Como o calor afeta o futebol de alto nível — Gama Revista
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Mariana Simonetti

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Reportagem

Como o calor afeta o futebol de alto nível

O calor é capaz de alterar uma partida de futebol. No ano da Copa do Mundo do Catar, Gama conversa com especialistas para entender qual é o impacto das altas temperaturas no esporte

Daniel Vila Nova 23 de Janeiro de 2022
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Mariana Simonetti

Como o calor afeta o futebol de alto nível

O calor é capaz de alterar uma partida de futebol. No ano da Copa do Mundo do Catar, Gama conversa com especialistas para entender qual é o impacto das altas temperaturas no esporte

Daniel Vila Nova 23 de Janeiro de 2022

Que a seleção Alemã teve uma ótima estadia no Brasil durante a Copa do Mundo de 2014 não é novidade para ninguém. Além do infame 7×1, os alemães conquistaram seu quarto título mundial e deram um show de simpatia enquanto estavam sediados no Brasil. A quebra do estereótipo do alemão frio, no entanto, não foi somente por diversão e tinha um objetivo técnico que foi bem importante na conquista do tetracampeonato mundial – a aclimatação, processo de adaptação climática em um novo ambiente. Os jogadores e a comissão técnica alemã chegaram oito dias antes da partida de estreia da seleção e se hospedaram na Bahia, um dos estados mais quentes que sediaram a Copa.

Dortmund e Munique não costumam ter temperaturas tão elevadas quanto a pequena cidade de Santa Cruz Cabrália, local onde a delegação alemã se hospedou, por isso era essencial que os atletas se acostumassem com o clima mais quente do Brasil. Se o talento e a técnica alemã foram os principais responsáveis pela conquista do título mundial, o processo de aclimatação ao Brasil foi essencial para que o futebol alemão pudesse ser jogado no seu mais alto nível.

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A cada quatro anos, as seleções de todo o planeta viajam para um país diferente e tem de encarar um novo clima durante a competição. A próxima Copa do Mundo, que será realizada no Catar, chamou bastante atenção devido ao alto índice de calor que o país sede costuma apresentar nos meses de junho e julho, período em que a Copa tradicionalmente acontece. Em uma decisão sem precedentes, a Fifa comunicou que o torneio seria sediado no final de 2022 entre novembro e dezembro – o inverno do Catar –, buscando assim fugir das temperaturas que chegam a assustadores 50º. No mês de dezembro, a temperatura média de Doha é 24.4°. Além disso, a organização do Catar desenvolveu uma tecnologia capaz de refrigerar os estádios, prometendo climas amenos até mesmo ao meio-dia.

Se as soluções apresentadas pela Fifa e pelo Catar parecem suficientes para remediar os problemas causados pelo calor extremo, ambientes quentes ainda apresentam desafios para os profissionais envolvidos no esporte. Entre o cansaço físico e um jogo mais lento, o calor é capaz de alterar uma partida de futebol. Gama conversou com especialistas e profissionais do meio esportivo para entender qual é o impacto do calor no esporte de alto rendimento.

O que é calor?

Quando falamos de calor, há dois tipos que precisam ser considerados – o interno do corpo e o externo do ambiente. Ao realizar um exercício, uma pessoa produz energia na hora da contração muscular – em uma corrida, os músculos da perna precisam ser contraídos. Apesar dessa produção, o processo não é 100% eficiente. “De toda a energia que chega ao músculo, conseguimos aproveitar entre 20 e 30%. Todo o restante se torna calor”, afirma Thales Gomes, professor da Universidade Federal de Viçosa e doutor em Ciências Biológicas com especialização na termorregulação do corpo durante exercícios. Esse é o calor interno produzido pelo corpo. De acordo com Gomes, a produção de energia, e consequentemente a produção de calor, acaba aumentando quando fazemos exercícios físicos. Quanto mais intenso e mais duradouro for a atividade, maior será a temperatura dentro do corpo.

De toda a energia que chega ao músculo, conseguimos aproveitar entre 20 e 30%. Todo o restante se torna calor

Esse aumento pode causar problemas como a queda de pressão, câimbras, tontura, exaustão e síncope. Em casos extremos, até mesmo a morte. Para lidar com isso, o corpo tem alguns mecanismos, sendo o mais famoso deles a sudorese – para dissipar o calor que está sendo produzido no exercício, você sua. Mas o ambiente em que o exercício está sendo realizado também afeta o calor presente no corpo humano. “O corpo quer jogar o calor fora, mas isso se torna mais difícil quando o ambiente está quente”, diz Gomes.

