Hermano Tavares: "Não é exagero falar em epidemia dos transtornos do jogo" — Gama Revista
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Isabela Durão

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Conversas

Hermano Tavares: "Não é exagero falar em epidemia dos transtornos do jogo"

Fundador do ambulatório do jogo do Instituto de Psiquiatria da USP diz que, com bets e cassino online, vivemos o maior boom de casos de compulsão desde os anos 1990

Isabelle Moreira Lima 18 de Agosto de 2024

Hermano Tavares: “Não é exagero falar em epidemia dos transtornos do jogo”

Isabelle Moreira Lima 18 de Agosto de 2024
Isabela Durão

Fundador do ambulatório do jogo do Instituto de Psiquiatria da USP diz que, com bets e cassino online, vivemos o maior boom de casos de compulsão desde os anos 1990

No rádio, na televisão, na internet, no campo de futebol, na camisa de jogadores: as casas de apostas esportivas, mais conhecidas como bets, são onipresentes. Assim como os caça-níqueis online, que a toda hora aparecem em pop-ups na tela ou mesmo nas atualizações de redes sociais, como “amigos” que te marcam numa imagem.

Esse verdadeiro ataque persecutório que o brasileiro sofre de jogos eletrônicos tem levado muita gente a um buraco fundo tanto financeiro, quanto psiquiátrico. Pesquisa do Instituto Locomotiva mostra que um terço dos apostadores tem dívidas. Quase metade deles é formada por jovens na faixa dos 20 anos e 34% pertencem às classes C, D, e E.

No campo da saúde, não é exagero falar que, no que diz respeito à saúde, já virou uma epidemia, segundo afirma o fundador e coordenador do Programa Ambulatorial do Jogo (PRO-AMJO) do Hospital das Clínicas, Hermano Tavares. “É uma epidemia e não é exagero dizer que é uma pandemia”, afirma. “Por analogia, a única diferença [de uma pandemia] é que não é um patógeno, não é um vírus ou uma bactéria. É um vírus digital.”

Esse caráter eletrônico traz um complicador, segundo Tavares: “A potencialização das apostas digitais traz a velocidade digital para o contexto do jogo”. Ou seja, o mercado é dinâmico e sabe ler o recado dado pelos jogadores, adaptando-se rapidamente para ter mais adeptos.

 Divulgação

Isso tudo é visto no cotidiano de trabalho do médico psiquiatra, que assistiu a capacidade de atendimento dos grupos e ambulatórios do Instituto de Psiquiatria da USP chegarem ao limite. Ele fala que ainda não há a especialidade de tratamento dos transtornos do jogo nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), mas que com vontade política e administrativa do Ministério da Saúde é possível capacitar uma rede de profissionais para atender os brasileiros com o transtorno, contingente que tem se multiplicado com alta velocidade.

“O vulnerável somos todos nós, que estamos expostos à possibilidade de jogar, que somos bombardeados por celebridades nos convidando a jogar. (…) Esse país baniu a publicidade de tabaco e proibiu o uso de tabaco em prédios públicos. Mas as apostas invadiram tudo, é bet, bet, bet”, afirma Tavares na entrevista que você lê abaixo.

Há 2 milhões de pessoas precisando de algum tipo de orientação imediata em relação aos seus problemas com apostas

  • G |O que é exatamente o transtorno do jogo? O quão comum é hoje no país? Quem está mais suscetível?

    Hermano Tavares |

    Transtorno do jogo, jogo patológico, jogo compulsivo são nomes diferentes para designar a mesma coisa, que é a dependência de jogos de azar ou da excitação, das fortes emoções causadas por apostas. Já existe o Jogadores Anônimos desde 1957 e o reconhecimento oficial foi em 1979 pela Organização Mundial de Saúde. No Brasil, essa realidade ficou mais óbvia com o boom dos bingos, nos anos 1990. Até então, isso era um assunto entre nós, profissionais, quase como uma curiosidade. A expressão desse problema aumenta quando você tem mais acesso a jogos de azar. Tivemos um boom nos anos 1990, depois um refluxo, e agora uma retomada com os jogos online. Uma taxa atual estima que algo entre 0,5% a 1% da população tem um problema com o jogo. Dito assim, esses números não parecem muita coisa, mas é impressionante se você pensar 1% de 200 milhões de pessoas: há 2 milhões de pessoas precisando de algum tipo de orientação imediata em relação aos seus problemas com apostas.

  • G |Estamos vivendo um momento mais propício para a dependência de jogos hoje, considerando novidades como o jogo do tigrinho e as novas bets ligadas aos esportes?

