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ConversasMiriam Debieux Rosa: "Para o aprimoramento da democracia, é preciso acolher a diversidade"
Especialista analisa como o desejo de pertencer aproxima jovens de grupos extremistas e reflete sobre inclusão, imigração e diversidade nas instituições de ensino e para a manutenção da democracia
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Miriam Debieux Rosa: “Para o aprimoramento da democracia, é preciso acolher a diversidade”
Especialista analisa como o desejo de pertencer aproxima jovens de grupos extremistas e reflete sobre inclusão, imigração e diversidade nas instituições de ensino e para a manutenção da democracia
Para pertencer, seja a uma sociedade, a uma comunidade escolar, a uma família ou a uma turma de amigos, é preciso participar. As singularidades, os valores e as formas de enxergar o mundo de cada integrante de um desses grupos modificam o conjunto. É como o escritor francês Antoine de Saint-Exupéry escreveu: “Aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”
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Assim, quando alguém se enturma em um campo social, uma transformação deve ocorrer nesse grupo, que pode se beneficiar daquilo que o indivíduo traz de diferente. Essa é a perspectiva defendida por Miriam Debieux Rosa, professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), coordenadora do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e pró-reitora adjunta de inclusão e pertencimento da instituição.
Para ela, mais do que simplesmente incluir, o pertencimento exige movimento, diálogo e transformação mútua, o que significa aceitar e valorizar as diferenças ao invés de eliminá-las.
A docente alerta para os efeitos de se sentir inadequado e insuficiente. Isso ocorre sobretudo na adolescência, fase em que as incertezas levam jovens a se vincular a grupos de ódio, muitas vezes incentivados pela dinâmica acelerada e pouco reflexiva das redes sociais.
“O ódio ilude os sentimentos de inadequação e insegurança do adolescente, que acredita na promessa de que pode ter poder sobre o outro se ele for suficientemente agressivo e impositivo. Ele é atraído para isso por não lidar com complexidades, reflexões e com adiamento; é tudo muito imediato”, afirma.
Rosa também dedica parte do seu trabalho ao sentimento de pertencimento, ou a falta dele, vivenciado por imigrantes. Segundo a especialista, que coordena o Grupo Veredas – Psicanálise e Imigração, garantir condições básicas, como acesso à documentação, a um trabalho e a serviços públicos de saúde e educação, é essencial para que essas pessoas se sintam realmente integradas. Não basta apenas assimilá-las; é preciso abrir espaço para que dialoguem e sejam respeitadas em sua individualidade, um processo que exige conscientização e combate à xenofobia e ao preconceito.
Na seara educacional, ela está à frente da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP, órgão que promove políticas que têm reduzido a evasão entre estudantes cotistas. Conforme conta, trabalhar o pertencimento nas instituições não significa impor uma adaptação passiva, mas promover mudanças estruturais que valorizem as diferentes origens sociais e culturais presentes na universidade.

Marcos Santos-USP Imagens
Nesta entrevista a Gama, Miriam Debieux Rosa aponta caminhos para enfrentar sentimento de não pertencimento e destaca por que é urgente compreendermos que diversidade não é ameaça, mas oportunidade e enriquecimento coletivo.
Se uma sociedade é racista, ela não está sendo democrática com grande parte da sua população
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G |Como podemos definir o sentimento de pertencimento e em que ele se difere da inclusão?
Miriam Debieux Rosa |A ideia de pertencimento surge de certo desdobramento da dimensão de inclusão. Muitas vezes, a ideia de inclusão vem associada à adesão de pessoas a uma estrutura estável e, em tese, desejável. Por exemplo: o sujeito teria que ser assimilado e se adaptar àquilo que já existe para ser incluído em determinado campo. É o que a professora Bader Sawaia chama de inclusão perversa. A ideia de pertencimento vem agregada. Para você poder pertencer a um campo, a uma sociedade, a uma família, a uma escola, você precisa poder levar para esse campo as suas próprias formas de viver, as suas concepções. Ou seja, o pertencimento tem implícito a participação. Para pertencer, você também precisa participar com a sua singularidade e com os seus valores. O pertencimento supõe um movimento conjunto. Quando um sujeito entra em um grupo, deve haver uma transformação desse grupo, que pode se beneficiar daquilo que esse novo membro traz de diferente. É a diferença não como assustadora ou algo a ser eliminado, mas a diferença que movimenta e traz um avanço ao grupo de pertencimento.
