Atleta tem prazo de validade? — Gama Revista
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Reportagem

Atleta tem prazo de validade?

Com exemplos de atletas que desafiam os limites relacionados à idade nas Olimpíadas, o esporte já deixou de ser coisa de jovem?

Leonardo Neiva 28 de Julho de 2024

Atleta tem prazo de validade?

Leonardo Neiva 28 de Julho de 2024
Wander Roberto/COB

Com exemplos de atletas que desafiam os limites relacionados à idade nas Olimpíadas, o esporte já deixou de ser coisa de jovem?

Quando a equipe feminina de vôlei subiu à segunda posição do pódio nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021, a medalha de prata tinha um gostinho diferente ao menos para uma das atletas em quadra. Mesmo com a derrota amarga contra os Estados Unidos na final, o prêmio significou a realização de um grande sonho para Carol Gattaz após mais de uma década de seguidas frustrações na competição.

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Ela tinha sido cortada do time às vésperas das Olimpíadas de Pequim, em 2008. Nas duas edições seguintes, Gattaz também ficou de fora da seleção nacional e chegou a atuar como comentarista na TV. Finalmente, em Tóquio, aos 40 anos, foi escolhida como a melhor central do torneio e se tornou a brasileira mais velha a levar uma medalha nos Jogos Olímpicos.

“Em vários momentos dessa trajetória eu pensei em desistir, principalmente depois da segunda vez que fui cortada da equipe”, conta a atleta em entrevista a Gama. “Meu sonho era disputar uma Olimpíada. Sair medalhista, realmente, foi mais do que eu esperava. Tenho uma trajetória de superação, com muitos altos e baixos, uma carreira muito vitoriosa de vários títulos em todos os times que eu passei. Mas faltava alguma coisa. A cereja do bolo foram as Olimpíadas de Tóquio.”

A carreira de atleta costuma ser curta, com um declínio acentuado da capacidade de competir em alto nível antes mesmo de duas décadas de atuação profissional. Até por isso, Gattaz precisou lidar com uma série de questionamentos internos e externos sobre ter gás suficiente para enfrentar os desafios de um torneio extremamente exigente como as Olimpíadas.

“Eu não imaginava chegar em tão alto nível, principalmente nessa idade. Poucas pessoas acreditavam”, revela a atleta. “Todo ano para mim era um obstáculo… será que você vai conseguir jogar? Será que vai terminar a temporada? Não vai se machucar?”

A jogadora de vôlei Carol Gattaz com sua medalha de prata nos Jogos de Tóquio
A jogadora de vôlei Carol Gattaz com sua medalha de prata nos Jogos de Tóquio
Gaspar Nóbrega/COB

E a jogadora de vôlei está longe de ser o único exemplo recente de longevidade no esporte brasileiro. Também em Tóquio, Formiga se tornou a única futebolista do mundo a participar de sete Olimpíadas, aos 43 anos. Já Marta, aos 38, está disputando sua sexta edição. Nas Paralimpíadas, foi a atleta Elizabeth Gomes quem impressionou ao levar o ouro com 56 anos, no lançamento de disco. E o fato de vários desses exemplos recentes de longevidade serem femininos vai de encontro à própria luta por igualdade no esporte — embora o feito ainda não tenha sido realizado, os Jogos de Paris são os mais próximos de alcançar a igualdade de gênero entre atletas da história.

Segundo o médico geriatra e mestre em ciências da saúde aplicadas ao esporte Carlos André dos Santos, ir longe numa modalidade esportiva depende de uma série de fatores. Entre eles, a mentalidade do atleta, seu biotipo para praticar uma determinada atividade e o acompanhamento adequado de uma equipe multidisciplinar, capaz de lidar com todos os aspectos centrais de sua vida, do treinamento e alimentação ao sono e o cuidado com lesões — estas responsáveis por encurtar muitas carreiras no esporte.

Santos, que coordena o ambulatório de Promoção à Saúde e Envelhecimento Ativo na Escola Paulista de Medicina da Unifesp, também considera que os atletas hoje têm carreiras bem mais longevas do que no passado, em grande parte por conta dos avanços na medicina e ciência do esporte.

