Como você sente as mudanças climáticas na sua cidade? — Gama Revista
Sua cidade está preparada para as mudanças climáticas?
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Ilustração de Isabela Durão

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Depoimento

Como você sente as mudanças climáticas na sua cidade?

Moradores de municípios das cinco regiões do Brasil contam a Gama como lidam com as consequências da emergência do clima no dia a dia

Ana Elisa Faria 22 de Setembro de 2024

Como você sente as mudanças climáticas na sua cidade?

Ana Elisa Faria 22 de Setembro de 2024
Ilustração de Isabela Durão

Moradores de municípios das cinco regiões do Brasil contam a Gama como lidam com as consequências da emergência do clima no dia a dia

Ar irrespirável, calor desumano, enxurradas, secura, fumaça, céu cinza, rios desaparecendo, imóveis inundados, falta de luz, alimentos com preços exorbitantes, insegurança alimentar. Parece a descrição de um filme apocalíptico qualquer, mas são algumas das tristes consequências das mudanças climáticas que brasileiros e brasileiras, de norte a sul do país, têm enfrentado nos últimos tempos.

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Do Rio Grande do Sul, com as maiores enchentes da história no estado, à pior qualidade do ar no mundo em São Paulo, passando pela seca na Amazônia e pela fumaça que cobriu Brasília e arredores. Cada vez mais está difícil levar uma vida normal, seja nas grandes metrópoles ou em cidades do interior. A maioria dos municípios, de uma forma ou de outra, enfrenta problemas relacionados à emergência climática.

Para conhecer diferentes realidades, Gama ouviu cidadãos de todas as regiões que contam como sentem as alterações nos padrões de temperatura e clima.


Arquivo pessoal

“O calor aqui é desumano. O ar-condicionado não é mais artigo de luxo, é item de sobrevivência”
Rutenio Florencio, 25, morador de Fortaleza (CE). É gestor e fundador do Instituto Pensando Bem

“As mudanças climáticas estão cada vez mais na cara de todo brasileiro, de gente de todo canto do mundo, na verdade. Em Fortaleza, conseguimos perceber um aumento muito grande da temperatura — quando eu falo de Fortaleza, estou falando de dentro da favela, no Inferninho, que fica no bairro de Vila Velha. O calor aqui é desumano. Hoje, o ar-condicionado não é mais artigo de luxo, é item básico de sobrevivência. Além do calor, tem a chuva. Nas épocas chuvosas, a chuva vem muito forte, o que nos causa um sofrimento imenso, porque a cidade não está preparada para receber tanta água. Então, chove muito em pouco tempo, resultando em alagamentos, inundações. Principalmente na favela e nas periferias, a gente sofre bastante com isso, causa um estrago. É uma realidade bem dura.”


Arquivo pessoal

“Estamos em pleno deserto. Onde deveria haver rio, há apenas areia”
Stephany Farias, 29, moradora de Coari (AM). É historiadora e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam)

“Desde 2023, estamos enfrentando problemas relacionados às mudanças climáticas: os rios estão secando e há inúmeros casos de fumaça pelo Amazonas. Não é uma coisa voltada à capital, Manaus, mas todo o estado sofre com essas questões. Nas cidades, o sofrimento varia conforme a classe social. Basicamente, as nossas estradas são os rios. E os leitos dos rios estão desaparecendo, estão secando. Há áreas dos rios Madeira e Solimões, como Tefé e Humaitá, onde as pessoas estão andando em cima do rio, já que não tem mais água. Estamos em pleno deserto. Onde deveria haver rio, há apenas areia. No Amazonas, muitas comunidades tradicionais e povos indígenas vivem da agricultura familiar e da pesca. Mas como pescar, se não há mais rio? Isso leva ao enfrentamento da insegurança alimentar. Nós, que moramos na cidade, sofremos também com o aumento exorbitante dos preços dos alimentos. Sem os rios, toda a locomoção e o combustível, tornam-se mais caros. Quem não vive em Manaus, por exemplo, passa muito por isso.”


Foto: Fred Gustavos

“Hoje já acontece de as temperaturas em julho chegarem aos 48 graus. Tenho alunos que vão à universidade para ficar no ar-condicionado”
Lívia Bertges, 37, que vive entre Tangará da Serra e Cuiabá (MT). É professora e pesquisadora de literatura

