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ReportagemA ansiedade que te impede de tomar decisões
Um martírio para muita gente, o processo de fazer escolhas, das grandes às pequenas, pode ser ainda mais complexo para os ansiosos
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A ansiedade que te impede de tomar decisões
Um martírio para muita gente, o processo de fazer escolhas, das grandes às pequenas, pode ser ainda mais complexo para os ansiosos
Você é daqueles que tomam decisões num piscar de olhos ou está na turma dos que precisam analisar o grau de fome, o dia da semana, todas as refeições mais recentes e até a estação do ano para decidir qual prato vai pedir no delivery? Pois saiba que tem gente com tanta dificuldade de fazer escolhas que um dilema aparentemente simples do cotidiano pode levar minutos, horas ou até — em casos extremos — dias para tomar uma decisão. A professora de educação física Ana Clara do Amaral, 38, certamente pertence ao segundo time. Basta dizer que, quando uma tia lhe ofereceu duas opções de toalhas para se enxugar após o banho, ela sem querer abriu as portas para um enigma que consumiria longos minutos na vida da sobrinha. “Eu gastei um tempo ali que não precisava. Ai, quero a branca ou quero a verde? Branca ou verde?”
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O exemplo da professora, que poderia ser descrita como uma indecisa crônica, parece banal — e de fato é —, mas ilustra como pequenos dilemas do dia a dia afetam a vida de quem sofre com a dificuldade constante de tomar decisões, podendo ter como consequência desde um gasto desnecessário de tempo até um impacto psicológico mais profundo.
Cientistas estimam que o ser humano costuma tomar até 35 mil decisões por dia
Quando dizem que a vida é feita de escolhas, não é apenas no sentido figurado. Na realidade, cientistas estimam que o ser humano costuma tomar até 35 mil decisões por dia. Pode parecer exagero, mas pense em como cada ação sua depende de uma decisão, mesmo que de forma quase inconsciente.
Por exemplo, ao ler este texto, você não fez somente uma escolha, mas potencialmente várias. Além de optar por começar a leitura, você em algum momento pode ter decidido voltar algum parágrafo para entender melhor, resistiu à tentação de pegar o celular ou de abrir as redes sociais para dar uma espiada. O próprio ato de continuar lendo implica uma decisão que você precisa tomar continuamente. (Inclusive, se chegou até aqui, muito obrigado pela escolha.)
O problema é que, até o momento, abordamos apenas decisões simples, que em geral impactam pouco nossa vida. Quando entramos no campo das médias ou até das grandes decisões, a situação complica um pouco mais.
Foi o que aconteceu com Amaral quando, algum tempo atrás, passou por um processo seletivo para uma vaga de professora, na qual foi aprovada. Naquele momento, estava numa escola de que gostava, e a nova vaga trazia algumas pequenas vantagens em relação ao cargo. Quando a nova instituição entrou em contato, a professora já estava em período de férias, “no meio do mato”, e precisava tomar a decisão em até dois dias, pois o RH da escola também entraria em recesso.
“Quando dei a resposta, tive ânsia de vômito, um mal-estar que surgiu meio que do nada”, lembra Amaral. Para decidir, ela precisou pedir a opinião da tia e dos primos, com quem estava viajando. Também ligou para a mãe, o pai e algumas amigas, que a deixaram inclinada a aceitar. Não satisfeita, elaborou uma lista de prós e contras, como salário, localização etc. Um dos motivos para a indecisão é que estava havia muitos anos no antigo emprego, onde tinha criado laços. “Então era muito difícil para mim comunicar que eu ia sair.”
Decisões comprometidas
A exemplo de praticamente qualquer fenômeno contemporâneo, a dificuldade de tomar decisões já ganhou alguns nomes, como paradoxo da escolha, termo cunhado pelo psicólogo estadunidense Barry Schwartz, ou a sigla FOBO (Fear Of Better Options) — em outras palavras, o medo de haver algumas opções melhores por aí. Especialistas já conectam inclusive a existência de uma infinidade de opções em diferentes áreas da nossa vida a um aumento na indecisão, insatisfação e, claro, a uma ansiedade que anda sempre em alta.
Vale lembrar que uma das principais características do transtorno de ansiedade generalizada é justamente antecipar desenlaces negativos, até mesmo catastróficos, de eventos cotidianos, como aponta o psiquiatra Márcio Bernik, coordenador do Ambulatório de Ansiedade (Amban) do Instituto de Psiquiatria do Hospital da Clínicas FMUSP.
