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ConversasFernanda Lopes: 'Para saber o que é ter filhos, seja a rede de apoio de alguém'
Psicanalista especialista em perinatalidade diz que ajudar alguém a cuidar dos filhos e estar próximo de outras crianças nos prepara melhor do que cursos e livros, e fala sobre os perigos de se delegar demais: ‘Vínculo a gente faz e refaz todos os dias’
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Fernanda Lopes: ‘Para saber o que é ter filhos, seja a rede de apoio de alguém’
Psicanalista especialista em perinatalidade diz que ajudar alguém a cuidar dos filhos e estar próximo de outras crianças nos prepara melhor do que cursos e livros, e fala sobre os perigos de se delegar demais: ‘Vínculo a gente faz e refaz todos os dias’
“Filhos, filhos?/ Melhor não tê-los!/ Mas se não os temos/ Como sabê-los?”, diz o poema de Vinícius de Moraes, que, salvo a piada, diz muito sobre a experiência de ter filhos: só da pra saber o que é cuidar de uma criança depois que efetivamente nos vemos obrigados aos cuidados dela. Cursos, livros, filmes, nada disso nos prepara? Não totalmente. O jeito mais eficaz de se ter uma noção clara do (imenso) trabalho que a atividade representa, segundo a psicanalista especializada em perinatalidade Fernanda Lopes, é ser da rede de apoio de alguém. Na prática, isso significa se oferecer para ajudar nos cuidados do bebê de um amigo ou amiga, dar um vale night para uma mãe ou pai que não sabem o que é ter tempo livre à noite há tempos, estar próximo de uma família com filhos pequenos, ficar disponível para o que der e vier.
Psicóloga clínica, psicanalista com formação em psicanálise da parentalidade e da perinatalidade pelo Instituto Gerar, e em psicologia e pelações étnico-raciais no Instituto Amma Psique e Negritude, Lopes relaciona a falta de noção do que é ter um filho a termos nos distanciado da formacão de rede de apoio nos grandes centros urbanos. Desde muito cedo, a responsabilidade do cuidado do dia a dia é delegado à rede paga – babá, escolinha, etc. E isso ocorre mesmo nas periferias, onde rede de apoio e paga se misturam, na figura de uma tia ou vizinha que são pagas para cuidar de crianças da comunidade em suas casas.
O problema disso é começarmos a duvidar das nossas potencialidades como pai e mãe. “Tem que lembrar: sobre o filho da gente quem sabe mais é a gente. Delegamos muito aos especialistas e eles vendem que são pessoas que sabem tudo. Só que quanto mais alguém te vende que sabe tudo, mais temos que desconfiar dessa pessoa porque não existe esse lugar de saber tudo”, argumenta.
Arquivo pessoal
Em entrevista a Gama, Fernanda Lopes fala sobre como a reposta à pergunta “Vai ter filhos?” pode ter diferentes respostas a depender do recorte social e racial. “Os desafios da parentalidade, nesses casos, não são apenas aqueles iniciais de se ter um bebê, mas há maior chance dessas crianças serem mortas, adoecerem, dessas mulheres morrerem no parto, há um monte de atravessamentos que só o racismo é capaz de justificar”, afirma.
Ela também comenta sobre as dificuldade de se ter uma responsabilidade dividida nos cuidados da criança por seguirmos os ideais do patriarcado: a licença-paternidade de apenas cinco dias, para ela, é um dos maiores símbolos dessa realidade, que é presente em todos os estratos sociais. “De que servem cinco dias?”, questiona e sugere como solução a licença parental, que dá a pai e mãe o mesmo tempo de dedicação exclusiva à criança. “Para criar os filhos com divisão igual de tarefas, é preciso trazer o companheiro junto e construir essa parceria desde o início (…) ter uma participação ativa, inclusive opinativa, daquilo que interessa, dos dois”, diz na entrevista que você lê a seguir.
Muitas famílias passam a conviver com crianças pela primeira vez quando têm filhos
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G |O que as pessoas não têm ideia quando resolvem ter filhos?
