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Foto de Daline Ribeiro

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Depoimento

Como estudantes podem se sentir integrados às universidades

De diversas origens e realidades, estudantes compartilham suas vivências em relação ao acolhimento das instituições de ensino

Sarah Kelly 06 de Abril de 2025

Como estudantes podem se sentir integrados às universidades

Sarah Kelly 06 de Abril de 2025
Foto de Daline Ribeiro

De diversas origens e realidades, estudantes compartilham suas vivências em relação ao acolhimento das instituições de ensino

Na última terça-feira (1º), a Universidade de Campinas (Unicamp) aprovou, por unanimidade, a adoção de cotas para pessoas trans, travestis e não-binárias no vestibular para os cursos de graduação. Com isso, a instituição se tornou a 21a universidade pública a implementar a política afirmativa no Brasil e a pioneira, entre as estaduais de São Paulo. Movimentos estudantis celebraram a conquista: “A gente conseguiu um projeto de vida. Sonhamos e esses sonhos se tornaram realidade”, contou Paris Universe, fundadora do Núcleo de Consciência Trans da Unicamp. Ações de inclusão como essa têm crescido nas universidades desde a criação da Lei de Cotas, em 2012.

Apesar dos avanços, nem todos os estudantes se veem plenamente acolhidos — seja pelas discriminações enfrentadas ou por não se sentirem contemplados pela estrutura de seus cursos. Para apresentar um pouco dessa realidade, Gama consultou estudantes universitários de diferentes instituições do Brasil. Confira os depoimentos:

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    Arquivo pessoal

    “Pertencer é isso: é fazer o espaço ter que nos reconhecer”

    Paris Universe, 26, estudante de Pedagogia e fundadora do Núcleo de Consciência Trans da Unicamp

    “O pertencimento não veio da Unicamp – veio do Ateliê Transmoras [associação sem fins lucrativos que tem uma sede na Moradia Estudantil da Unicamp] e do Núcleo de Consciência Trans (NCT) que criamos em 2022. A universidade nunca nos quis aqui. Tivemos que ocupar, fazer greve em 2023, e criar nossas próprias redes. Quando implantamos o banheiro multigênero na Faculdade de Educação, ouviram: ‘Cadê as pessoas trans na pedagogia?’. Mostramos que estávamos ali, no noturno, trabalhando e estudando. Pertencer é isso: é fazer o espaço ter que nos reconhecer. As cotas trans [aprovadas um dia antes da fala de Paris] são só o início. A Unicamp transicionou e continuará transicionando. Agora vamos fazer florescer travestis em cada sala de aula, transformar currículos e provar que universidade excelente é universidade diversa. Porque conhecimento se faz com muitos corpos e saberes e a gente relança a excelência desta universidade. A minha pesquisa, inclusive, analisa ações afirmativas para pessoas trans na Unicamp. Porque não basta entrar, tem que mudar os currículos. Levo a pedagogia travesti para a academia: uma que hackea o sistema, como a Sofia Favero ensina.”

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    Daline Ribeiro

    “Precisamos ocupar os espaços de poder, de influência, de tomadas de decisões porque ninguém vai falar por nós”

    Tel Guajajara, 25, estudante de Direito na Universidade Federal do Pará (UFPA) e coordenador nacional do Circuito Universitário de Cultura e Arte da União Nacional dos Estudantes

    “Minha vivência na universidade é diferente de outros indígenas que entraram antes. Quando entrei em 2019, a UFPA completava dez anos de presença indígena. Hoje, nossa principal questão é a necessidade da política de permanência estar vinculada ao pertencimento. Muitas vezes nos chamam para aparecer em fotos, mas não há acolhimento real. E aí fica só na propaganda. Uma grande parte das pessoas que não se evadiram da universidade foram pessoas que tiveram acesso a associações como coletivos de mães, de LGBTs, de mulheres. Então não é só garantir vaga ou bolsa, não adianta só dar protagonismo, tem que dar voz também: é se preocupar com as condições culturais, com a segurança e com o apoio psicológico. O meu acolhimento veio da família, dos meus primos que já estavam aqui [Tel faz parte do povo guajajara-tenetehar, da aldeia Morro Branco, no Maranhão]. Nos domingos a gente fazia comida tradicional, cantava, mesmo longe da aldeia. Mas muitos indígenas se sentem sós. Olha os Guarani Kaiowá, taxa altíssima de suicídio nas universidades em São Paulo. Isso é falta de política de pertencimento. Porque é um desafio disputar a sociedade dentro do ambiente acadêmico, é difícil ir pintado pra aula e o professor achar que é fantasia, é difícil ninguém sentar do teu lado no ônibus, ser cobrado três vezes mais. Por isso, precisamos ocupar os espaços de poder, de influência, de tomadas de decisões, porque ninguém vai falar por nós. É isso que a gente fala: nada sobre nós sem nós.”

