Gina Vieira: "A educação antes de tudo é um processo de humanização" — Gama Revista
Saudade da escola?
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Conversas

Gina Vieira: "A educação antes de tudo é um processo de humanização"

Por mais de 30 anos a professora Gina Vieira atuou na educação básica. Hoje, se tornou uma voz em defesa da formação dos professores e de uma educação pública de qualidade

Luara Calvi Anic 28 de Janeiro de 2024

Gina Vieira: “A educação antes de tudo é um processo de humanização”

Luara Calvi Anic 28 de Janeiro de 2024
Foto: Arquivo pessoal

Por mais de 30 anos a professora Gina Vieira atuou na educação básica. Hoje, se tornou uma voz em defesa da formação dos professores e de uma educação pública de qualidade

Quando, em uma conversa, a professora Gina Vieira Ponte, 52, conta de algum momento da vida de seu filho adolescente, ela costuma indicar também a fase da escola em que o menino estava: educação infantil, ensino fundamental ou ensino médio. É que, com a experiência de quem trabalhou por 30 anos na educação básica, olhar uma criança é imediatamente pensar na vida escolar dela. “O grande diferencial da educação, que vai dizer se uma criança está aprendendo ou não, se ela está feliz ou não, é o quanto ela se sente pertencente, abraçada e acolhida por um grupo, sem isso nada acontece”, diz em entrevista a Gama.

E foi pensando no fortalecimento da comunidade escolar, em um maior envolvimento dos alunos com os conteúdos propostos e, ainda, com a perspectiva de uma educação mais diversa que, em 2014, ela criou o projeto “Mulheres Inspiradoras”. Na época, ela propôs aos seus alunos da região de Ceilândia, a mais populosa do Distrito Federal, que lessem obras de autoria feminina, estudassem a biografia de mulheres importantes para a história do mundo e entrevistassem personagens do gênero feminino de sua comunidade. Deu tão certo que o projeto vem sendo implementado em diferentes escolas e já levou mais de vinte premiações — entre elas o I Prêmio Iberoamericano de Educação em Direitos Humanos.

A brasiliense é filha de pais analfabetos que viam na educação um futuro para os filhos. O pai, nascido em Sobral, no Ceará, veio ao Centro-Oeste para trabalhar na construção de Brasília nos anos 1960. A mãe, filha de agricultores de Manhuaçu (MG), trabalhava desde a infância na roça e chegou ao Distrito Federal nesse mesmo ano em busca de oportunidades. Os dois se encontraram na capital e tiveram seis filhos. Incentivada pelos pais, Vieira decidiu que se tornaria professora. Hoje, ela é aposentada pela Secretaria de Estado de Educação do DF e vem atuando como palestrante e formadora de docentes.

Sua fala carrega a vivência de quem participou do dia a dia da sala de aula e viu os altos e baixos da educação no país. “Lideranças políticas que ofecerem soluções simplistas são aquelas que entendem de mercado mas não entendem de educação. Se estivessem preocupadas, estariam ouvindo os professores, os pedagogos, os pesquisadores da educação”, diz a Gama.

E destaca a importância da comunidade escolar e do investimento na formação dos docentes. “Vejo o professor como um intelectual transformador. Tenho que ser capaz de fazer uma leitura do que acontece no entorno para dialogar com meu aluno. Formar uma pessoa que tenha esse perfil é algo muito complexo que requer uma consistência teórica que foi sendo abandonada”, diz na conversa a seguir.

A educação acontece quando a criança se sente acolhida

  • G |Como você define a comunidade escolar e qual a importância dela?

    Gina Vieira |

    A pandemia deveria ter nos ensinado que educação é sobretudo sobre relações, sobre interação. A gente já tem estudos conclusivos que mostram que a aprendizagem é um processo interacional, que está muita ligada com a interação do sujeito com o conteúdo a ser aprendido. E, no caso dos profissionais da educação, isso se dá na interação com os seus pares. Então a comunidade escolar é um conceito que foi ficando abandonado e a gente está pagando um alto preço por isso. Primeiro você não tem uma sociedade com esse sentimento de pertencimento à escola, e se eu não pertenço eu não cuido, eu não luto, eu não acompanho. E, paralelamente, há um espaço na escola que está sendo cooptado por quem tem interesses escusos na política. Defino comunidade escolar em duas perspectivas: a legal, que diz que comunidade escolar são os quatro segmentos que constituem escola — professores, funcionários que trabalham no apoio à aprendizagem, as famílias e os estudantes. E toda a comunidade que circunda, que compõe aquele território. Porque todo mundo que está nesse território pode ter incidência na organização do trabalho pedagógico.

  • G | Como a escola pública, na qual você atuou por 30 anos, pode ensinar uma nova perspectiva quando falamos em comunidade escolar?

