Nutricionista Glauce Yonamine fala sobre alergia alimentar — Gama Revista
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Mariana Simonetti

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Conversas

Glauce Yonamine: “É preciso diferenciar alergia de reação adversa a um alimento”

Nutricionista da USP explica a diferença entre alérgicos e intolerantes e dá caminhos para uma alimentação mais saudável e prazerosa, sem noias

Amauri Arrais 19 de Março de 2023
Mariana Simonetti

Glauce Yonamine: “É preciso diferenciar alergia de reação adversa a um alimento”

Nutricionista da USP explica a diferença entre alérgicos e intolerantes e dá caminhos para uma alimentação mais saudável e prazerosa, sem noias

Amauri Arrais 19 de Março de 2023

Quantas pessoas você conhece que tem algum tipo de alergia alimentar? Se você respondeu “ninguém”, é possível que a alérgica ou o alérgico seja você mesmo. As alergias a algum tipo de alimento vem, de fato, aumentando nos últimos anos, mas é preciso diferenciar quem tem um problema diagnosticado por um médico de quem apenas passou a evitar alguma comida por passar mal depois de consumir.

“Existe um grupo de sintomas que você pode ter em relação a um alimento que não necessariamente são sinônimos de alergia, que vão de uma intoxicação a uma intolerância”, explica a nutricionista Glauce Hiromi Yonamine, da Unidade de Alergia e Imunologia do Hospital das Clínicas da USP. “As alergias em geral estão aumentando, mas há uma grande diferença entre o que a população vê como alergia alimentar e o que a gente consegue afirmar com avaliação clínica e diagnóstico comprovado.”

Autora do livro “Alergia Alimentar – Alimentação, nutrição e terapia nutricional” (Ed. Metha), escrito em parceria com a colega Renata Pinotti, ela afirma que esse aumento se deve em parte a uma predisposição genética, mas também a fatores ambientais, que vem mudando desde a infância.

“Temos vivido em ambientes muito estéreis e com pouco contato com microrganismos diferentes, o que faz com que nosso sistema imunológico se desenvolva de forma diferente e tente combater o que não precisaria, desde alimentos, a pólen, ácaro”, observa.

Na conversa com Gama, a nutricionista explica ainda como a medicalização da área transforma alimentos comuns em “vilões” ou “mocinhos” e diz por que não devemos apostar nas dietas ou receitas que prometem aumentar a resistência ou desintoxicar.

  • G |Por que hoje em dia todo mundo tem ou conhece alguém que sofre de alguma alergia alimentar? As pessoas estão tendo mais reações alérgicas?

    Glauce Hiromi Yonamine |

    A gente tem que pensar o que é de fato um diagnóstico de alergia alimentar e o que são relatos de pessoas que têm alguma alergia alimentar. Existe uma diferença entre o alto número de relatos e um diagnóstico médico comprovado. Quando falamos em termos de população, geralmente 30% vai dizer que tem alguma alergia alimentar, mas às vezes a pessoa só passou mal depois de comer, o que a gente chama de reação adversa a um alimento. Existe um guarda-chuva de um grupo de sintomas que você pode ter em relação a um alimento que não necessariamente são sinônimos de alergia, que vão de uma intoxicação a uma intolerância. As alergias em geral estão aumentando, mas há uma diferença entre o que a população vê como alergia alimentar e o que realmente a gente consegue afirmar com avaliação clínica e diagnóstico comprovado.

  • G |Como diferenciar um sintoma alérgico, uma intolerância de uma alergia alimentar?

