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ConversasJoice Berth: 'Estamos em um período de temores'
Arquiteta, urbanista, escritora e feminista, Joice Berth fala sobre como o medo está ligado às estruturas hegemônicas, machistas e racistas no pais. Um sentimento que divide realidades nas cidades brasileiras
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Joice Berth: ‘Estamos em um período de temores’
Arquiteta, urbanista, escritora e feminista, Joice Berth fala sobre como o medo está ligado às estruturas hegemônicas, machistas e racistas no pais. Um sentimento que divide realidades nas cidades brasileiras
Arquiteta e urbanista, escritora e feminista. Não é exagero dizer que Joice Berth é uma pensadora multidisciplinar do Brasil contemporâneo, e ainda assim (ou por isso mesmo) sente muito medo. Medo porque tem consciência sobre as desigualdades e injustiças do país, porque é mulher, porque é negra, porque é mãe. “Tenho medo que meus filhos sejam vítimas de racismo, cujo ápice é a morte de pessoas negras”, afirma.
Aos 44, Joyce é mãe de quatro filhos de 18 a 24 anos. Ela é autora de “Empoderamento” (Pólen Livros, 2019), em que trata do tema por diferentes matrizes teóricas e como uma prática cotidiana para a igualdade. Leva também as questões relativas ao feminismo e ao racismo para seu trabalho como arquiteta e urbanista, em um esforço multidisciplinar que torna seu trabalho mais político — sua experiência profissional envolve urbanização de favelas, remoções e regularização fundiárias e de imóveis. Formada pela Universidade Nove de Julho, é pós-graduada em direito urbanístico pela PUC de Minas Gerais.
Em entrevista a Gama, ela fala sobre o medo no Brasil, como esse sentimento se distribui nas cidades e entre as classes sociais, como se agravou no período da pandemia e de seus efeitos — sendo o mais perigoso o negacionismo vigente e a imagem mais radical e representativa do sentimento: a de um muro que pode dividir o Morumbi, bairro de classe alta de São Paulo, da favela de Paraisópolis, sua vizinha imediata.
“Eles acham que o desemprego aumentou mais ainda, as pessoas estarão mais revoltadas, a violência vai vir com mais peso, então eles vão lá e constroem muros. É a expressão do medo, de perder privilégios, de ser confrontado em seu lugar de conforto. É emblemático”, diz na entrevista a seguir.
Quando a sociedade brasileira enfrentar os seus medos a gente vai conseguir se mover e fazer muita coisa
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G |Vivemos hoje no país os efeitos de uma pandemia, de uma crise política e de uma econômica, ataques racistas, aumento da violência doméstica contra as mulheres. É quase um concurso sobre o que gera mais medo. Como vê o medo no Brasil?
Joice Berth |No Brasil as coisas se naturalizam com muita facilidade, infelizmente. O Brasil é bipolar: ou se valoriza demais uma questão; ou se nega e se naturaliza. É um defeito da nossa personalidade social e vejo isso como uma consequência do nosso medo. A maneira como respondemos aos diversos medos que temos, e como a sociedade não estimula que prestemos atenção neles. Somos estimulados a mostrar uma imagem de pessoa que dá conta de tudo — essa cultura da hiperprodutividade, da perfeição que as redes sociais trouxeram. Temos medo de admitir fraqueza, tanto individualmente como coletivamente. E é muito natural que se tenha medo das coisas, estamos num período de temores. Essa turma mesmo que nega o que está acontecendo está sob o efeito do medo; o negacionismo é consequência do medo que se sente e não quer enxergar ou admitir para não manifestar fraqueza, como se sentir medo fosse algo depreciativo.
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G |E no que diz respeito às motivações, sentimos os mesmos medos de sempre?
JB |É o mesmo de sempre que a gente vem empurrando com a barriga há séculos. O Brasil não quis encarar a sua condição social totalmente estruturada pelo racismo, pensar nas suas questões de gênero, nos moralismos, nos eurocentrismos, em uma série de problemas sociais. A pandemia dá peso maior para essas questões, mas elas sempre estiveram aí. Somos uma nação construída a partir da escravidão, as opressões convivem conosco diariamente, mas nunca quisemos resolver por medo de perder avanços sociais conquistados, de enxergar que a sociedade branca ocupa lugares por facilitadores sociais. Há um medo da branquitude de encarar suas falhas morais que foram assimiladas pela dinâmica do racismo, porque o racismo apaga a história negra e a indígena e coloca a história branca como algo a ser seguido — e a gente vai seguindo. Existe a questão de classe também, do pobre estar sempre condicionado às decisões de uma elite que é irresponsável e apegada aos seus privilégios. A pandemia foi uma espécie de tapa na cara da sociedade, mas ainda têm pessoas que estão fugindo, achando caminhos para escapar dos problemas. E esse seria o momento de pensar sobre eles com mais profundidade.