    GV |

    Eu tenho problematizado essa categoria escola pública como uma grande categoria geral, que engloba todas as escolas. Eu, por exemplo, já atuei em escolas públicas muito mais autoritárias do que escolas privadas. O fato de ser pública não significa que será democrática, embora devesse significar. Nos últimos anos, vi a minha rede tomando uma cara que eu não reconheço, venho observando uma pauperização na formação dos docentes. Nasceram cursos de formação aos borbotões, EAD [Educação à Distância] sem critério, um sucateamento. Estudos mostram o quanto os professores foram mal formados por essas instituições privadas que se reduziram a balcões de negócio. Você paga sua mensalidade e eu dou seu certificado. Isso não quer dizer que ele esteja preparado. É o pacto da mediocridade.

  • G |O que seria um professor bem preparado hoje?

    GV |

    Eu sempre compreendi o professor como um intelectual transformador, que detém o conhecimento daquilo que ele vai ensinar, mas não só isso. Ele compreende as fases do desenvolvimento humano, sabe que eu preciso criar uma situação de aprendizagem que respeite a infância daquela criança ou adolescência ou a característica daquele adulto. Mais do que isso, tenho que ser capaz de fazer uma leitura do que acontece no meu entorno para dialogar com meu aluno. Formar uma pessoa que tenha esse perfil é algo muito complexo que requer uma consistência teórica que foi sendo abandonada. Então a gente não pode olhar para a escola pública como essa entidade congelada no tempo e padronizada porque você tem escolas públicas de excelência, democráticas, com uma qualidade pedagógica absurda, mas por força de um processo de sucateamento, precarização, pasterização você também tem escolas públicas autoritárias. O carro-chefe da educação do Distrito Federal neste momento histórico são ainda as escolas cívico-militares.

  • G |Há então uma visão romântica relacionada à escola pública?

    GV |

    Sim. A gente tem que fazer a crítica e eu não sou adepta dessa visão romântica porque não ajuda a escola pública a avançar. Posso afirmar que a escola pública que me formou na década de 1970 e 80 é completamente diferente da que eu comecei a atuar com professora na década de 90, que por sua vez é totalmente diferente da de 2020, em que vejo coisas absurdas. Se a gente quiser mudar os problemas temos que ter coragem de falar francamente sobre eles.

  • G |Qual é o grande diferencial da escola pública em relação à escola privada hoje em dia?

    GV |

    São vários diferenciais. Eu já estive em escolas públicas do Distrito Federal que têm 3 mil alunos, é praticamente a população de um município com uma equipe de quatro pessoas para tomar conta. É óbvio que é feito para não dar certo. Esse sucateamento e essa precarização estavam muito ligados a questões materiais estruturais mas hoje transborda porque envolve questões relacionadas à formação. Considero indispensável que o professor que vá trabalhar com o estudante construa vínculo, fato necessário para que se forme comunidade e haja aprendizagem. E hoje, aqui no Distrito Federal, a gente tem o número de 60 a 70% dos profissionais na condição de regime de contrato temporário [o contrato de professor temporário tem duração de um ano prorrogável até o limite de dois anos]. Isso é um tiro certeiro contra a qualidade da educação porque você tem um profissional que não vai criar vínculo com a escola e com os alunos e, mais do que isso, tem um problema de descontinuidade no trabalho de formação que se faz com aquele profissional. Eu tenho muito medo de ser mais uma a reverberar esse discurso da escola pública como terra arrasada, não se trata disso. Como diz Anísio Teixeira [1900-1970], nosso grande pensador e filósofo, a escola pública é a máquina de fortalecer a democracia. Talvez por isso a nossa democracia seja sempre tão frágil, porque a gente tem uma escola pública que vem sendo fragilizada.

  • G |Hoje, os jovens têm acesso fácil à informação por diferentes fontes online. Como o papel do professor vem se transformando diante dessa realidade?

    GV |

    O papel do professor é mais relevante do que nunca porque há muita informação disponível, mas não há conhecimento disponível. Conhecimento é aquilo que você constrói na interação com determinado conteúdo. Informação vira conhecimento ao longo do percurso. Esse mundo digital tenta dizer pra gente: “Por que você vai ficar um mês debruçado sobre um livro, sublinhando, fichando, resumindo se eu posso te dar um vídeo de 15 minutos que entrega essa obra pronta?”. Percebe que a gente está mudando de paradigma até na maneira como constrói o nosso conhecimento? O capitalismo criou o fast food e agora criou também o fast study, como se você não precisasse acumular anos de estudo.  A gente levou anos para desenvolver o método científico e, embora ele traga uma perspectiva branca e eurocentrada, há muita coisa que não podemos abandonar.  O professor hoje tem um papel sofisticadíssimo. Ser professor é algo muito complexo que demanda olhar para a realidade e conectar o que eu tenho que ensinar a ela. Então não tem um pacote pronto.

  • G |Em 2023, São Paulo teve uma tentativa de substituir 100% dos livros tradicionais, em papel, por digitais. Escolas, opinião pública e especialistas trouxeram os pontos negativos da iniciativa e o governo recuou. A que você associa esse tipo de escolha?

