já Buenos Aires é uma mesa, e das fartas. Dessas que você senta, prova de tudo, é feliz, e levanta quase seis horas depois sem acreditar que coube tanta coisa dentro de si (e, ao mesmo tempo, rezando para ter mais espaço para ser capaz de comer mais). Há mais de 20 anos vou à cidade e me surpreendo com o que comem e bebem os portenhos. Nem sempre fui lá com a ideia de transformar a comida na minha atração principal, mas é o que acaba acontecendo invariavelmente.
Além do talento dos cozinheiros locais e dos grandes produtos argentinos, devo isso à instabilidade econômica do país, que de tempos em tempos deixa o real valorizado frente ao peso e faz com que nos sintamos como reis à mesa. É o caso agora.
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Na primeira vez que pisei na cidade, me maravilhei com bifes altos e batatas soufflé infladas e perfeitas. Era 1998, os últimos suspiros da era Menem, quando se servia pizza com espumante, e eu, um tanto alheia à política e aos costumes locais da época mas mergulhada na economia dolarizada que me dava um poder de compra antes desconhecido, ignorei a moda da estação e foquei na matéria prima mais cara: a carne bovina.
Da segunda vez que viajei a Buenos Aires, levada por um novo amor em 2005, mergulhei em taças e mais taças de Malbec das bodegas Norton (Benjamin, um clássico dos jovens dos anos 2000), de espumantes Mumm e em jarras de chopp. Aprendi a encerrar os trabalhos com flan con dulce de leche ou com churros con dulce de leche. Aquele dulce de leche caramelado, intenso, marrom, rico. Provei que era possível engordar cinco quilos em três dias, as imagens registradas na minha Sony Cybershot não me deixam mentir.
Aprendi a encerrar os trabalhos com flan con dulce de leche ou com churros con dulce de leche
Na terceira vez em Buenos Aires, caí de amores por medialunas, pelo queijo port salut fabricado localmente, a versão perfeita do nosso minas frescal, e por submarinos achocolatados para abrir o dia. Mergulhei na parrilla, de chinchulines a morcillas, de matambritos de cerdo a mollejas. E olha que, dessa vez, eu só queria mesmo era cortar o cabelo em camadas como as argentinas, escrever um texto para o caderno de turismo, e ganhar um dinheirinho extra para as férias.
Essas descobertas da profunda cultura alimentar local se repetiram sem planejamento ao longo de 25 anos até que, em setembro deste ano, encontrei uma Buenos Aires que me pareceu um tanto menos… argentina.
A responsabilidade, entendi, é de uma geração de brilhantes jovens chefs de 30 anos, que abriram casas com pegadas muito distintas daqueles mais portenhos e tradicionais. A maior parte deles está na charmosíssima pero gentrificada Palermo.
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Palermo está para Buenos Aires como Williamsburg está para Nova York, como a Bastilha está para Paris, Botafogo para o Rio de Janeiro, Pinheiros para São Paulo. É possível concentrar-se apenas neste bairro e viver uma semana inteira de novidades sem ultrapassar limites geográficos. Claro, é ótimo ir além das fronteiras também. Visitar o Centro Cultural Kirchner no centro da cidade e ver uma orquestra de tango em uma quarta-feira à tarde; o mercado novo de San Telmo e provar um choripan com cervejas artesanais; ou, se sobrar disposição, ir até o subúrbio chique de San Isidro para um menu completo no Alo’s Bistro.
O restaurante do chef Alejandro “Alo” Féraud é um portal para um universo paralelo que tem a Argentina como parte da Escandinávia: a decoração mescla paredes brancas com muita madeira, e cores monotonamente elegantes: cinza, preto, bege. Alo recria o que seria um menu clássico europeu para um público quase 100% argentino (talvez longe demais para os turistas?) usando os melhores itens locais. Ele cozinha com produtos de origem e usa técnicas da alta gastronomia.
É possível concentrar-se apenas em Palermo e viver uma semana inteira de novidades
Alguns exemplos: uma delicadíssima sopa de aspargos brancos com ovas de truta, um curry de vieiras do Rio Negro, raviolis de cogumelos, um pato com tupinambo, um tubérculo americano com gosto semelhante a de uma alcachofra que é a última moda local. Tudo delicioso, delicado, autoral. Ao lado do restaurante, você ainda pode comprar o doce de leite com consistência de mel, itens de viennoiserie feitos com cuidado e marrom de castanhas, entre outros itens. Uma cozinha dessas no Brasil de hoje sairia pelo menos quatro vezes mais cara.
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De volta à Palermo, todos falam de Don Julio, a casa de carnes superelegante que figura no segundo lugar do ranking 50 Best Latin America, dos melhores restaurantes da região. Claro, tem que falar mesmo: todos os cortes feitos à perfeição, tem uma adega de 60 mil rótulos de vinho, um serviço perfeito e um salão muito elegante. É caro, tem fila, mas entendo o hype. Agora, falemos a verdade: dá para não ir. Palermo oferece muito mais.