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    Arquivo pessoal

    “A gente se uniu porque percebeu que, sozinho, ninguém é escutado”

    Juliana Altino, 27, estudante de Pedagogia na Universidade de São Paulo (USP) e fundadora do Coletivo PCD Laureane Costa

    “Quando entrei na USP, em 2019, eu tinha acabado de adquirir uma deficiência física por conta da mielite transversa, uma doença rara, e ninguém sabia qual seria meu prognóstico. Eu mesma ainda não sabia que tinha direito a uma carteira adaptada ou a usar o elevador trancado. Chegava atrasada por causa disso, e ninguém entendia minha deficiência — eu não usava bengala nem cadeira de rodas, então duvidavam de mim. Eu me sentia à parte da turma porque precisava entrar por lugares diferentes, sair sozinha e parecia que incomodava ao pedir ajuda. Em 2021, tranquei a matrícula. As situações que passei na universidade contribuíram para um adoecimento mental — professores que se recusavam a adaptar aulas, falta de acessibilidade e uma professora que me disse na cara: ‘Se você tem tantos problemas de saúde, seu lugar não é aqui’. Fiquei dois anos fora, mas em 2023 voltei com outra cabeça, exigindo meus direitos. Conheci outras PCDs no bandejão e vi que todas passavam por coisas parecidas. A gente se uniu porque percebeu que, sozinho, ninguém é escutado. Fundamos o coletivo depois que o carro adaptado quebrou e a universidade não resolveu. Juntamos gente de todas as unidades — cadeirantes, autistas, mães de crianças atípicas. Fizemos eventos, pressionamos a reitoria e mostramos que existimos. A USP criou comissões de inclusão depois da nossa pressão, mas ainda falta muito. Existe uma lei federal que exige cotas para PCDs em universidades federais. A USP, como universidade estadual, não é obrigada pela lei. Mas isso tem consequências: sem cotas, não há verba garantida para acessibilidade, nem mesmo um registro oficial de quantos alunos com deficiência estudam aqui. É uma forma de nos manter invisíveis.

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    Arquivo pessoal

    “Antes, se acontecia algo, a gente só podia denunciar para homens, agora temos nosso próprio canal”

    Marina Araújo, 22, estudante do segundo ano de Engenharia no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e presidente da Astra, associação feminina de estudantes da instituição

    “Foi difícil me sentir pertencente desde o cursinho, onde já havia poucas meninas. Aqui, a diferença é maior: no meu alojamento, apenas 7% são mulheres e na minha turma são 8 meninas em 150 alunos. Durante o primeiro ano, aconteceram algumas situações machistas e percebi que não existia um espaço para falar sobre isso. Por isso, criamos a Astra. Antes, se acontecia algo, a gente só podia denunciar para homens — agora temos nosso próprio canal. Também trazemos engenheiras para palestrar, porque as empresas que recrutam aqui quase não têm mulheres. E apoiamos as meninas do cursinho popular CASD, onde a situação é parecida. Ano passado também, depois de casos graves de machismo, o ITA criou o GTEG (Grupo de Trabalho de Equidade de Gênero) com professoras, técnicas e pós-graduandas. Eu acho que encontrar as pessoas certas é muito importante para se sentir pertencente e, quando cheguei aqui, não foi fácil fazer isso — minha confiança foi quebrada várias vezes, o que afetou meu senso de comunidade. Além de vivenciar as questões de gênero, sou uma pessoa LGBTQIA+ e eu não me sentia tão confortável e segura para ser eu mesma. Hoje me sinto mais pertencente, mas ainda preciso ter cuidado em alguns espaços.”