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G |E o não pertencimento, como ele surge?
MDR |Em geral, esse sentimento vem acompanhado do sentimento de inadequação às formas de funcionamento de um grupo. E a inadequação também não vem só, ela é acompanhada da insuficiência. A pessoa não se sente suficientemente capaz, suficientemente inteligente, suficientemente culta. Ela sente que não pertence muito àquele universo porque se sente diferente. E a diferença, nesse sentido, vem agregada à ideia de não ser suficientemente qualificada. O indivíduo se percebe desqualificado diante dos valores e das habilidades que ele tem para poder oferecer ao grupo.
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G |Por que a adolescência é especialmente marcada por uma sensação de inadequação e pela busca constante por pertencimento?
MDR |A adolescência é uma fase de intensa mudança, de muitas transformações. É quando o indivíduo passa da infância, ou seja, ele não é mais criança, no entanto, ainda não é um jovem adulto. Então, ele fica meio sem lugar. Ao contrário do que se diz, a adolescência é um momento de luto, de perda do corpo e das relações da infância. Mas o adolescente ainda não tem os benefícios de estar em outro momento, ele fica nesse meio-termo, nem lá, nem cá. Além disso, muitas das mudanças que ocorrem nesse período, o indivíduo percebe de fora para dentro, pela mudança na forma com que as pessoas ao redor se relacionam com ele. Desde a família, que tinha um certo padrão de exigência de funcionamento, e muda; até a questão da sexualidade, que, muitas vezes, aparece antes de o próprio adolescente se apropriar das transformações corporais ou das mudanças do desejo. Tudo isso vem de fora, o convocando a uma resposta a demandas sexuais e de competências que ele ainda não desenvolveu, enfrentando também comportamentos e normas, explícitas e implícitas de convivência, que ainda não foram aprendidas.
O pertencimento supõe um movimento conjunto
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G |A sensação de não pertencimento pode levar sobretudo os mais jovens a se aproximarem de grupos extremistas e de ódio, como mostrado na série “Adolescência”. De que forma esse processo ocorre? E como lidar com a situação?
MDR |Diante dessas transformações, o adolescente fica vulnerável a grupos superfechados, rígidos e que, muitas vezes, promovem o que vamos chamar de um certo teste, uma aprovação, um sacrifício que ele tem de fazer para pertencer àquele círculo. E, nesses grupos, muitas vezes, há líderes que induzem o jovem a sacrificar valores familiares e o seu próprio modo de ser. O adolescente, que já está brigando com a autoridade da escola e da família, pode cair nessas malhas, por vezes, até mais autoritárias. Voltando na história, adolescência é um termo da modernidade. Antes, havia uma passagem quase direta, após alguns rituais, da infância à vida adulta. Na modernidade, com as sociedades mais complexas e urbanas, surgiu a necessidade de aprimorar competências para que o indivíduo pudesse pertencer ao mundo do trabalho. A partir daí, foi instituído esse período que chamamos de adolescência, que deveria ser um tempo de mais espera, tanto para o amadurecimento físico quanto para o amadurecimento mental. A sociedade deveria dar um tempo maior para que o adolescente aprenda a se responsabilizar pelas coisas porque ele ainda alterna muito entre a extrema timidez e a impulsividade. Uma das coisas para sair disso é fazer o adolescente pensar quais universos ele poderia pertencer. Ao campo das artes, das ciências, das políticas, das ações sociais? Qual profissão ele gostaria de ter? Em seguida, desenvolver habilidades para isso. Essas são ações eficientes a médio prazo. A curto prazo, penso que as famílias precisam estar mais atentas ao excesso de uso das mídias sociais.
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G |Qual é o papel das redes sociais nesse contexto de formação de grupos que pregam a destruição do que é diferente?