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G |O negacionismo aumentou?
JB |Está muito forte agora, mas o Brasil sempre foi negacionista. O mito de democracia racial nasce a partir desse negacionismo que teima em não olhar para o seu passado escravista e confrontar seus efeitos. Se você não vê as coisas, você não consegue caminhos para resolvê-las. As pessoas estão negando que tem gente morrendo, que tem uma crise econômica potencializada pela crise sanitária, que a política nacional está num nível absurdo de insuportável justamente porque a gente não criou uma maturidade nacional de resolver as coisas, independentemente da dor que elas possam provocar.
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G |Quem sente mais medo no Brasil? É possível falar em termos de uma “escala de medo”?
JB |Existem tipos de medo que são dados pela posição social. Eu, como mulher negra, mãe, periférica, teria o medo dos meus filhos serem fatalmente atingidos pelo racismo. O ápice do racismo é a morte de negros. Eu convivo com esse medo constantemente, com o medo de não terem oportunidade no mercado de trabalho, de não conseguirem uma colocação social para terem condições para o básico. Uma mulher branca que também é mãe e periférica tem medo de que o filho seja atingido pela violência. E aí ela acha que a negritude é responsável pela violência e aprofunda o comportamento racista. Esse comportamento racista gera medo na mãe negra. As coisas são cíclicas e são completamente conectadas, mas a gente está condicionado a ver como coisas fragmentadas.
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G |Como arquiteta e urbanista, como você vê o medo distribuído nas cidades? A crise econômica e o desemprego podem ser vetores para esse medo urbano?
JB |Sim. Semana passada eu vi uma notícia de que os vizinhos da favela de Paraisópolis queriam que se erguesse um muro para consolidar a separação que a desigualdade social já construiu. Querem levantar mais ainda as barreiras, quando na verdade eles deveriam pensar em como integrar para que a desigualdade seja equacionada.
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G |E você acha que questões como essa são discutidas com clareza ou não?
JB |Não, acho que não. A educação faz muita falta no Brasil, educação no sentido mais amplo. As pessoas acham que a educação privada dá um outro status intelectual. Ela até pode fornecer um fluxo de informação privilegiado, mas isso não significa que transforma pessoas. Espera-se que quanto mais a pessoa estuda, mais condições ela tenha para criar empatia e espírito solidário porque vai compreender os problemas sociais. Você vai aprender Matemática, Química, Física, Português, mas não vai aprender nada sobre a vida, sobre as relações sociais, as diferenças humanas. São coisas que fazem muita falta quando você observa os caminhos que a sociedade tomou.
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G |É uma tristeza sem fim pensar nisso.
JB |É difícil, difícil para caramba. Nenhuma ação de transformação social acontece da noite para o dia. Então se hoje a gente começar a tomar atitudes para resolver essas questões, daqui a 20 anos a gente consegue visualizar a diferença. Só que hoje, para a grande maioria da sociedade, que detém o poder social, essas questões não estão sendo entendidas.
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G |O feminicídio subiu 22% na pandemia em junho. O que esse número nos diz? Há saída para ele?
JB |Esse número diz duas coisas: primeiro que a luta feminista no Brasil sempre foi muito competente. Tivemos conquistas muito importantes. Só que infelizmente a gente não consegue caminhar porque a luta feminista está sempre numa posição de bombeiro, de apagar incêndio, tem que estar correndo para solucionar as consequências e a gente nunca tem tempo de chegar na raiz dos problemas. A segunda coisa que esse número diz é que a raiz desse problema é muito mais profunda porque a violência existe na sociedade e vai recair contra aqueles grupos que são historicamente oprimidos — e o grupo de mulheres é um deles.
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G |Você já chegou a afirmar que “ser mulher é ser um ser humano com medo ou alienado por não se conscientizar do quanto o gênero limita numa sociedade machista”. Como é a sua relação com esse sentimento?
JB |Eu sinto medo. O medo é inerente a nossa condição humana porque a nossa vida é uma grande incerteza. Nós não sabemos totalmente quem somos, nem quem o outro com quem a gente se relaciona é. Agora quando entram as questões sociais no meio, esse medo se potencializa: você fica com medo de como o outro vai reagir à roupa que você está usando, como vai interagir com a sua sexualidade, ao seu avanço profissional. Medo de se relacionar, encontrar um homem, começar a namorar, me envolver, de repente eu percebo que esse homem tem um comportamento possivelmente abusivo. Tenho vários e vários medos, pelas minhas filhas, pelo meu filho, medo de que haja uma crise. Eu não faço parte da elite brasileira, minha família é pobre, moro de aluguel. Tenho medo da crise econômica se aprofundar tanto que me impeça de continuar garantindo o sustento dos meus filhos e o meu próprio.
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G |Você agora falou dos seus filhos, mãe tem mais medo?