“Saber cuidar e prevenir lesões é fundamental. Isso faz com que o desgaste daquele atleta, tanto físico quanto emocional, seja menor”, aponta o médico, que dá como exemplo o caso do ciclista Jonas Vingegaard, que ficou com o segundo lugar no Tour de France deste ano. “Um mês atrás ele estava saindo do hospital porque sofreu um acidente numa prova, teve fratura na costela, perfurou o pulmão… Se não fosse a ciência do esporte, como é que o cara ia conseguir, depois de um mês, pedalar diariamente por 21 dias?”

A ginástica dos números

“Quero refutar essa crença de que ginástica é só para jovens”, disse a esportista do Uzbequistão Oksana Chusovitina num post recente no Instagram. Embora não tenha alcançado seu objetivo de se classificar para Paris-2024, devido a uma lesão durante os treinos, a esportista de 48 anos segue sendo uma das maiores vozes em defesa da longevidade no esporte.

Duas vezes medalhista, ela participou de oito Olimpíadas desde sua estreia em 1992 — isso numa modalidade em que a juventude costuma ser extremamente valorizada, para não dizer obrigatória. “Quando sobe no pódio, ninguém pergunta se você tem 15 ou 30 anos. O que importa é quem consegue realizar uma ótima ginástica”, já afirmou a atleta, para quem a maturidade psicológica é também um fator central para competir em alto nível.

Claro, não dá para fechar os olhos a muitos processos naturais do envelhecimento, que vão dificultando a participação no esporte profissional. Afinal, envelhecer significa perder capacidade física. Após os 30 anos, por exemplo, há um declínio de 3 a 4% na massa muscular, segundo estudo realizado por pesquisadores da USP. Com o tempo, essa perda vai se intensificando, ainda que seja possível reduzi-la através de treinos e a prática de atividades físicas.

A gente costuma dizer que o esportista é uma pessoa que morre duas vezes, porque essa identidade constituída como atleta marca indelevelmente a existência dessa pessoa

“A carreira esportiva é muito breve”, declara a psicóloga do esporte e professora da Faculdade de Educação da USP Katia Rubio. “A gente costuma dizer que o esportista é uma pessoa que morre duas vezes, porque essa identidade constituída como atleta marca indelevelmente a existência dessa pessoa. Então, mesmo quando ela para de competir, a vivência no esporte a persegue durante muito tempo.”

Para Rubio, casos como os citados até aqui são excepcionais e só podem ser compreendidos com uma mescla de fatores físicos e psicológicos muito específicos, que deram suporte a essa trajetória. “Normalmente, são pessoas que também vivem intensamente a vida fora do ambiente esportivo. Então contam com uma rede de apoio, fazem outras atividades e têm a cabeça aberta para o mundo, não apenas para o esporte.”

A especialista cita como exemplo justamente a ginástica, em que é raro ver mulheres acima dos 30 anos competindo. Sem precisar ir muito longe, um exemplo atípico é o de Jade Barbosa, que aos 33 integra a equipe brasileira de ginástica artística em Paris.

Em casos extremos, como o de Chusovitina, Rubio enxerga uma outra motivação que não propriamente lutar por medalhas. “É muito mais uma ação afirmativa do que competitiva. Ela sabia que não teria grandes chances de chegar ao pódio, mas era um ato quase ideológico, porque aquilo daria visibilidade justamente à questão do etarismo.”

Outras modalidades

Ao contrário da ginástica ou do skate, algumas modalidades abrem espaço para atletas mais velhos e até idosos em competições profissionais. Um caso emblemático é o do cavaleiro brasileiro Nelson Pessoa, o atleta mais velho do país na história das Olimpíadas. Em Barcelona, em 1992, ele competiu vestindo as cores brasileiras já aos 56 anos. Curiosamente, seu filho vem seguindo trajetória semelhante. Com sete Olimpíadas e uma medalha de ouro no currículo, o também cavaleiro Rodrigo Pessoa é o brasileiro mais velho na atual competição, com 51.