Lindo mesmo foi ver o que é um katsu sando feito com o melhor bife de chorizo que já comi na minha vida no restaurante Niño Gordo, do jovem e intrépido Germán Sitz, em sociedade com o talentoso Pedro Peña. A consistência da carne era de uma mousse. Esse restaurante é uma festa para quem ama as diferentes cozinhas asiáticas e gosta de balada: tem clima de inferninho (a luz é vermelha e a decoração, belíssima) e traz tantos sabores diferentes à boca em cada garfada de cada prato que é um baile para as papilas. Quer outro exemplo? Que tal um tataki de bife com gema, wasabi e shiso? Gostou? Então corra, porque só são feitas 40 unidades por noite. O motivo é que a carne vem de criação própria nos Pampas e leva dois anos para ser produzida.
Falando ainda no reino das carnes, Sitz é dono de outra pérola, La Carniceria, seu primeiro restaurante. Esse sim pode ser uma alternativa a Don Julio se o ambiente chic não for uma exigência primordial. O clima é de açougue, a acústica é estridente, o som é alto e pop, mas a comida é do Olimpo. Aqui não é a parrilla pura e simples, mas pensada com cabeça de chef: a manteiga do couvert é tutano; para entrada, morcilla feita na casa e servida com compota de maçãs ou ceviche de boi; e não deixe de provar as mojellas com emulsão de alho negro e bolo de milho. Prepare-se para chorar. Se der tempo, visite ainda Paquito, de inspiração espanhola com uma maravilhosa jukebox, e Chori, de sanduíches, assinados por Sitz.
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Muita carne até aqui. Não o convenci de que Buenos Aires está menos argentina? Chegou a hora de conhecer Gran Dabbang. O restaurante é minúsculo e a ideia é ir em turma para pedir muitos pratos e compartilhar tudo (quando essa tendência vai passar? Em casos como o do Gran Dabbang, espero que nunca, porque dá vontade de comer o cardápio inteiro). Aqui, a influência forte é indiana, mas há uma pegada parecida com a do mago dos legumes Yotan Ottolenghi, que mistura com sabedoria texturas e sabores em resultados invariavelmente complexos. O talentoso chef Mariano Ramon faz isso sem exigir demais do seu cérebro, oferecendo mais prazer que qualquer outra coisa, como na divertida entrada de spaghetti duro de grão de bico (parece uma batata palha gigante), que deve ser quebrado em cima de labneh com chutney, romã e abacate. Outro ponto alto: aspargos verdes frescos al dente com alho-poró, raiz de lótus e purê de goiaba. Uma súplica: não deixe de ir e peça ao menos três pratos para conhecer mais. Para acompanhar, a carta tem os vinhos deliciosos da Ver Sacrum, frescos e ideais para acompanhar os pratos de Ramon.
Só me resta desejar que você consiga dias suficientes para ir a cada um desses restaurantes
Se o seu lance é brunch, vá ao Oli Café, que tem uma patisserie fina assinada por Olivia Saal. Aos 27 anos, ela comanda uma das casas mais charmosas para uma tarde porteña, depois de ter estudado e estagiado na Inglaterra. Também há um quê de Ottolenghi e mais precisamente do livro “Jerusalem” (Companhia das Letras, 2017) nas saladas servidas no Oli, no uso dos grãos misturados com romã e hortelã, nos hommus, na coalhada. Mas a casa oferece mais: a mágica dos pães de fermentação natural, excelentes cafés produzidos em diferentes partes do mundo e uma carta daquelas, de vinhos de baixa intervenção, leves e ácidos. É uma combinação linda e moderna, que vale a visita a qualquer hora do dia.
Agora, se é conforto que você quer, por favor, não deixe de ir ao Mengano (que em português é tipo “Fulano”). Talvez eu tenha deixado aqui o melhor por último e espero que você tenha chegado ao fim desse longo relato para não perder essa dica valiosa. O chef Facundo Keleman é o que chamo de gênio: despretensiosamente, com muita simpatia, tudo o que faz faz bem demais. Lá, ele serve micro empanadas explosivas para se comer de uma vez só (falo por experiência própria e com a melhor intenção de proteger sua camisa), um tartare de cordeiro de sabor sutil com marmelo que se come com massa de pastel, e um maravilhoso arroz crocante ao estilo espanhol de vieiras e camarões que me deixou arrepiada. Isso sem falar nas sobremesas espetaculares, uma cítrica, outra com chocolate e merengue. E sem falar no ambiente aconchegante, de luz baixa, e, ainda, na trilha sonora repleta de hits cool. Se tiver chance, dê um hola para Keleman, que é uma simpatia só.
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Depois disso tudo, só me resta desejar que você, que lê tudo isso com planos de visitar Buenos Aires, consiga dias suficientes para ir a cada um desses lugares. E, se gosta de vinho, deixo, como presente de despedida, dois nomes de lojas também em Palermo, que farão sua adega mais feliz: JA! Lo de Joaquin Alberdi, para comprar marcas consagradas e vinhos mais clássicos; e Vino el Salvador, que reúne a melhor carta das modernidades argentinas que não chegam por aqui. Boa viagem, bom apetite e saúde!