JB |Ah sim, com certeza, porque nós estamos numa posição de responsabilidade diante de outras vidas. Além da gente ter que lidar com as nossas próprias questões, tem que lidar com as questões deles e pensar no futuro. As mães são as figuras sociais que têm a maior quantidade de medo até porque a gente vive numa condição de abandono e julgamento social constantes. Nós estamos sempre sendo cobradas, quando acontece alguma coisa as pessoas falam “onde estava a mãe que não viu isso”, raramente se evoca a figura do pai, um sintoma do machismo. Quando a gente é mãe, aos olhos da sociedade, a gente deixa de ser mulher e aí a nossa vida está à disposição integral dos nossos filhos. Isso é um grande problema.
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G |Você lançou um livro sobre empoderamento, que pode ser usado como arma contra o medo. Como você vê a relação entre o empoderamento e o medo?
JB |O empoderamento é um processo que ajuda tanto a questionar o poder e a maneira como ele está situado na ordem, que gera todas essas desigualdades e essas opressões, quanto numa restauração das condições do indivíduo que está inserido entre os oprimidos para ter ferramentas para lidar, entre outras coisas, também com o medo. O empoderamento é trabalhado em diferentes frentes, a política, a econômica, a cognitiva e a psicológica, e essas duas últimas podem potencializar a sua força para lidar com os seus medos de uma maneira mais consciente, mais lúcida e buscar a sua emancipação de alguma forma. O empoderamento nunca é só individual, ele é individual e coletivo ao mesmo tempo.
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G |Quem tem medo do feminismo negro?
JB |Olha, acho que até o próprio feminismo negro tem medo do feminismo negro na verdade.
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G |Por quê?
JB |O feminismo negro não é um único movimento de mulheres negras, com soluções para opressões e seus efeitos, mas ele vem propor novos marcos civilizatórios, novos olhares para velhas questões. Como diz a socióloga holandesa Saskia Sassen, ele vem desestabilizando conceitos estáveis, e isso gera medo. As mulheres negras têm percebido a sua força social e com ela é impossível não sentir medo também, porque obriga a rever posturas constantemente. O feminismo negro, ao mesmo tempo em que exige um trabalho de transformação interior para superar os diversos medos que a sociedade planta, também vai confrontar a ordem vigente. Isso dá medo e acho que um símbolo disso é o caso Marielle Franco. Uma mulher com a potência da Marielle Franco, que faz o combate político, é atingida, mas renasce de alguma forma fortalecendo várias bases, não só do movimento feminista negro, mas das lutas sociais como um todo.
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G |A internet e o ativismo digital surtem algum tipo de efeito para os ânimos, ajudam a aplacar o medo?
JB |A internet é um instrumento importante, em que você consegue fazer ativismo, mas não consegue fazer militância. Você pode fazer um ativismo na sua casa, escrever um texto educando pessoas, levando informação e é muito importante, sobretudo num país onde o sistema educacional é tão deficitário. Mas não é na internet que a revolução vai acontecer. Você instrumentaliza intelectualmente as pessoas e essas pessoas vão para a rua brigar pelos direitos dentro de um outro entendimento. Em “Backlash” (Rocco, 2001), a jornalista americana Susan Faludi mostra uma série de técnicas e contra-ataques aos esforços emancipatórios. Quanto mais possibilidade eles tiverem de fazer uma mudança efetiva, maior vai ser esse contra-ataque. A violência é a linguagem que vai informar o tamanho da raiva, que os grupos hegemônicos estão sentindo.
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G |E como ficam os ânimos da juventude negra diante dessa raiva? É ânimo ou é medo?
JB |É um misto. É uma característica da juventude o ímpeto para mudar as coisas, principalmente na juventude periférica. A juventude sempre foi a vetora ou a mensageira da mudança. A gente pode articular uma série de coisas, mas é sempre a juventude que vai materializar essas mudanças. Ela é muito corajosa, vai para cima, não se intimida. O funk está aí resistindo com os moralistas, achando maneiras de resistir, os slams, as poesias da periferia. Tem uma urbanista indiana que tem um conceito que eu gosto muito que é o urbanismo subalterno, não como um lugar de submissão e sim um lugar de muita insurgência, que é você assumir aquela condição social e a partir daí recriar a sua realidade.
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G |Você vê alguma saída para o medo que a gente sente no Brasil diminuir?
JB |O Mandela falava que o medo não é para paralisar mas para nos provoca a concretizar as mudanças. A gente sente medo e deve usá-lo para dar gás na nossa atitude. Ele falava que o medo não é ausência da coragem, mas um chamado para a ação. E eu acho que a única maneira de vencer o medo é enfrentá-lo. Quando a sociedade brasileira enfrentar os seus medos — e são diversos medos –, a gente vai conseguir se mover e fazer muita coisa.