“Leciono em Tangará da Serra, cidade a 250 quilômetros de Cuiabá. Passo dois dias por semana aqui e volto para a capital, onde moro há 13 anos. Tenho observado mudanças climáticas importantes nos últimos três anos. Primeiro, no quesito temperatura. Não é novidade que Cuiabá é uma das capitais mais quentes do país, sobretudo no período da seca, que normalmente se inicia em agosto e se estende até outubro. Porém, de três anos para cá a seca tem chegado antes, nos últimos 15 dias de julho, e ela está hiperacentuada. Só conseguimos dormir com o umidificador de ar e o ar-condicionado ligados. Antigamente chovia em julho, e a temperatura não era tão exacerbada. Hoje já acontece de as temperaturas em julho chegarem aos 48 graus. Tenho alunos que vão à universidade para ficar no ar-condicionado — muitos não têm o aparelho em casa. E, sabemos, que no Mato Grosso ter um ar-condicionado é uma necessidade de vida. No geral, tínhamos de uma semana a uma semana e meia de calor acima de 40 graus. Neste ano, estamos desde a primeira semana de agosto acima dos 40 graus. O pior é que vivemos em um estado do agronegócio, e o agro é fogo. Temos mais bois do que pessoas, o que influencia completamente nas questões, por exemplo, da queimada, do uso do fogo legitimado, de uma certa forma, embora saibamos que há também incêndios criminosos. Em agosto, começamos a conviver com a fumaça e estamos assim há 48 dias. Eu faço uma contagem desses dias porque a situação é desesperadora, desoladora. A gente precisa sair de casa para trabalhar e tem fumaça num calor de 47 graus. E não existem medidas governamentais nem de proteção à saúde. É uma apatia tão generalizada que dá muita desesperança.”


Foto: Theodora Duvivier

“Eu fico angustiada de ver que o Brasil passa por coisas urgentes a todo momento, problemas grandes estão acontecendo, muito sérios, é um apocalipse real

Giovanna Nader, 38, moradora do Rio de Janeiro (RJ). Em cartaz com a peça “És Tu, Brasil?”, uma biografia política do país sob um olhar climático, é atriz e ativista socioambiental

Na cidade do Rio de Janeiro, a gente tem sentido pouco, até, os sintomas desses acontecimentos recentes. Não chegou tanto por aqui quanto chegou em São Paulo ou em outros lugares do Brasil, como em Araguari, Minas Gerais, minha cidade natal, por exemplo — locais onde as pessoas estão com dificuldade para respirar. Porém, estou no meio do ativismo climático há um tempo e o que eu não tenho sentido na pele, no dia a dia, vejo nos noticiários e nas redes sociais. É deprimente saber que coisas graves estão acontecendo no seu país, mas você está longe e um pouco de mãos atadas, sem poder fazer nada, de fato. Costumo viajar pelo Brasil a trabalho e, em 2023, estava em um evento em Manaus, no auge das queimadas. Estávamos em frente ao rio Negro, falando sobre o futuro da Amazônia, com a cidade toda cinza, com todo mundo usando máscara. E saber que são queimadas criminosas é ainda mais angustiante. Eu fico angustiada também de ver que o Brasil passa por coisas urgentes a todo momento, problemas grandes estão acontecendo, muito sérios, é um apocalipse real, e, ainda assim, vemos pouco se falar sobre isso.”


Arquivo pessoal

“Aqui é muito quente, muito, muito, muito quente. Mas nos últimos tempos está mais quente ainda”
João Carlos Jarochinski, 40, morador de Boa Vista (RR). É professor do curso de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR)

“O primeiro aspecto das mudanças climáticas que chama a atenção em Boa Vista é a oferta de água. Os rios da região estão atingindo secas históricas. E a gente percebe, na hora da distribuição de água [em pias e chuveiros, por exemplo], uma pressão menor no recebimento. É algo que quando eu cheguei aqui, há 11 anos, era uma temática que não aparecia. Obviamente, a população da cidade aumentou, mas a oferta de água e os níveis dos rios são bastante impressionantes. Sempre tivemos um período de seca, no entanto esses momentos estão sendo antecipados. O período das chuvas está menor e mais concentrado. Ou seja, chove menos tempo, porém, quando chove, vem muita chuva. É um tipo de pancada com um vento fora do script. Outra coisa é que, no geral, aqui é muito quente, muito, muito, muito quente. Mas nos últimos tempos está mais quente ainda. Temos sofrido bastante com as temperaturas médias aumentadas, principalmente a sensação térmica. É um abafamento que faz você se sentir indisposto para fazer qualquer coisa fora de um ambiente refrigerado. No fim do dia, há um desânimo geral.


Arquivo pessoal

“Ninguém quer mudar o jeito como vive para tentar reverter o problema”
Cyntia Ashiuchi, 40, moradora de Brasília (DF). É confeiteira

“Brasília sempre foi seca, é normal do Centro-Oeste, do cerrado, mas estão acontecendo queimadas muito duradouras e extensas, com indícios de serem causadas por incêndios criminosos. No entanto, a seca está além do ‘normal’, o que contribui para o espalhamento do fogo em proporções gigantescas. Fora isso, acho que são perceptíveis as mudanças relacionadas às estações. Basicamente, temos a estação das chuvas e a estação seca, não há um entremeio. Mas, nos últimos anos, a época da chuva tem sido bem expressiva. Chove um volume muito grande, são enxurradas que causam enchentes e deixam a cidade caótica. Isso não era tão comum, porém tem se tornado corriqueiro. Inclusive porque existem obras sem planejamento de drenagem. Eu sou obcecada com a questão das mudanças climáticas, não sei se é por conta da minha formação em biologia, mas me interesso pelo assunto, apesar de não trabalhar mais com ciência. Tenho até o apelido de trombetinha do apocalipse. Faz anos que eu falo que já chegamos em um ponto de não retorno. Minha percepção é que as pessoas não querem ceder em nada, não querem passar por nenhum tipo de desconforto, seja adotando novos hábitos alimentares ou de consumo. Ninguém quer mudar o jeito como vive para tentar reverter o problema.”