Fernanda Lopes |É sempre algo inédito, um filho é uma nova pessoa. Você pode ter imaginado um filho, desejado aquela gravidez, ou mesmo gestado por acidente, sem planejamento, mas a pessoa que você vai conhecer quando nasce e chega na sua casa, e mesmo se for uma adoção, é inédita. A parentalidade planejada na ideia é sempre mais bonita e perfeita do que na prática. O que acontece na real: eu planejei uma coisa, vou fazer outra; e a pessoa com quem eu planejei vai responder de um outro jeito que eu não imaginei, o que me obriga a dar uma outra resposta. Tem uma coisa que encontramos em você que é nova. Por mais preparada que esteja, fez cursos, leu todos os livros, consumiu todos os blogs, na hora H é você. E se pensarmos na questão social desse momento histórico que vivemos, principalmente na classe média alta, muitas famílias passam a conviver com crianças pela primeira vez quando têm filhos.
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G |O que um futuro pai e uma futura mãe deviam fazer e saber antes de ter filho, tem como se preparar?
FL |O que nos prepara para ter filhos é conviver mais com pessoas que os têm. Se eu nunca vi uma criança, principalmente um bebê, na hora em que ele chora parece que tem alguma coisa muito errada, mas ele está só sendo um bebê. Ele só sabe chorar, fazer cocô, xixi, mamar, e é isso. A gente vai procurar 200 doenças, a avó que há muito tempo não convivia com neném já acha que é porque é fome, isso e aquilo. Isso acontece especialmente nas classes média e média alta. Quanto mais a gente consegue conviver de verdade, com pessoas reais e não apenas seguindo a galera do Instagram, mais desenvolve uma noção da vida real do que é ter filhos. Ser rede de apoio para alguém que tem filhos, ir ajudar uma amiga que tem filhos, por exemplo, faz perceber que não dá para fazer comida durante o dia porque o dia é muito puxado. Se oferecer para dar um vale night a um pai ou mãe novos e entender o que significa brincar e estar junto. Ter que dar atenção, para mim essa é a preparação mais interessante, mas que nem sempre é possível.
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G |Nos distanciamos da ideia de rede de apoio?
FL |Nas grandes metrópoles, sim. Talvez no interior e na periferia ela ainda exista, ainda que seja uma rede paga, em que a tia cuida das crianças na casa enquanto os responsáveis vão trabalhar. Mas nas grandes metrópoles e na classe média, a gente se distanciou. Passamos a delegar os cuidados das crianças para especialistas, desde muito cedo, seja com a babá ou com a escolinha.
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G |E qual o perigo de delegar demais?
FL |Nunca tivemos tantos especialistas em perinatalidade, e nunca tivemos tanto B.O. Tem que lembrar: sobre o filho da gente quem sabe mais é a gente. Delegamos muito aos especialistas e eles vendem que são pessoas que sabem tudo. Só que quanto mais alguém te vende que sabe tudo, mais temos que desconfiar dessa pessoa porque não existe esse lugar de saber tudo. O que me aparece muito no consultório é essa ideia de que se eu fizer X, garanto que essa criança não vai ter trauma, não vai fazer terapia, vai me amar para sempre e ser o alecrim dourado. A gente tem que lembrar que vínculo não se compra, você faz e refaz, repara ele a vida toda. Não tem nada que você faça que seja tão definitivo e tão destrutivo para o vínculo.
Para criar os filhos com divisão igual de tarefas, é preciso trazer o companheiro junto e construir essa parceria desde o início, antes mesmo do parto
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G |A responsabilidade de criar filhos, historicamente, recai muito sobre as mães, mas é dos pais também. Um complicador é pensar que o Estado, em alguns países, divide essa responsabilidade, mas não no Brasil. A gente deveria cobrar mais?
FL |Nem CLT temos mais, estamos quase sem leis trabalhistas. E brigamos equivocadamente por licença-maternidade, quando a briga deveria ser por licença parental, que é da dupla, seja para duas mães, ou dois pais, ou para pai e mãe, para qualquer formato de família. Com isso, os dois teriam o mesmo cuidado e a mesma responsabilidade. Se não é isso, o pai tem cinco dias e a mãe quatro meses – ou seis, se a empresa é muito legal –, como os dois vão ter o mesmo cuidado e responsabilidade? Cinco dias serve para quê? O seriado “Maid” faz uma crítica sobre a burocracia do suporte às famílias dos EUA. Mas aqui nem suporte tem para criticar. Você olha e fala “Nossa tem tudo isso? Caraca”, tem ajuda para alugar um lugar, creche, grana, isso faz muita diferença. A criação de uma criança, quando é de responsabilidade de um grupo e não de um indivíduo só, é muito mais leve; é exaustivo criar uma pessoa. É muito mais gostoso quando você viaja com um grupo de amigos que têm filhos e todo mundo se ajuda, as crianças brincam, você consegue sentar e ler um livro, do que você está sozinha — principalmente quando são pequenos.