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    “Não tive receio algum e hoje meu sentimento de pertencimento está dentro das expectativas”

    Magno Rocha, 62, estudante do primeiro período de Saúde Coletiva na Universidade de Brasília

    “Entrei pelo vestibular para pessoas com 60+ da UnB, criado na gestão da reitora Márcia Abraão. Sempre tive interesse em estudar na UnB. Já tenho graduação em história pelo SEUB, e quando surgiu essa oportunidade, ingressei. Não tive receio algum e hoje meu sentimento de pertencimento está dentro das expectativas. Quanto aos desafios, não sinto dificuldades, embora alguns dos 11 colegas do 60+ tenham problemas com tecnologia. Na turma temos cinco estudantes indígenas que enfrentam mais desafios, inclusive com a linguagem, mas a interação flui bem. As ações de acolhimento são fundamentais, tivemos reunião com a coordenadora e contamos com cinco monitores. A instituição e os professores lidam muito bem conosco, elogiando nosso grupo por ser interessado e muitos já com uma bagagem acadêmica.”

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    “Ainda não tenho essa sensação de pertencimento, mas amanhã eu quero que outras pessoas como eu tenham isso. Veja que está cada vez mais diverso”

    Rejane Macedo, 40, estudante de Medicina na Unidompedro Afya, em Salvador, e participante do Coletivo NegreX para estudantes de medicina e médicos negros

    “Entrei na universidade muito feliz, depois de cinco anos estudando. De início, não sofri racismo nem nada, mas já me senti um peixe fora d’água. Era uma atmosfera de muita competitividade e eu não sou competitiva. Também não tinha professores médicos negros, apenas em disciplinas de apoio. A minha ficha começou a cair quando, desde as primeiras semanas, as pessoas perguntavam se eu trabalhava lá e alguns colegas disseram que devia ser pela forma como eu me vestia. O meu letramento racial começou desse estranhamento de não pertencimento e isolamento. Acontece um racismo muito velado, é até difícil de falar porque fica parecendo que foi tudo uma impressão minha. Por isso, foi muito importante conhecer o Negrex, porque pensei ‘preciso perceber que eu não sou a única aqui, porque senão eu vou pirar’. Hoje me sinto mais tranquila para dar meus posicionamentos. Antes, ficava preocupada com o que pensavam. Ainda não tenho essa sensação de pertencimento, mas amanhã eu quero que outras pessoas como eu tenham isso. Veja que está cada vez mais diverso. E eu comecei a usar a faculdade como fonte de realizar meus sonhos, meus desejos, enfim.

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    Arquivo pessoal

    “Não se trata apenas de oferecer vagas, mas também de garantir suporte socioeconômico, considerando que muitos migrantes estão em vulnerabilidade”

    Daniel Figuera, 37, estudante venezuelano de Ciência da Computação na Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Gestão de Tecnologia da Informação pela Universidad Central de Venezuela (UCV)

    “Ao considerar migrar, já conhecia as opções de estudo em Curitiba. O que me fez escolher o Brasil foram as boas políticas migratórias. Cheguei com a intenção de revalidar minha licenciatura em Administração, mas a UFPR só oferece bacharelado. Então, me falaram sobre o Processo Seletivo Migrantes Refugiados e eu decidi fazer. Eu acredito que a universidade é uma forma da gente participar e contribuir para o progresso da sociedade — tanto na formação de pessoas quanto na produção e disseminação do conhecimento, seja por meio do ensino, da pesquisa ou da extensão. Na Venezuela, esse modelo também existia, mas, devido à crise econômica, política e social, essas atividades foram enfraquecendo. Sou muito grato por essa oportunidade e vejo como as políticas migratórias da UFPR ajudam minorias, como migrantes, a se integrarem à sociedade. Não se trata apenas de oferecer vagas, mas também de garantir suporte socioeconômico, considerando que muitos migrantes estão em vulnerabilidade. O choque cultural e o impacto psicológico tornam tudo mais complexo. Além disso, a dificuldade em conseguir um bom emprego – muitas vezes mal remunerado ou limitado pela falta de documentação – agrava a situação. Alguns acabam sendo explorados, enquanto outros lidam com a incerteza de viver longe de casa, preocupados em pagar aluguel, contas e sobreviver. Vejo que a UFPR oferece suporte não só para estudantes locais, mas também para migrantes, garantindo as mesmas oportunidades e condições de permanência. Isso é algo que considero muito positivo.”

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