Arquivo pessoal

“Vivemos uma situação extrema, de insegurança. Ficamos uma semana sem água, sem luz”
Clarissa Virmond, 34, moradora de Porto Alegre (RS). É produtora executiva de cinema

“Comecei a sentir bastante as mudanças climáticas em Porto Alegre em setembro de 2023. Faço produção executiva de cinema e estava filmando um curta-metragem no início do mês. Iríamos fazer umas cenas no mar, mas teve um dia que choveu tanto que as estradas começaram a alagar. Bateu um pavorzinho. Essas coisas no Rio Grande do Sul, de enchente, de viração do tempo, sempre estiveram presentes na música popular gaudéria. Sempre soubemos que isso acontecia, tivemos a enchente de 1941, quando Porto Alegre ficou embaixo d’água. Só que ninguém esperava que fosse acontecer novamente, numa proporção dessas, como ocorreu ano passado e, sobretudo, como foi a partir de abril de 2024. Porto Alegre foi planejada para isso não acontecer ou não ter um impacto na vida das pessoas, caso acontecesse. O que vimos é que faltou manutenção nas casas de bomba. E foi bem horrível. Foi muita chuva, que subiu muito rápido. Eu moro em um bairro que foi afetado. É um bairro de classe média, um pouco mais alto, inclusive, mas perto do Guaíba, porém nunca imaginávamos que a enchente chegaria até aqui. Vivemos uma situação extrema, de insegurança. Ficamos uma semana sem água, sem luz. Foram duas sem internet e sem sair de casa direito, sem saber o que fazer, porque o berçário da minha filha, que tem dois anos, foi completamente inundado. Fiquei em casa com ela, não tinha como trabalhar direito. A gente comprava comida a cada dia, onde dava para chegar, além de racionar água. E as pessoas passaram por uma situação dramática, muito pior, de perder a casa, de ter que sair às pressas. Enfim, a gente não acredita que vai acontecer algo do tipo, parece tão longe, coisa de filme. E, ao mesmo tempo, era difícil de explicar para as pessoas o que estava acontecendo porque do outro lado da cidade as coisas estavam normais, as pessoas iam ao shopping, ao cinema. Foi bem esquisito. É tudo realmente voltado para o lucro. E tem pouco enfrentamento. Por outro lado, o Brasil é um dos países que mais matam ativistas ambientais. É tudo complexo, já não tem plano B, não existe um planeta B. E vamos ver nossos filhos enfrentarem condições muito severas, tendo que aprender a viver de uma forma bem diferente. Espero que as pessoas deixem de ser cafonas com os seus consumos cafonas, com os seus egoísmos cafonas, e comecem a se voltar para um cotidiano sustentável, para políticas sustentáveis.


Reprodução/Facebook

“É sempre muito preocupante para nós quando vai chegando a época das grandes chuvas”
Benito Campos, 72, morador de São Luiz do Paraitinga (SP). É artesão, carnavalesco e poeta

“Há muitos anos percebemos as mudanças climáticas acontecerem. Vivo em uma cidade pequena, onde a gente tem mais tempo para ver o tempo. E São Luiz do Paraitinga sofreu uma imensa catástrofe em 2010, uma enchente de enormes proporções que resultou na perda de parte da cidade, numa imagem correu o mundo naquela época. A igreja em ruínas, tudo embaixo d’água. Enfim, é sempre muito preocupante para nós quando vai chegando a época das grandes chuvas. De outubro para frente já ficamos preocupados. Há dias com vários climas, faz frio, venta, sai sol, de repente escurece. Economicamente, a cidade passou por grandes processos, teve a época do café, no século 19, depois veio a pecuária. Então, é nítido que as matas e montanhas da região estão bem devastadas, que há queimadas, sentimos na pele as ondas de calor, que vão e voltam. E essas coisas estão cada vez mais se agravando, o que é extremamente preocupante.”

Campos enviou a Gama um dos seus poemas sobre a emergência do clima.

“Banquete de Urubu”

Lá do céu disse
o cosmonauta
que a Terra era azul.
Hoje diz o astronauta,
é fumaça de norte a sul.
A cada canto que se olha,
olha imenso grande fogo.
A natureza bela e joia
é vela acesa de Diogo.
Deste jeito tudo acaba.
Bem se acaba senão cedes.
Este mundo de coivaras
mata nós de fome e sede.
Taquaruçu toca tambu
Pow, pul, pow, pul.
O sol calcina o cururu.
Foi, não foi, foi, não foi, fui.
O tal efeito é de estufa.
Agora o banquete, meus amigos
Este é de urubu…