    GHY |

    Dentro desse guarda-chuva de reações adversas a alimentos, nós temos as tóxicas e não tóxicas. A tóxica é aquela em que todo mundo vai passar mal. Se comemos um peixe estragado todos vão passar mal, independentemente da suscetibilidade individual. A reação não tóxica pode ser a intolerância ou a alergia, mas ela vai depender da minha predisposição a ter aquele sintoma. A intolerância não tem o envolvimento do sistema imunológico. Ela pode se dar por ser uma falta de enzima, uma sobrecarga de algum componente alimentar que para aquela pessoa faz passar mal dependendo da quantidade. Um exemplo clássico é quem tem intolerância à lactose. Só vai ter o sintoma quem tem essa predisposição genética, que é uma perda da capacidade enzimática. Em geral, é uma distensão, gases, diarreia, que estão relacionados com a perda da enzima lactase. Já a alergia alimentar tem o envolvimento do sistema imunológico, que encara como um agressor um alimento que ele não deveria encarar. Há ainda a alergia ao leite de vaca, que também provoca muita confusão. Tem pessoas que são intolerantes e pessoas que são alérgicas à proteína do leite.

  • G |Nossos hábitos alimentares têm a ver com isso? Comer mais comida ultraprocessada, por exemplo, pode favorecer o surgimento dessas alergias?

    GHY |

    Tem muitas coisas que podem contribuir. Existe o fator genético e existem algumas evidências falando sobre os primeiros anos de vida. Uma gestação em que você tem parto normal parece ser protetora, está muito relacionada com o desenvolvimento do sistema imunológico e microbiótico-intestinal. Mas também uma alimentação saudável na gestação, o aleitamento materno, uma introdução alimentar feita de maneira adequada, a não exposição ao fumo e outros fatores ambientais que podem prejudicar. Outro aspecto é o contato com diferentes ambientes e microrganismos, ter contato com animais, com irmãos. Quanto mais contato com microorganismos diferentes, mais estímulo para o nosso sistema imunológico se desenvolver e não reagir ao que não deveria. É a chamada hipótese da higiene: a gente tem vivido em ambientes muito estéreis e poucos diversos, o que faz com que o sistema imunológico acabe se desenvolvendo de forma diferente e tentando combater o que não precisaria, desde alimentos a pólen, ácaro. Por isso vemos tantas pessoas com rinite, alergia a pelo de animais, coisas que o organismo começa a tentar combater por causa desse desenvolvimento “errado”. Então, existe uma predisposição genética e uma parte que é do ambiente.

As alergias estão aumentando, mas há uma diferença entre o que a população vê como alergia alimentar e o que se consegue afirmar com diagnóstico comprovado

  • G |Como é o tratamento? A pessoa pode ficar curada de uma alergia a um alimento?

    GHY |

    O prognóstico da alergia em geral é bom. Então, vai passar, principalmente para leite, ovo, trigo e soja. Um bebê que tem alergia a leite vai deixar de ser alérgico ainda na infância. Hoje em dia, temos alguns casos mais graves que permanecem na adolescência e vida adulta, mas isso não é a maior parte. A grande maioria vai deixar de ser alérgico na infância. O que persiste mais é o que a gente chama de alergia IGE mediada (relacionada à imunoglobulina E), aquela imediata que você tem entre cinco minutos e até duas horas depois de comer, com dificuldade de respirar ou placas na pele. Esse tipo tende a persistir em relação a alguns alimentos, como amendoim, frutos do mar e castanhas, para o resto da vida.

  • G |Por que de tempos em tempos elegemos um alimento ou ingrediente como vilão? Existem alimentos que causam mais alergia?

    GHY |

    Existe o que a gente chama de os principais alérgenos alimentares, em que estão incluídos o leite, o trigo, a soja, o ovo, as castanhas, o amendoim, os peixes e frutos do mar. São esses oito grupos alimentares.Tem alguns mitos de associar sintomas como intolerância ou uma inflamação com alergia alimentar. Falar que o leite ou o glúten é inflamatório, o que hoje em dia se diz muito, vem dessa disseminação em redes sociais de algumas linhas de pensamento que trabalham com essa parte inflamatória do alimento, mas a medicina não associa à alergia alimentar. Muitas pessoas falam: “Ah, eu tirei o leite, o glúten da minha dieta e melhorei”. Isso pode estar relacionado com a melhoria do hábito alimentar dela. Muitas vezes o que se consome de leite e glúten são alimentos muito cheios de gordura, de açúcar, fast food, guloseimas e a pessoa muda a dieta e começa a se sentir melhor mesmo. Então não necessariamente foi o leite ou o glúten em si, mas a mudança de hábitos alimentares.