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G |Pensando nas famílias de 2022, o que vem antes: a licença paterna ruim ou o comportamento paterno na divisão desigual?
FL |O que vem antes é o patriarcado, é o cara que entende que isso não é responsabilidade dele, afinal de contas ele é um inseminador. Quem cuida da semente é a mulher, foi posta nela e ela tem que se ver com isso; o cara não. O fato de existirem cinco dias já é uma implicação de “escuta, você tem alguma coisa a ver com isso”, que é o mesmo do “escuta, você tem que dar seu nome”, “sabe a pensão? Seu filho não come se você não dá esse dinheiro”.
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G |Que dica é possível dar a casais que estão planejando ter um filho para conseguirem um equilíbrio na divisão das tarefas?
FL |Antes de qualquer coisa é importante não ter filhos se o relacionamento está ruim, porque só vai piorar. Isso não é uma profecia maluca, é um fato. É preciso ter um acordo claro sobre ter ou não ter filhos. Se um não quer de jeito nenhum e abre mão, pode acabar frustrado, e como é que vai entrar no jogo? Dito isso, para criar os filhos com divisão igual de tarefas, é preciso trazer o companheiro junto e construir essa parceria desde o início. Buscar juntos informações sobre o parto, o cuidado com a criança, a amamentação, a alimentação do bebê, a criação, além de discutir o que gostam e o que não gostam, para que o filho não se torne um nicho que é só “dela”. É preciso ter uma participação ativa, inclusive opinativa, daquilo que interessa, dos dois. Infelizmente tem um movimento que às vezes precisa partir da mulher, de chamar a atenção do homem. Estamos falando de uma geração que ainda não cresceu entendendo que essas questões dizem respeito às mães e aos pais. Por enquanto, há uma bolha apenas que divide as tarefas, não é a regra.
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G |Na sua experiência clínica, o que você vê?
FL |Como tenho uma entrada grande nos adeptos da humanização do parto, vejo uma realidade diferente. Preciso sempre fazer um esforço para lembrar que vivo em uma bolha, onde homens me mandam mensagem porque querem que a criança faça terapia. São muitos que vêm na consulta, que estão interessados, que fazem perguntas. Eu era consultora de amamentação e, durante a consulta, estavam sentados, prestando atenção, algo que é muito raro em outras camadas sociais. Se você vai em uma classe social muito alta, a mãe fica acompanhada da babá e o pai sai para correr, já que não tem nada a ver com aquilo. Em uma classe social mais baixa, há uma incidência muito grande de relações machistas, a ideia de que isso não é a tarefa de um homem, e portanto eles não se envolvem nisso.
Os desafios da parentalidade negra vão além de se ter um bebê; há um monte de atravessamentos que só o racismo é capaz de justificar
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G |Você é também uma estudiosa da negritude. Como nesse ponto a responsabilidade da experiência da parentalidade é diferente das famílias brancas?
FL |Tem um passo anterior: o grande contingente de mães solo que são negras. Tem muito mais famílias monoparentais, não por escolha, do que nas famílias brancas. Aí eu vou ter também um recorte de quem vai ter o nome do pai, quem não vai ter, uma série de outras questões atravessadas por esse formato. Recentemente, quando teve o assassinado do Moïse [imigrante congolês morto a pauladas no Rio de Janeiro], uma colega que é parteira me falou de justiça reprodutiva. Quando pensamos em justiça reprodutiva pensamos no parto, no nascimento, mudar a forma de nascer, mas quando pensamos na população negra, a justiça reprodutiva tem a ver com o meu filho continuar vivo, que o estado me dê as condições necessárias. Os desafios da parentalidade, nesses casos, não são apenas aqueles iniciais de se ter um bebê, mas há maior chance dessas crianças serem mortas, adoecerem, dessas mulheres morrerem no parto, há um monte de atravessamentos que só o racismo é capaz de justificar. Essas mães negras solos não são por opção, mas por uma questão do mercado dos afetos, de quem é para casar e quem é para transar. Há uma hipersexualização do corpo negro, tanto para homens quanto para mulheres, uma grande objetificação. Evidentemente, não estou dizendo que não tenham relacionamentos, interraciais ou afrocentrados que não construam parcerias. Mas o que as pesquisas apontam é que a maioria das maternidades solo são de mulheres negras.