    HT |

    O aumento do acesso ao jogo parece aumentar a prevalência do transtorno do jogo, mas esse não é o principal problema. Porque você tem 1% de pessoas que vão ter dificuldades ao longo da vida e 0,5% que vai ter um problema agora. Há um contingente de pessoas que tem um problema dormente que é ativado quando há ampla divulgação e acesso às possibilidades de apostas. Estamos vivendo o momento da tempestade perfeita. No fim de 2018, na penúltima semana do governo Temer, o jogo online foi legalizado. Assim, sem discussão, sem nada. O que começou de maneira tímida, muito rapidamente virou um tsunami. Quando você aumenta a disponibilidade do jogo, a demanda por tratamento sobe de três a quatro vezes. A vulnerabilidade é dada, mas a ativação dessa vulnerabilidade depende do contexto e como a gente regula esse contexto. No Brasil, primeiro legalizamos, depois pensamos em como regulamentar. Até 2018, a proporção de indivíduos apostadores em esportes era um traço, uma coisa episódica em mais de 3 mil pacientes atendidos. Hoje é de dois terços. O mercado é muito dinâmico. A potencialização das apostas digitais traz a velocidade digital para o contexto do jogo.

  • G |Como o senhor sente no ambulatório esse tsunami?

    HT |

    Quando as coisas estão “calmas”, atendemos de 80 a 120 casos novos por ano. Quando as coisas estão agitadas, como estão agora, são 240 casos novos por ano, e tem outros 240 aguardando para serem tratados. Oficialmente, nós não temos uma lista de espera, somos um hospital público. Mas, a rigor, eu sei que tem. É dramático. A vulnerabilidade é dada, mas ela pode ser ativada pelo contexto e quase quadruplicar a demanda de tratamento.

O mais vulnerável é o mais jovem, o menos educado, o que tem mais baixa renda, sem companheira ou sem companheiro

  • G |Quem são as maiores vítimas dessa nova realidade de jogos online?

    HT |

    O vulnerável somos todos nós que estamos expostos à possibilidade de jogar, que somos bombardeados por celebridades nos convidando a jogar. Eu não quero ser moralista, mas esse país fez uma coisa responsável ao banir a propaganda de destilados e e tabaco da TV e dos grandes veículos de mídia e comunicação e proibiu o uso de tabaco em prédios públicos. Mas as apostas invadiram tudo, é bet, bet, bet. É uma loucura. Os mais vulneráveis são pessoas jovens e quem tem histórico pessoal ou familiar de dependência. Existe a suscetibilidade genética também, mas além dela temos a vulnerabilidade social. É o mais jovem, o menos educado, o que tem mais baixa renda, o divorciado ou divorciada, sem companheira ou sem companheiro. Por exemplo, sem carteira nacional de habilitação, que, na verdade, é uma medida indireta de inserção social e uma especialização mínima para o mercado de trabalho.

  • G |Tem um recorte de gênero?

    HT |

    O tipo de jogo que você oferece também vai direcionar o mercado. O bingo fez a introdução do segmento feminino. Agora está voltando a ficar masculino por causa dos sport bettings, e com um paciente bem mais jovem. Mas o mercado é a antenado e, quando perceber que o setor feminino não está suficientemente contemplado, trará algum produto novo.

     

  • G |E os caça-níqueis eletrônicos, como o jogo do tigrinho, o que vocês percebem sobre ele?

    HT |

    A aposta no futebol aqui dentro do Brasil está virando porta de entrada. A pessoa joga, se anima, tem um sucesso inicial, depois tem uma perda. Ao tentar recuperar a perda, faz dívidas e, no desespero, clica no link do cassino online, porque eles vêm sempre juntos.

  • G |O Brasil tem estrutura para conseguir atender essa demanda de tratamento psiquiátrico que, provavelmente, será necessária? É exagero falar em epidemia?

    HT |

    Não. É uma epidemia e não é exagero dizer que é uma pandemia, porque não precisamos nos sentir isolados. No Canadá, a paixão que nós temos por futebol, é pelo hockey. E o MVP (most valuable player, ou jogador mais valioso em inglês) deles faz campanha de jogo responsável. Lá há uma lei que proíbe os jogadores de fazerem promoção de apostas, então eles fazem de jogo responsável. Mas ele aparece na tela promovendo o jogo responsável e embaixo tem um link. O cara é um ídolo nacional, promovendo apostas. É um problema mundial, assim como o bingo também era mundial. Na Noruega, tinha fotos de hospitais públicos que, para levantar um dinheirinho, botavam o caça-níquel na sala de espera. É uma pandemia, pelo menos do mundo ocidental, com empresas de capital internacional. Elas estão aqui e em todos os lugares. O Brasil não está pronto. Mas pode se preparar.