  • G |Na pandemia de Covid-19 não faltaram pessoas ensinando receitas para aumentar nossa resistência, por mais que muitos profissionais alertassem que isso não tem base científica. Existe algum hábito para melhorar a imunidade?

    GHY |

    Não existe um alimento ou nutriente específico. É importante ter uma alimentação saudável, assim como todo o estilo de vida. O que se tem de concreto é que ter uma alimentação mais baseada em alimentos in natura ou minimamente processados – frutas, verduras e legumes que vão contribuir com vitaminas e minerais – está relacionado com a melhora do sistema imunológico. Mas não é o nutriente x ou y que vai curar todos os problemas. Não dá para vender essa ideia que existe um só ou alguns alimentos [que vão melhorar a imunidade]. É a alimentação variada, atividade física, evitar exposição ao fumo, são várias estratégias. As pessoas querem aquela solução milagrosa, uma receita de um suplemento ou uma prescrição que não tem comprovação científica.

Muitas vezes o que se consome de lactose e glúten são alimentos cheios de gordura, de açúcar, fast food. Então a pessoa se sente melhor por mudar a dieta

  • G |O mesmo argumento serve para as dietas e receitas detox? Existe algum alimento que possa desintoxicar nosso organismo ou fazer desinchar?

    GHY |

    Sim, também serve. É claro que você está ingerindo uma quantidade maior de vitaminas e minerais em frutas e verduras. Então está introduzindo alimentos que são saudáveis na sua alimentação, mas você também poderia só comer a fruta ou uma salada, né? Não precisa necessariamente ser o suco detox, ou colocar esse peso de que é ele que está fazendo você tirar todas as toxinas do organismo. Na mesma linha, pode ser que a pessoa tomasse um monte de refrigerante, comesse bastante fast food e, de repente, começou a fazer essa dieta detox e acha que foi só o suco que fez melhorar. Então, de novo, tem algumas mudanças de hábitos alimentares que talvez estivessem muito ruins e você introduziu algum padrão mais saudável na alimentação. É isso que fez a pessoa melhorar. Essas dietas não são muito legais porque são muito restritivas, não são sustentáveis a longo prazo. Então o que vemos é muita gente adotando essa solução milagrosa e, depois que consegue algum resultado, volta ao hábito alimentar anterior, o que não vai resolver nada. O ideal é ir melhorando a alimentação ao longo da vida, não por um período específico.

  • G |Para além das alergias, estamos sempre sendo bombardeados por muitas regras, muitas vezes rígidas, sobre a alimentação. Como você definiria uma boa relação com a comida?

    GHY |

    Nos últimos anos temos visto uma medicalização da nutrição. com muitas regras, dietas. A boa relação com a comida é aquela que você consegue ampliar. É ter uma alimentação variada e saudável, conseguir comer sem culpa. É entender que a gente não come só nutrientes, também comemos por contexto social, por prazer de comer algum alimento de que você gosta. Então não dá para estabelecer essa relação dicotômica entre alimentos proibidos e permitidos, vilões e mocinhos, depende muito do contexto. A alimentação vai além de nutrição. Não dá pra fazer uma dieta que vai te privar para sempre de comer doce. Quando existe muita restrição é possível que a pessoa depois desenvolva uma compulsão pelo alimento. Temos que observar essas compensações posteriores, esse comer com culpa. Isso não é uma boa relação com a comida. A boa é poder estar numa festa e comer o bolo e o brigadeiro sem esse peso. É entender cada contexto e os motivos pelos quais você está comendo.