Juliana Alves fala sobre maternidade e racismo — Gama Revista
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Marcio Farias/Divulgação

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Conversas

Juliana Alves: "Uma mãe negra rema contra a maré o tempo todo"

Atriz fala sobre o desafio de manter a filha, uma menina de pele clara e cabelo liso, conectada à sua ancestralidade mesmo diante de uma sociedade que tenta embranquecê-la

Dolores Orosco 14 de Maio de 2023
Marcio Farias/Divulgação

Juliana Alves: “Uma mãe negra rema contra a maré o tempo todo”

Atriz fala sobre o desafio de manter a filha, uma menina de pele clara e cabelo liso, conectada à sua ancestralidade mesmo diante de uma sociedade que tenta embranquecê-la

Dolores Orosco 14 de Maio de 2023

Há 20 anos, Juliana Alves estreava na TV Globo — não como a atriz que é hoje, mas como participante do Big Brother Brasil. Num tempo mais ingênuo, em que os concorrentes do reality show eram indivíduos anônimos, sem faces harmonizadas e milhares de seguidores nas redes sociais, Juliana causou estranhamento por ser uma ativista negra de 21 anos, filha de uma psicóloga e um sociólogo do subúrbio carioca. Como acontece ainda hoje, pessoas com esse perfil raramente caem no gosto da audiência e a eliminação pelo voto popular veio na quinta semana de programa. Mesmo assim, a jovem “sister” se surpreenderia com os ventos de mudança que sopraram desde aquela terceira temporada do BBB até aqui.

Hoje, atitudes racistas dentro da atração reverberam negativamente nas redes e o fandom do candidato que lute para passar o pano. As três principais novelas da emissora são protagonizadas por atores negros — algo inédito em 58 anos de Globo. Em uma delas, “Amor perfeito”, Juliana tem papel de destaque: interpreta Wanda, a dona de uma boutique que rompe com o status quo e surpreende com seus looks modernos para a década de 1930. É a 13ª novela na qual a ex-bbb de 41 anos atua.

É nesse cenário que Juliana se esforça para oferecer uma criação antirracista para a filha Yolanda, de 5 anos, do casamento com o cineasta Ernani Nunes, que chegou ao fim em dezembro passado. Fruto de uma união inter-racial, Yolanda é uma menina de pele clara e cabelo liso – uma criança “parda”, segundo a definição que o IBGE usa desde 1940 e que o movimento negro luta para que caia em desuso. “Quero que ela tenha orgulho de suas raízes, de sua família por parte de avô paterno, que são de negros retintos. Quero que saiba se colocar nas situações em que tentem embranquecê-la e tirar sua ancestralidade”, diz.

Nesta conversa com Gama, a atriz fala desses e outros desafios diários da maternidade e do processo de “cura” das feridas que carrega por ter crescido em uma sociedade racista.

Minha filha já entendeu que tem uma mãe preta. Pode parecer uma coisa tão simples, mas considero uma etapa vencida

  • G |Qual seu maior desafio como mãe negra em uma sociedade racista?

    Juliana Alves |

    Minha forma de ver o mundo é atravessada pelo racismo que eu já sofri e combato. Por mais que eu eduque minha filha para que ela seja uma agente de transformação, a sociedade é racista, a escola em que ela estuda é racista. Claro que eu escolhi um colégio que tem políticas de combate ao preconceito, mas na prática isso nunca acontece plenamente. Porque para combater o racismo, não basta que as crianças fiquem só na teoria do discurso antirracista: é preciso que passem por experiências que exponham os conflitos. E isso não vai acontecer em um colégio predominantemente branco. Como mãe negra, tenho que estar alerta sempre e fazendo provocações para que minha filha consiga perceber e questionar a ordem que está dada para ela. Por exemplo: por mais que hoje haja muito mais diversidade entre as personagens do universo infantil, predomina uma tendência que torna mais interessante as heroínas que têm o cabelo liso e estão dentro do padrão branco. Então me esforço para mostrar à minha filha o quanto eu admiro as personagens negras das histórias, dos filmes…

  • G |Sua filha é uma menina de pele clara e cabelo liso. É mais complicado falar sobre identidade racial com ela?