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G |E de uma faixa etária mais jovem também?
FL |Mais jovem, tem um recorte de raça, mas tem a interseccionalidade do recorte de classe. Se você vai em uma periferia, dificilmente tem uma mulher de 30 anos ainda sem filhos. Com 40 anos, se duvidar, já são avós.
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G |A violência contra o povo preto é uma constante no país e o movimento das mães negras é muito forte. Você acha que as novas gerações pensam sobre os efeitos da violência antes de terem filhos?
FL |Entre os ativistas há esse pensamento: “Vou colocar uma criança preta no mundo para correr esse risco?”. Mas tem muito mais a ver com o ativismo do que com uma questão racial e ele nem sempre permeou toda a população negra, pois o discurso ainda é muito nichado.
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G |Faz sentido essa nossa pergunta, “vai ter filhos?”, para a população preta do Brasil ou as desigualdades não dão essa oportunidade da pessoa se fazer essa pergunta?
FL |Faz sentido sim. O que vai mudar é como pensar nessa resposta. O “vai ter filhos?”, quando penso em situação de periferia, penso em planejamento familiar, em acesso ao direito de não ter filhos, em última instância vou pensar em legalização do aborto. Na classe média ou média alta isso não está posto, porque você tem DIU, toma anticoncepcional, pode fazer um aborto mesmo que não seja legalizado porque tem dinheiro para pagar, etc. Acho que essa pergunta, para cada lado, ela vai levar para uma resposta diferente. Acho que quando estamos falando de população preta e periférica, falamos de garantia de direitos básicos, que volta para a questão dos acessos à licença-maternidade, licença-parentalidade, auxílios governamentais, maternidades decentes, pré-natal de qualidade, a pessoa que mede a sua pressão, tudo. Tudo que do outro lado tá muito mais posto em uma decisão que é mais subjetiva do quanto isso vai impactar na carreira, querer muito viajar, e a liberdade, e tudo. Não sei se a gente já chegou nessa pergunta do outro lado da ponte.
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G | O IBGE mostrou em 2020 que a desigualdade de inserção das mulheres no mercado de trabalho é maior nos domicílios com crianças de até três anos de idade. Mas que com as mães negras essa questão é muito maior, mais de 50% delas não trabalham. Por que isso acontece?
FL |A minha hipótese é o acesso à creche. Para eu poder trabalhar, preciso ter quem cuide dessas crianças. Se não tenho acesso à creche, isso fica muito mais difícil. Imagino eu que seja mais fácil conseguir vaga para faixas etárias maiores. E piorou tudo com a pandemia, o acesso das mulheres ao mercado de trabalho piorou muito.
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G |O que se pode fazer?
FL |Depende do governo, mas a gente pode fazer pressão. A gente tem uma indignação pouco efetiva, meio contida, somos tímidos. Pensar no caso do Moïse, por muito menos os EUA já teriam queimado tudo. Imagina se fosse um negro americano que tivesse sido morto? Seria um drama diplomático. Temos que fazer da indignação um motor para a ação. Eu moro do lado do Jardim Jaqueline [zona oeste de São Paulo] e ali a própria comunidade se organiza e monta projetos sem verbas sociais. Batem na porta do mercado, veem se tem lanche para dar para as crianças. Isso também é uma coisa interessante porque não adianta só por em uma conta de que as ações vão ser governamentais.
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G |Por que mães negras muitas vezes tem mais filhos do que mães brancas?
FL |Pela falta de acesso a métodos contraceptivos, pela ação do machismo — o cara diz que não vai usar camisinha, que mulher dele não faz isso, tem esse viés. Penso na médica de família Júlia Rocha, que diz não saber quantas mulheres já atendeu ao longo da vida dela no SUS que quando podem botar o DIU, param de ter filhos. Não necessariamente foi uma opção ter três, quatro ou cinco filhos. E a mulher chega para parir e o médico já fala “ano que vem te vejo aqui de novo”, ele não fala isso para qualquer mulher. Essa é uma fala muito preconceituosa. O que a gente briga é para que exista uma opção.
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CAPA Vai ter filhos?
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