O calor também caminha no sentido contrário, sendo possível ganhar calor do ambiente. Logo, um clima quente vai fazer com que a dissipação do calor seja mais difícil. O aumento da temperatura interna gerado pelo ambiente e pelos exercícios atinge níveis cada vez maiores ao longo da atividade. Só que a sudorese tem um limite do tanto de calor que consegue dissipar e, quanto mais suor, mais desidratado o atleta fica.

“Acima de 26º, já consideramos uma temperatura quente para quem pratica esporte de alto rendimento”, afirma Emerson Silami, professor emérito da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO) da UFMG e ex-fisiologista da Seleção Brasileira, do Real Madrid e do Botafogo. Silami aponta que a noção de calor e frio variam a partir do local onde você vive. “Se você mora em um lugar frio, a sua noção de frio vai ser diferente de alguém que mora em uma região quente. O organismo se adapta e as respostas fisiológicas se tornam naturais para o ambiente em que você está vivendo.”

O fisiologista aponta que há também outro fator que afeta o rendimento dos atletas – a umidade relativa do ar. Um ambiente úmido dificulta a dissipação de calor por meio do suor, pois o que resfria o corpo é o suor saindo da forma líquida para a forma gasosa e sendo transferido para o ambiente. “Quando a umidade relativa do ar é muito elevada, o atleta tem mais dificuldade para perder calor.”

Jogo pensado

Para um atleta amador, um incômodo físico é o sinal de que a atividade deve ser paralisada, possibilitando o refrescamento ou o descanso. “Em uma competição oficial, isso não existe. O estádio está cheio, a comissão técnica está te cobrando, você tem que jogar. O atleta profissional é ensinado a ignorar os sinais fisiológicos do cansaço e continuar jogando”, reflete Gomes. Se a lógica do esporte profissional não permite descansos ao bel prazer, o condicionamento físico dos atletas aliado a algumas estratégias e cuidados técnicos permitem que o jogo continue. “O esportista tem um tratamento diferente. Ele é treinado, ele suporta mais”, diz Gomes.

Silami lembra que a maior parte dos atletas que disputam a Copa do Mundo estão acostumados a jogar nas mais variadas temperaturas ao longo da temporada. “Esses atletas já viveram em vários locais do mundo. Nasceram em um local como o Brasil, já viveram em outros três países como Espanha, Inglaterra e França e constantemente jogam em outras nações quando atuam em competições internacionais.” Para ele, o atleta moderno e de alto rendimento é capaz de se habituar a quase todos os tipos de clima.

Além de treinamentos diários e um acompanhamento minucioso por parte das comissões técnicas dos clubes e das seleções, a preparação física de esportistas profissionais permite que eles estejam mais equipados para lidar com estresses que seriam desafiadores para pessoas comuns. Isso não significa, no entanto, que o desempenho será o mesmo. “Os atletas até conseguem jogar em um ambiente muito quente, mas ou o desempenho deles será inferior ou, para ter um desempenho similar, haverá um gasto de energia muito maior”, diz Gomes. Silami concorda que o desempenho apresentado no calor não será o mesmo, mas não acredita que isso possa ser decisivo em uma partida. “Os dois times estão submetidos a mesma situação. O ambiente vai pesar no desempenho geral, nenhum jogador é capaz de replicar o que faz em uma temperatura de 20º em um ambiente de 35º.”

Em um ambiente muito quente, é comum que os jogadores terminem o jogo com dois quilos a menos do que iniciaram

A queda de desempenho dos atletas tem impacto direto no futebol jogado. “Existem pesquisas que mostram que uma partida realizada em um ambiente quente será mais lenta”, afirma Gomes. Segundo ele, o fato dos atletas não conseguirem manter a mesma intensidade no calor faz com que o jogo tenha menos contato físico. Quem concorda com isso é Israel Teoldo da Costa, fundador e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Futebol da Universidade Federal de Viçosa. “Quando algo é mais difícil de ser realizado, as pessoas tendem a refletir mais antes de tomar alguma decisão.” Teoldo indica que o calor e a desidratação comprometem alguns movimentos físicos e biomecânicos dos jogadores, o que obrigatoriamente torna o jogo mais cognitivo. “Para preservar o lado físico em momentos chaves da partida, o jogo se torna mais pensado.”