MDR |As redes sociais se tornaram terra de ninguém. O adolescente, muitas vezes, tem mais habilidades para operar ali do que o adulto. E acho que temos negligenciado a importância da vida online, a diminuição das relações nas escolas e as relações sociais com grupos presenciais. É notório que as redes abrigam grupos muito agressivos e nocivos que capturam não só, mas especialmente, o adolescente. Ele é particularmente cooptado por grupos que prometem segurança e a incitação ao ódio. O ódio é um dos afetos mais primitivos. Ao mesmo tempo, ele dá uma sensação de poder. O ódio ilude os sentimentos de inadequação e insegurança do adolescente. Ele acredita na promessa de que pode ter poder sobre o outro se for suficientemente agressivo e impositivo. É atraído para isso por não lidar com complexidades, reflexões, com adiamento; é tudo imediato. Ele não tem o que chamamos de tempo de compreensão, quando você analisa o que está sentindo, olha para o que o provocou [aquele sentimento] e decide o que fazer. Esses grupos, por outro lado, partem do que a gente chama de tempo de percepção. Chega uma mensagem de convocação no tempo do ato. Ou seja, a decisão já é a realização. Tudo o que faz pertencer a uma comunidade supõe o sujeito avaliar moral, ética e intelectualmente, além de analisar se aquilo está dentro do universo da vida que ele quer construir. Mas as redes vão contra essa direção.
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G |Em relação aos imigrantes e aos refugiados, grupos sobre os quais a senhora também pesquisa, o que é mais determinante para que eles consigam, de fato, se sentirem pertencentes a uma nova comunidade?
MDR |Existe uma diferença entre assimilação e integração. Assimilação é quando a pessoa adere acriticamente ao campo do outro. Integração é quando ela realmente consegue dialogar com o país que a acolheu. Não à toa trabalho com imigrantes e adolescentes, grupos que estão nesse processo de passagem. Cada vez mais no mundo contemporâneo, o imigrante é visto como alguém que vai invadir um território e vai roubar trabalhos. Além de lidar com as diferenças de língua e cultura, e com as perdas que sofreu ao deixar o próprio país, ele tem de enfrentar, muitas vezes, a situação de ser visto como um infrator no mundo em que ele quer viver, nesse novo espaço. As formas de integração são várias. Começam desde itens básicos para ele, efetivamente, se sentir um cidadão, como documentação, trabalho e a inserção nas redes públicas de saúde e educação. Só que, muitas vezes, aqueles que o querem cooptar e explorar impedem essa adesão. Como poucos países, o Brasil tem as redes de educação e de saúde que permitem a inclusão dos imigrantes, mas muitos não frequentam porque sentem certa hostilidade. É preciso fazer um trabalho com as instituições, dizendo que eles têm direito, por lei, de participar das escolas, das creches e das políticas públicas de assistência.
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G |De que forma a saúde mental de imigrantes e refugiados é afetada por hostilidades e pela falta de integração? Como ajudá-los?
MDR |Principalmente quando o imigrante vem de situações precárias, de guerras e violências, ele precisa de um momento de assimilação para se sentir no direito de poder viver uma vida. Ao chegar, ele tem de se situar e ser incluído no sistema de saúde para poder viver melhor, mas, principalmente, para ser testemunha das dificuldades do seu próprio país. E, muitas vezes, ajudar quem ficou para poder ser merecedor de ter uma nova vida. A gente vê uma caída muito depressiva e angustiada, mesmo quando ele começa a se integrar. Isso por conta de uma suposta dívida imaginária e impagável em relação ao que ele deixou para trás. Penso que a escuta, que não é uma patologização, é uma escuta da dimensão traumática que às vezes acompanha o imigrante, também é um direito. O imigrante tem direito à saúde mental.
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G |Sabemos que uma das pautas mais importantes da direita hoje é a xenofobia. Como você vê isso no Brasil?
MDR |A extrema-direita tem localizado um mal-estar com indeterminados grupos sociais. O imigrante é um deles. Mas basta olhar a formação do Brasil para ver como a imigração enriqueceu o país, tanto em relação à culinária como no desenvolvimento de várias áreas, por exemplo. A tendência é que países mais diversos, com diferentes imigrações, tendem a ter sociedades mais ricas, cultural, socialmente e em termos de relações internacionais. Mesmo imigrantes que estão ainda em uma situação de pobreza, a médio prazo, trazem enriquecimento para o país. É uma grande fake news que o imigrante prejudica o lugar onde ele está.
Temos negligenciado a importância da vida online, a diminuição das relações nas escolas e as relações com grupos presenciais
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G |No IPUSP, a senhora coordena o Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política. Como essas três dimensões (a psicanálise, a sociedade e a política) dialogam ao pensarmos em pertencimento e não pertencimento?