    GV |

    Há um equívoco em muitas coisas que a tecnologia oferece. Estão esquecendo que a educação, antes de tudo, é um processo de humanização e a tecnologia por si não vai resolver os nossos problemas. Além disso, que tipo de tecnologia a gente está levando para a escola? Porque tem sido levada sucata tecnológica que não vai acrescentar em nada. A única coisa que vai fazer é colaborar para o fornecedor desse material ficar mais rico ao vender um determinado produto e serviço. Portanto, lideranças políticas que ofecerem soluções simplistas são aquelas que entendem de mercado mas não entendem de educação. Estão preocupadas em vender mas não estão preocupadas com mudanças estruturais. Se estivessem, estariam ouvindo os professores, os pedagogos, os pesquisadores da educação.

  • G |Apesar dessa ciência que parte de uma perspectiva branca e eurocentrada, que você menciona, há nas escolas iniciativas relacionadas a uma educação decolonial. Como você observa que esse tipo de iniciativa é recebido pela comunidade escolar?

    GV |

    Essa palavra decolonial, assim como as palavra antirracista, anti-sexista, estão na moda e acho importante pensar por que isso ganhou tanto relevo. É fruto da luta histórica do movimento negro, do movimento de mulheres que sabem que a educação, como diz Miguel Arroyo [PhD em Educação pela Universidade de Stanford nos EUA, foi professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais], é um campo de disputa. Quando um material didático apaga a presença das mulheres, como se os homens tivessem construído a história e como se as mulheres não estivessem lá, eu estou dizendo para meninas, “olha como vocês são menos capazes do que os homens”. Então acho importante destacar a atuação dos movimentos sociais sobretudo e a importância das ações afirmativas em relação a levar para a universidade os sujeitos que historicamente foram excluídos dos espaços de produção de conhecimento — indígenas, quilombolas, pessoas negras, pessoas lgbtqia+. Hoje, o movimento decolonial tem tentado resgatar esse saberes que foram soterrados, tal qual foram mortos os sujeitos detentores desse saberes. Essa perspectiva pode ajudar a mudar profundamente o nosso material didático, as nossas políticas públicas, o nosso trabalho na sala de aula, mas lamento dizer que a gente está muito longe dessa mudança a partir de uma perspectiva estrutural.

  • G |Você quer dizer que não é suficiente?

    GV |

    Sim. A  identidade negra foi para um lugar completamente diferente de celebração e afirmação. Isso é fruto das ações afirmativas e da aprovação da lei nº 10.639 [de 2003, que estabelece o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica] e da lei nº 11.645 [de 2008, que garante que a cultura indígena seja estudada nas escolas], mas como nosso objetivo é avançar é preciso ir além. A gente ainda vê um alto índice de reprovação de estudantes negros. Essa população continua sofrendo racismo, ainda há jovens negros que não gostam de ir pra escola na semana da Consciência Negra porque aquilo que é mostrado, muitas vezes, é violento. Temos que celebrar os avanços que nós tivemos, hoje nenhuma escola tem condições de afirmar que não sabe da importância da educação antirracista e decolonial, e isso é maravilhoso, mas a gente ainda tem uma escola pautada pela métrica do “eu quero saber se o meu filho passou no vestibular”.

  • G |E quais as consequências desse foco?

    GV |

    Essa métrica é muito pobre porque a universidade é para pouquíssimos. Às vezes, você tem uma escola com 2 mil alunos e cinco são aprovados no Enem. Faz-se uma grande festa, mas a gente não pensa nos outros alunos. Eles vão fazer o quê? A escola está contaminada por uma lógica neoliberal e competitiva desastrosa. E, além disso, o professor nem sempre está qualificado porque há também um grande apagão nas políticas públicas de formação de professores. Se a gente quer realmente avançar, precisa de uma perspectiva institucional de redes municipais de educação que se responsabilizem pela formação dos professores. Formar esse profissional não é mandar uma aula pronta para ele assistir sozinho [como acontece nos modelos de Educação à Distância (EAD)], mas criar um percurso formativo onde ele vai estar em contato com determinados conteúdos, mas mais do que isso vai interagir com seus pares sobre aqueles conteúdos. Do contrário a gente vai para uma lógica individualista e esquece que o trabalho pedagógico é essencialmente colaborativo. Se eu mando cada professor estudar no seu quadrado eu não construo uma coisa essencial, que é o sentimento de comunidade, de uma unidade de ensino coesa.

  • G |Como isso reflete na formação dos alunos?

    GV |

    Isso vai empobrecendo todos os processos porque, se tem uma coisa que é inegociável é que o grande diferencial da educação, que vai dizer se uma criança está aprendendo ou não, se ela está feliz ou não, é o quanto ela se sente pertencente, abraçada e acolhida por um grupo, sem isso nada acontece.  Os indicadores de uma boa escola não podem ser apenas ver se ali os alunos passaram no vestibular ou se têm aula de robótica… porque o sentido da escola é fazer a criança aprender e se desenvover.  O indicador é a própria criança, que narrativa essa criança traz? O olho brilha quando ela fala que vai pra escola ou ela tem resistência? Se tem, ligue sua antena porque eu posso ter toda a parafernalha eletrônica, ensinar robótica, tecnologia, aula de balé, mas se as pessoas que estão lá não acolhem seu filho, não olham no olho e não dialogam com ele não tem nada que vá dar conta de suprir essa primeira necessidade humana, eu preciso do outro para me constituir sujeito.