Teoldo estuda a tomada de decisões de atletas dentro de um jogo de futebol e relata que há uma temperatura ideal para que essas decisões sejam feitas – algo em torno de 18 à 23º. “O jogo de futebol tem 90 minutos. O jogador mais habilidoso, um articulador de jogadas, vai passar três minutos com a bola no pé. Nos outros 87, ele vai jogar sem a bola.” A movimentação, seja com bola ou sem bola, só pode ser bem executada quando há uma boa leitura de jogo e o calor afeta esse desempenho. “O calor é uma questão situacional. Quanto melhor treinado for um atleta, melhor será a capacidade dele de tomar decisões assertivas.”

Para preservar o lado físico em momentos chaves da partida, o jogo se torna mais pensado

Para remediar as altas temperaturas, a indústria do futebol busca soluções como uniformes com materiais mais leves e frescos e tecnologias que permitam que a umidade do ar seja absorvida. Há também a chamada parada técnica, um pequeno intervalo para reidratação dos jogadores durante a partida. A parada é realizada quando a temperatura ambiente é igual ou superior a 32º no estádio. “Nos intervalos da partida também existem alguns procedimentos para reduzir a temperatura”, afirma o ex-fisiologista da Seleção Brasileira Emerson Silami.

“Os atletas trocam de uniforme, entram debaixo do chuveiro ou colocam toalhas úmidas pelo corpo para baixar a temperatura.” Segundo ele, o mais importante é não deixar o atleta se desidratar. “Em um ambiente muito quente, é comum que os jogadores terminem o jogo com dois quilos a menos do que iniciaram. Felizmente, hoje a ciência e a medicina esportiva conseguem contornar esses problemas.”

Nas noites árabes

Quando Thiago Santi Maria chegou em Riyadh, o calor da cidade saudita o assustou. Fisiologista, ele foi convidado pelo treinador brasileiro Péricles Chamusca para integrar a comissão técnica do Al Shabab, clube de futebol da Arábia Saudita. “Durante o dia, a temperatura chegava aos 49º. De madrugada, a mínima era 37º. Minha adaptação não foi fácil.” O fisiologista comenta que, no começo, tinha dificuldade até para sair de casa e ficar exposto ao sol durante o dia era praticamente impossível. “O calor era tão grande que eu tinha a sensação de não conseguir respirar, era terrível.”

Responsável por gerenciar a carga de trabalho, a recuperação e a performance física dos atletas do clube, Santi Maria foi se adaptando aos poucos ao clima hostil do país onde mora. Além dos desafios pessoais, o fisiologista teve de adaptar seus métodos de cuidado ao ambiente em que se encontrava. “Quando jogamos ou treinamos em períodos mais quentes, fazemos atividades apenas no período noturno. Temos que ter uma maior atenção a hidratação do atleta ao longo do dia e procurar manter uma alimentação mais leve antes das atividades.”

O calor era tão grande que eu tinha a sensação de não conseguir respirar, era terrível

Como o corpo trabalha em uma intensidade maior nessas condições, os cuidados básicos do dia têm de ser reforçados de maneira estrita. “É fundamental manter os atletas imunologicamente bem, com sono de qualidade, alimentação balanceada, boa hidratação e nível de estresse controlado.”

A Arábia Saudita segue o calendário de futebol europeu, onde a temporada se inicia em julho e termina em maio do ano seguinte. A pré-temporada dos clubes sauditas costuma ser realizada na Europa durante esse período. O mesmo acontece no Catar. Há oito anos no país que vai sediar a Copa em 2022, o lateral-esquerdo Lucas Mendes custou a se acostumar. “O calor é insuportável. Tive de ir me adaptando aos poucos.”

Ele, que já jogou no Brasil e na França, relata que a pré-temporada costuma ser realizada na Europa por conta do clima ameno. “Você acaba conseguindo fazer uma preparação melhor. Quando voltamos para o Catar, jogamos em temperaturas elevadas. Não é impossível, mas é complicado.” Os treinos também são realizados no período da noite e, assim como Santi Maria, Mendes reafirma a importância da hidratação.

“Quanto mais calor, mais desgaste. Você precisa estar bem preparado, com o condicionamento em dia. Caso contrário, você vai acabar sofrendo e tendo que fazer mais força, o que pode causar uma lesão”, afirma o jogador. Segundo ele, os primeiros treinos da temporada sempre voltam em um ritmo mais fraco, buscando a adaptação dos atletas ao clima. “No Catar, é o verão. Na França, era o frio. Não tem muito segredo, o futebol é jogado no mundo inteiro. Se você estiver focado e treinar forte, vai prosperar”, finaliza o lateral.