    JA |

    Quero que a Yolanda tenha orgulho de suas raízes, de sua família por parte de avô paterno, que são de negros retintos. Quero que saiba se colocar nas situações em que tentem embranquece-la e tirar dela sua ancestralidade, só porque ela tem cabelo liso. Isso acontece o tempo todo. Minha filha ainda não se entende como uma menina preta porque é muito novinha e se guia muito pela questão da cor. Sua identidade racial não fica tão evidente porque a pele da Yolanda é mais clara. Por conta do meu cabelo, da minha cultura e da minha família por parte de pai minha filha já entendeu que tem uma mãe preta. Pode parecer uma coisa tão simples, mas considero uma etapa vencida. Todas as amiguinhas dela têm mães brancas. Lembro de uma vez, que meu cabelo estava sem as tranças e ela me perguntou: “Mãe, por que meu cabelo não vai para cima também? Queria tanto que meu cabelo fosse como o seu!”. A Yolanda devia ter uns três anos. Um tempo depois, quando ela já estava frequentando a escola, ela veio comentar de uma amiga minha que têm o cabelo crespo, como sendo um cabelo de menos valor. Para mim ficou evidente que ela ouviu algum comentário que desabonou aquele mesmo cabelo que antes ela queria ter igual. Então foi todo um trabalho que tive que fazer para mostrar que o crespo também é belo, que é o cabelo da mamãe. Isso é prova de que a educação antirracista é uma luta constante. Uma mãe negra rema contra a maré o tempo todo.

  • G |No livro “Cartas para Minha Avó”, a escritora Djamila Ribeiro recorda a educação enérgica e muitas vezes brutalizada que recebeu da mãe para que se tornasse uma mulher forte, de enfrentamento e que não demonstrasse vulnerabilidade diante o racismo. Isso aconteceu com você?

    JA |

    Fui criada dessa maneira também. Minha mãe é uma mulher negra de pele clara, que conheceu a pobreza muito de perto. Aos cinco anos, ela foi dada para outra família, que tinha um pouco mais de condições financeiras, por minha avó biológica. Então ela conheceu muito de perto a situação limite de miséria. Minha mãe batalhou muito, tornou-se psicóloga, foi a primeira da família a chegar ao ensino superior. Mas sempre foi tão preocupada em nos dar boas condições de vida e trabalhava tanto para isso, que não tinha tempo de nos mimar. Sei que ela é uma mulher emotiva, mas desenvolveu uma força e uma frieza para lidar com as situações mais duras. É algo que reconheço como parte da ancestralidade dela, de alguém que foi ensinada a não esmorecer. E eu sempre era chamada por ela para esse lugar: de ser uma mulher forte para enfrentar as situações que a vida iria me colocar. Uma das formas de fortalecimento que recebi da minha mãe foi pelos “nãos”, pela imposição de limites rigorosos. Às vezes a Yolanda chora e faz manha porque quer algo e eu, com todo afeto, procuro explicar porque não posso atendê-la naquele pedido. Esses limites, que para mim foram muito bem desenhados, me fortaleceram para os “nãos” da vida. Uma criação que não apresenta os “nãos”, que não ensina a lidar com a tristeza e a frustração é o que vai tornar uma pessoa frágil e até não confiável. Uma pessoa que não sabe lidar com os limites não é confiável.

  • G |O que você não quer reproduzir da criação que recebeu de sua mãe na educação da sua filha?

    JA |

    Gostaria de não transferir para a Yolanda meus medos e frustrações. Esse é um processo de cura que tenho vivido. É um grande desafio calibrar a imposição de limites com permitir que minha filha se sinta livre para experimentar situações. Quero dizer sempre para a Yolanda “vai em frente, você é capaz e consegue”, para que ela tenha uma autoestima que a encoraje diante dos desafios. Minha mãe teve uma história de muito sofrimento, então ela tinha certos medos. Quando eu fazia escola de dança, ela costumava dizer: “Você está ali, mas você não pertence àquele lugar. Aquelas pessoas são brancas, tem outra condição financeira”. Entendo que, falando isso, ela queria me poupar de alguns sofrimentos, mas também causava uma sensação de “não sou boa o suficiente para estar aqui, não pertenço a esse lugar”. Eu preferia ter ouvido: “Olha, nós conseguimos chegar aqui, então você vai fazer o seu melhor e vai conseguir”. Esse é o grande desafio da minha maternidade: romper com esse padrão e fortalecer a autoestima da Yolanda para que ela corra atrás das coisas que deseja, sem medo.