Com a preocupação e o pensamento excessivos, o especialista explica que aumenta consideravelmente a dificuldade de decidir por um certo comportamento, ainda mais quando ele pode colocar em risco questões como futuro, carreira, família e saúde. “E o mais curioso é que, mesmo não tomando uma decisão, ao deixar o destino ou a vida decidir por você, não fazer nada também é uma decisão”, afirma o psiquiatra.
Nesse cálculo, é preciso diferenciar níveis baixos, médios e altos de ansiedade, de acordo com o psicólogo e neurocientista comportamental Jesus Landeira-Fernandez, professor de psicologia da PUC-Rio. Ele lembra que o medo e a ansiedade em certo nível são fundamentais para a evolução e adaptação humanas ao longo do tempo, permitindo calcular riscos desnecessários e evitar perigos.
“Tem uma explicação biológica, através do processo de seleção natural, para esses transtornos de ansiedade serem tão frequentes na nossa sociedade. A gente já vem com um manual de instrução quando nasce para, na dúvida, ficar ansioso”, considera o neurocientista.
Quando uma pessoa fica ansiosa, provavelmente é porque identificou algum risco externo, seja ele real ou imaginado. A questão que isso traz para o processo de tomar decisões, diz Fernandez, é que, em meio à ansiedade, nossa atenção fica bem mais concentrada nesses perigos potenciais, limitando a atividade cognitiva. “Então, quanto mais ansiosa a pessoa, mais comprometida pode estar a decisão dela”, resume.
Medo de perder
Por focarmos muito mais nesses riscos, decisões tomadas sob forte ansiedade tendem a ser mais conservadoras e cautelosas, diz a psicóloga clínica e doutora em ciências do comportamento Roberta Pohl.
“A pessoa pode até não decidir ou decidir pelo menos melhor. Geralmente são fatores ruins, no sentido de não se arriscar e não vivenciar o novo”, reforça. A psicóloga afirma inclusive que muitas pessoas têm largado aplicativos de namoro e relacionamentos por conta da infinidade de opções disponíveis.
É mais ou menos isso que define o FOBO, no qual uma quantidade maior de opções implica uma angústia diretamente proporcional, já que, em vez de pensar no que ganhou, a pessoa fica cada vez mais vidrada naquilo que pode estar perdendo ao fazer uma escolha. É um sentimento que aparenta ter ganhado tração nas últimas décadas com a internet e as redes sociais, que ampliaram o leque desde as pessoas com quem podemos nos relacionar até os milhões de produtos sempre à mão disponíveis para consumir.
Se você opta por tomar uma decisão qualquer e ganhar alguma coisa, certamente está abrindo mão de outra, está perdendo
Uma das principais descobertas do psicólogo Daniel Kahneman (1934-2024), vencedor do Nobel e um dos fundadores da economia comportamental, foi que o medo de perder costuma ser maior no ser humano do que a felicidade de ganhar. Por isso, não importa o que decida, quanto mais escolhas você tem, maior pode ser a sensação de que está indo mal. “Se você opta por tomar uma decisão qualquer e ganhar alguma coisa, certamente está abrindo mão de outra, está perdendo”, diz Fernandez.
Uma situação clássica é o temido momento de pedir uma refeição no delivery. Além dos milhares de restaurantes e pratos para escolher, também pode haver um fator complicador: precisar alinhar os desejos e preferências entre um casal ou grupo de amigos, como aponta Pohl. “Tem gente que, quando está escolhendo a comida na presença de outras pessoas, sente medo de tomar uma decisão, não sabe fazer aquela escolha. Então sempre deixa para os outros tomarem a decisão, como se eles fossem escolher o mais correto, o que vai agradar”, dá como exemplo a psicóloga.
Num casal, explica ela, a tendência é que aquele que costuma ficar intimidado na hora de escolher se acomode e deixe para o outro, geralmente mais espontâneo, tomar a maioria das decisões. O que não deveria acontecer, na visão da especialista. “O casal tem que se entender para que os dois tenham a individualidade e possam praticar essa tomada de decisão”, afirma.