MDR |Em relação ao lugar que o indivíduo ocupa na sociedade, como alvo de ódio ou de exploração, é algo que precisa ser enfrentado. Uma coisa é você levar em conta os processos individuais, o sofrimento pessoal. Outra coisa são os sofrimentos sociopolíticos, aqueles decorrentes justamente do lugar social que o sujeito ocupa. Exemplificando: imigrantes associados a certos estereótipos e a preconceitos relacionados à classe social, à origem e à raça são afetados de forma aguda. O imigrante é sempre um objeto de suspeita, ele tem os seus movimentos já classificados como agressivos. E ele fica limitado em relação às suas potencialidades de pertença e de circulação no campo social. O nosso laboratório articula a respeito das consequências da promoção do ódio para os alvos desse ódio e como pensar uma política que captura o sujeito pelos afetos. Disseminar o ódio é um jeito de capturar o sujeito para as ideologias radicalizadas, para as extremas-direitas e para o exercício da violência, sem culpa, porque a culpa é sempre do outro.
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G |Que desafios os estudantes universitários enfrentam hoje em relação ao sentimento de pertencimento, sobretudo os cotistas, nas instituições acadêmicas? Quais os caminhos para melhorar essa experiência?
MDR |A USP, principalmente na gestão atual do professor [Carlos Gilberto] Carlotti e da professora Maria Arminda [do Nascimento Arruda], fez uma opção de acolher a diversidade. Há um tempo que metade da universidade vem de escolas públicas, e dentro dessa metade também há cotas para estudantes pretos, pardos e indígenas. Esse acolhimento produziu um feito meio inédito: sentar lado a lado as mais diferentes classes sociais. A universidade hoje abriga na mesma sala de aula estudantes de classe alta, de classe média e das classes populares. Isso cria uma certa tensão, a gente tem que lidar com preconceitos, uma certa ideia de que não era meritório para meninos e meninas das classes populares poder frequentar os campus da universidade. A Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento, criada em 2022, tem analisado quais as reais dificuldades na entrada e no pertencimento desse estudante na universidade. Reorganizamos uma política de auxílios, que dá ao aluno apoio econômico, ao mesmo tempo que ele tem algumas condições para receber essa bolsa, como aprovação e frequência. Mais do que isso, acompanhamos o percurso do aluno. Hoje, os dados mostram que a evasão na universidade é um problema, não só da USP, mas de todas, que beira os 30%. Desde que implantamos a política, em 2023, temos acompanhado esses alunos, e agora a gente tem só 2% de evasão. Fazemos campanhas relacionadas ao racismo, a questões de gênero. São várias políticas simultâneas, atendimento em saúde mental, prevenção e promoção da saúde mental, a proteção aos direitos humanos. A pró-reitoria uniu forças para possibilitar a vida na universidade, e a gente tem esses dados percebidos: menor evasão e, na maior parte dos alunos, a conclusão do curso no mesmo nível de quem não entrou por cotas e no mesmo tempo.
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G |Em tempos de polarização política intensa, como trabalhar o pertencimento sem fomentar segregações ou exclusões?
MDR |É a pergunta de um milhão de dólares! É importante para todo mundo ter a noção de que uma sociedade democrática é uma sociedade que dá oportunidades para todos. A democracia, embora seja mais trabalhosa, porque ela supõe justamente o pertencimento, ou seja, que todos os indivíduos tenham uma participação no que a sociedade quer. Para a manutenção e o aprimoramento da democracia, é preciso acolher a diversidade. Esse é um ponto. O segundo ponto é que a segregação pode começar por alguns grupos, como os imigrantes, os negros, os indígenas, e ela não para nunca. Os centros de poder não resolvem as questões — raciais, dos imigrantes, das mulheres, das questões de gênero —, vão apenas concentrando poder e tornando as sociedades muito autoritárias, quando não fascistas. A diversidade é necessária. Não dá para pensar em uma sociedade racista e democrática. Se ela é racista, ela não está sendo democrática com grande parte da sua população. Ou misógina, ou seja, ela está excluindo as mulheres de postos de poder ou das possibilidades de viver a própria vida. É necessário trabalhar, sim, com a diversidade e com a distribuição de poder conforme os parâmetros democráticas.
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CAPA Tá se sentindo meio deslocado?
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