  • G |Na idade da sua filha você viveu violência racial?

    JA |

    No meu imaginário de criança mundo era dominado por pessoas brancas e em qualquer lugar que eu estivesse, me sentia inadequada e era sempre a minoria, a exceção. Isso já era um marco inicial do racismo.

  • G |Pela primeira vez em 58 anos, as três faixas novelas da TV Globo são protagonizadas por atores negros. Quando você começou na emissora, há 20 anos, a realidade era outra.

    JA |

    Quando comecei a trabalhar na TV, esse sentimento de ser a minoria, a exceção se perpetuou. Se encontrasse uma menina negra nos testes de elenco, rolava aquela coisa de querer dar “oi”, de me aproximar, mas nem sempre era fácil. Certa vez ficou no ar um clima de competição entre eu e outra jovem atriz negra, que sempre encontrava nos testes. Era muito perverso, porque pessoas brancas a nossa volta deixavam claro que o espaço para nós era escasso mesmo e criavam intrigas fazendo comparações, sabe? “Você é talentosa, mas ela é mais bonita para esse papel”. Nunca nos comparavam com uma atriz branca, como se fosse um outro nível. Isso me frustrava muito. Anos mais tarde, eu e essa atriz conversamos sobre isso e nos acertamos. Entendemos o que faziam com a gente.

  • G |Como você enfrentava esse tipo de racismo velado?

    JA |

    Ao longo da minha vida eu escolhi um caminho que foi o de permanecer, o de estar para transformar. Não consigo transformar um lugar onde eu não estou. Nunca pensei em desistir, mesmo com a sensação constante de ser a exceção da sala. Hoje, tijolo por tijolo, tenho ajudado a construir uma realidade diferente. Ao ocupar meu lugar na novela, nas revistas, nos espaços de poder e expondo minhas vivências e opiniões de mulher negra, contribuo para que haja mais representatividade.

  • G |O que mais te fascina na maternidade?

    JA |

    A sensação de que tudo é imprevisível, por mais que você se planeje. A Yolanda me fez evoluir muito nesse sentido, me deixou mais organizada. Porque eu preciso cuidar melhor de mim, dos meus espaços e horários para poder cuidar dela. Minha filha tem muito a me mostrar e, aos cinco anos, já me diz coisas que me fazem parar pra pensar sob o ponto de vista dela. Isso é muito bonito, porque traz uma energia de descoberta diária. Ela é uma menina determinada e afetuosa.

  • G |Você terminou o casamento com o pai da sua filha há pouco tempo. Como está sendo esse momento?

    JA |

    Optamos por não envolvê-la. O pai dela mudou de casa, mas está aqui o tempo todo, almoça com a gente. Claro que agora não somos os melhores amigos, confidentes, mas somos amigos dentro do possível. Por enquanto, ela está adorando visitar o pai na nova casa dele, naquele novo espaço que também é dela. Resolvemos não trazer essa questão para ela, não ter uma conversa de sentar e comunicar como se fosse um Bicho Papão, para ir sendo desvendado porque ela ainda não consegue entender do que se trata. Escolhemos que ela vivencie essa situação da maneira mais gentil possível, para que entenda que ter pais separados não tira dela a condição de família. Estamos deixando que ela absorva nossa separação como se fosse um processo natural: mamãe escolheu ficar nessa casa, papai naquela. Acredito que assim ela não terá uma sensação de perda como a que eu tive na separação dos meus pais, que foi uma ruptura muito dolorosa. Minha mãe sofreu muito e eu presenciei o sofrimento dela muito de perto. Eu tinha só uns três anos, mas ainda me lembro. A Yolanda não precisa passar pelo sofrimento da minha separação. É aquela coisa que a gente falou sobre romper os ciclos: por eu ter essa lembrança tão forte, não quero que minha filha tenha também.

  • G |Você quer ser mãe novamente?

    JA |

    Tenho esse desejo sim, mas não será uma grande frustração se não rolar. Está tudo bem, eu tenho a Yolanda.