Na visão de Bernik, entretanto, esse tipo de situação tem menos a ver com ansiedade e mais com uma indecisão momentânea, por não sabermos aquilo que vai nos agradar mais. “Numa sorveteria, você tenta antecipar o prazer que vai ganhar com uma decisão ou outra. Isso é absolutamente normal.” A ansiedade viria apenas em escolhas mais complexas, quando existe uma antecipação do risco. “Se eu devo ou não fazer um exame ou procedimento médico, se devo pedir aumento para o meu chefe ou então se é hora de ter uma conversa sobre o comportamento do meu namorado que está me incomodando”, indica.
Origens do transtorno
Qualquer fã da série de comédia “The Good Place” (2016 – 2020) sabe que a principal característica do professor de ética e filosofia Chidi, vivido por William Jackson Harper, é o sofrimento para tomar qualquer tipo de decisão, desde optar por uma linha de argumento num artigo acadêmico até escolher qual muffin parece mais apetitoso.
A certa altura da série, um flashback mostra que a origem do problema está na infância, quando, usando apenas a lógica inabalável, ele conseguiu convencer os pais a não se divorciarem. Isso fez com que o personagem acreditasse que havia uma única resposta correta para todo dilema — o que está longe de ser verdade quando falamos em tomar decisões.
Por vezes, os pais não deixam as crianças decidirem, eles que decidem tudo, então elas não são treinadas a tomar decisões
Por mais que a cena tenha sido feita para efeitos cômicos e narrativos, ela parece acertar em ao menos um ponto: práticas e traumas da infância e adolescência podem gerar um padrão de ansiedade pelo resto da vida. “Por vezes, os pais não deixam as crianças decidirem, eles que decidem tudo, então elas não são treinadas a tomar decisões”, diz Pohl. “Outro aspecto podem ser punições aplicadas quando a criança escolhe algo que não agrada aos pais. Essa criança pode acabar crescendo sem saber tomar decisões.”
Crianças com muita antecipação negativa em provas, dificuldade de fazer viagens com a escola ou dormir na casa de colegas podem estar apresentando sintomas de ansiedade social, de acordo com Bernik. Mas, segundo o psiquiatra, o transtorno de ansiedade generalizada costuma surgir com mais frequência na idade adulta, quando a pessoa assume mais responsabilidades e toma decisões relevantes no dia a dia.
Para o neurocientista comportamental Jesus Landeira-Fernandez, é fácil saber se essa dificuldade de decidir está dentro do esperado ou se caracteriza um transtorno. Basta verificar se o problema vem causando prejuízo à sua vida e ao seu funcionamento — algo que deve ser analisado de forma mais aprofundada por um profissional. “Uma pessoa sofre de um transtorno de ansiedade se ela deixa de trabalhar, deixa de se divertir, de ter interações sociais por causa dele”, sintetiza.
Em muitos casos, diz Bernik, um quadro de transtorno de ansiedade pode se traduzir também em sintomas físicos, como mudanças no padrão do sono, irritabilidade, náusea, dores no corpo e alterações gastrointestinais.
Pohl aponta que é crucial, seja numa terapia ou mesmo num acompanhamento psiquiátrico, trabalhar a redução da ansiedade prévia à tomada de decisão e focar mais naquilo que você ganha com cada escolha, em vez do que perdeu. “Ou seja, trabalhar incertezas, conquistas de vida e autoestima, tudo isso pode baixar a ansiedade e fortalecer aquela tomada de decisão.”
Bernik reforça que não existe fórmula mágica. “Todo processo de escolha implica um certo grau de preocupação e sofrimento, porque são coisas importantes na sua vida. Se você escolhe ser advogado, não vai ser médico”, indica o psiquiatra. Nesse caso, criar a famosa tabela dos prós e contras, como Amaral, é uma das formas de facilitar o processo, diz o especialista. Ou até, segundo Bernik, fazer um questionamento socrático — técnica terapêutica que consiste em formular perguntas para o autoconhecimento e o pensamento independente. “E se você escolher o errado? Vai ser uma coisa tão catastrófica assim?”
“Quem convive comigo fala: Nossa, é só escolher, sim ou não”, conta a professora Ana Clara do Amaral, para quem o principal impacto do problema tem sido a perda de tempo que ele acarreta. Ainda hoje ela lembra de chorar quando criança sempre que era colocada na posição de precisar escolher algo. “Uma vez, minha mãe disse uma frase que eu levei para a vida: toda vez que você escolhe uma coisa, perde outra”, conta Amaral. “E está tudo bem. Aí fui entendendo que não dá para ter tudo.”
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