É criminoso um influencer ir a público e dizer que o jogo é um complemento de renda

  • G |Como podemos nos preparar?

    HT |

    Nós temos o maior sistema único de saúde do planeta. Dentro do sistema único de saúde, a gente tem a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que é responsável pela retaguarda da saúde mental, e o Centro de Atenção Psicossocial (Caps), que tem modalidades: infantil, álcool e drogas. Minha campanha tem sido para que seja Caps Álcool, Drogas e Jogo, que já é a terceira maior dependência do Brasil e no mundo. O jogo só perde para álcool e tabaco, e ganha de cocaína, craque, maconha, heroína. Não temos nenhum Caps preparado para atender os transtornos do jogo, mas nós estamos absolutamente disponíveis. Existe hoje uma rede de teleatendimentos capilar do Ministério da Saúde. Então, a hora que o ministério quiser, ele chama e nós fazemos a capacitação das equipes. É possível, só precisamos juntar força, iniciativa e, vamos dizer assim, inspiração política e administrativa. O Brasil tem bons exemplos como o tratamento medicamentoso da AIDS. O mundo inteiro acabou copiando o nosso modelo.

  • G |O fato dos jogos serem online muda alguma coisa?

    HT |

    O online é um ambiente em que, para o bem ou para o mal, você rastreia tudo. Não existe segredo no online. Então, se você entra e faz um cadastro com o seu CPF, ele pode ser comparado à sua declaração de renda. Você está gastando, em um mês, quase o equivalente ao que você declarou como renda no último ano: ou você está lavando dinheiro e praticando fraude, ou você é uma jogadora compulsiva. Custa investigar. Com inteligência artificial, inclusive, você vai detectar padrões de regularidade, aposta, frequência e tamanho. O trânsito do dinheiro, que você, ali, já faz uma boa discriminação. A oportunidade de usar o online também para aprender como lidar com o físico é única. A gente não deveria jogar isso fora.

  • G |É possível falar em prevenção?

    HT |

    Sim. É preciso educar as pessoas em sala de aula. Já existem algumas iniciativas para falar sobre álcool e drogas. Também é preciso explicar para as pessoas que a aposta, embora não seja uma substância, modifica o seu estado subjetivo. E essa modificação, quanto mais potente, mais pode causar dependência. Jogo de azar, não é o jogo da má sorte. É o jogo do aleatório. O que caracteriza o aleatório? É tudo o que é imprevisível, incontrolável e independente, sendo esse último muito importante. É independente dos eventos anteriores. Não importa quantas vezes o número 18 já foi sorteado na mega-sena. Isso não aumenta nem diminui a chance de ser sorteado no próximo. Tem que educar sobre o jogo, alertar. Jogar é uma recreação estranha, brincadeira com coisa séria, com o seu dinheiro, aquilo que você suou para conquistar, e você vai lá e arrisca. Mas, se você quer fazer isso para o seu entretenimento, faça-o. Depois dos 18 anos e desde que você tenha a perspectiva de que isso é entretenimento. É criminoso um influencer ir a público e dizer que o jogo é um complemento de renda. Na demonstração desses jogos, como o do tigrinho, eles mostram uma pessoa ganhando. O influencer abre o teaser e fala “Olha aqui, ganhei!”. Isso é criminoso. A prevenção em saúde mental é uma vacina psicológica contra o falso apelo. Pode ser feito e funciona.

  • G |E o uso do termo pandemia, dá para cravar isso?

    HT |

    A palavra pandemia vai ficar sempre restrita a uma condição da infectologia, das moléstias infecciosas, da transmissão de um patógeno. Mas a gente pode dizer que, por analogia, isso é o equivalente a uma pandemia porque você tem uma parcela expressiva da população afetada, você tem muitas jurisdições envolvidas, inclusive com distanciamento geográfico entre elas. E você tem, inclusive, o fenômeno da transmissão de uma coisa para outra. No caso da pandemia, o que fez a transmissão do vírus foram os meios de transporte aéreos, que acabam espalhando o vírus. Aqui é a internet que se encarrega de transmitir o jogo do tigrinho. Quem promove esse jogo está em uma condição criminal. Hoje é crime promover jogos online de empresas que não estão sediadas no Brasil. E quem aposta no tigrinho está cometendo uma contravenção. Alguém monta um jogo novo desses no leste europeu, num paraíso fiscal, nas Bahamas, e há pessoas afetadas no Brasil. Então não podemos oficialmente denominar pandemia mas, por analogia, a única diferença é que não é um patógeno, não é um vírus ou uma bactéria. É um vírus digital.