O hipismo, aliás, é um esporte que permite uma maior igualdade em diversos aspectos, inclusive no gênero — até porque quem faz a maior parte da atividade física é o cavalo. É o que afirma a assessora e representante da Confederação Brasileira de Hipismo Carola May. “Pessoas de 20 anos podem competir com atletas de 60 ou 70. O principal é ter uma boa base, um bom equilíbrio e conhecimento da equitação. A experiência conta muito, tanto que você não para de aprender a vida inteira”, afirma.

Seguindo a trajetória do pai, o cavaleiro Rodrigo Pessoa é o esportista mais velho da delegação brasileira em Paris
Seguindo a trajetória do pai, o cavaleiro Rodrigo Pessoa é o esportista mais velho da delegação brasileira em Paris
Júlio César Guimarães/COB

Não à toa, a amazona australiana Mary Hanna com seus 69 anos é, pela segunda Olimpíada consecutiva, a atleta mais velha da competição. Desde Pequim-2008 o hipismo tem sido a modalidade olímpica com esportistas de idade mais avançada. Mas também há outras, como o tiro esportivo e o iatismo — Torben Grael, por exemplo, conquistou o posto de campeão brasileiro de mais idade com o ouro em Atenas-2004, aos 44 anos.

“São modalidades em que o físico é importante; Só que, além do físico, muitas vezes a inteligência emocional e a experiência também acabam contando muito”, avalia o médico Carlos André dos Santos. “As regatas são desgastantes fisicamente. Precisa de força, você tem que estar fit, mas também é necessária muita precisão, inteligência e leitura. É um exemplo de modalidade em que a experiência, as horas de mar fazem diferença.”

O tal do etarismo

“Eu estava atuando em alta performance quando comecei a ser substituída na minha equipe. É uma situação muito delicada, mas acho que as pessoas ainda enxergam números em vez de atuação”, conta Gattaz. “Hoje muitos atletas acima de 40 anos vêm performando bem. Então cada atleta sabe quando é a sua hora de parar, quando não está entregando resultados.”

Para Rubio, a mudança de visão relacionada à idade no esporte ainda deve ser um processo lento. “A representação social sobre alguma coisa não é feita por decreto, ela depende de tempo”, afirma a psicóloga do esporte. “Já que o esporte foi construído como uma coisa voltada para a juventude, serão necessárias algumas gerações para que a questão da idade seja naturalizada.”

Esse fator pode até impedir muita gente de praticar esportes e atividades físicas quando envelhece, mesmo quando não há grandes pretensões competitivas, de acordo com Santos. Segundo ele, embora a prática esportiva entre idosos venha aumentando em alguns lugares do Brasil, tratam-se de bolhas que não representam a realidade do país. “No processo do envelhecimento, praticar esporte é fundamental para a prevenção e tratamento de doenças, além de ser um instrumento poderosíssimo de socialização, adequação e inclusão social”, afirma o geriatra.

Ser adepto de algum esporte no cotidiano, no entanto, difere do esporte olímpico na mesma proporção que entre ser professor de química e ganhar um Nobel na área, segundo Rubio. Como se trata de uma trajetória com limitações de idade, ela defende a importância do atleta pensar na carreira como um todo, traçando planos para o que pretende fazer após deixar de competir.

“É preciso diversificar as atividades para chegar na transição de carreira com saúde. Isso não vai se dar só no momento em que a pessoa decide parar, mas ao longo de toda a carreira. Os atletas que passam a viver de forma saudável depois foram aqueles que se prepararam para parar”, afirma a psicóloga.

Após as Olimpíadas, Gattaz ainda competiu com a seleção no Campeonato Mundial de Vôlei de 2022, levando outra medalha de prata para casa aos 41 anos. Recentemente, a jogadora disputou sua última final da Superliga no Minas, clube onde jogou nos últimos dez anos, e de onde saiu mais uma vez campeã. Mas ela ainda não se aposentou das quadras. Na próxima temporada, deve defender o Praia Clube, que foi o grande rival da final.

“Acho que agora vai ser temporada a temporada, eu vou entendendo como está a atual situação e minhas expectativas”, afirma a jogadora. Dessa vez Gattaz não foi convocada, mas está em Paris junto ao Time Brasil como produtora de conteúdo, para mostrar os bastidores dos atletas do país. “É uma experiência nova. Vou ver um pouco do lado de fora da coisa, porque hoje eu já sei como é lá dentro.”