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SemanaA vez dos solteiros
Por que ainda estigmatizamos pessoas que estão solteiras? Como encarar esse estado, transitório ou não, com mais aceitação e liberdade?
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SemanaA vez dos solteiros
Por que ainda estigmatizamos pessoas que estão solteiras? Como encarar esse estado, transitório ou não, com mais aceitação e liberdade?
Nunca houve tantos solteiros. Apesar disso, eles ainda são escancaradamente estigmatizadas. Parece um papo retrógrado, mas essa é a realidade das pessoas que falaram a Gama para esta reportagem. Elas reclamam de serem olhadas pena e até com desconfiança, como se tivesse algo de errado com elas. São submetidas a comentários incômodos (“uma hora você acha alguém, você vai ver”) e adjetivos pejorativos (“solteirona”). São encaradas como egoístas, menos comprometidas e incompletas. São excluídas de eventos sociais e cobradas desgastantemente por parentes, tendo que lidar diariamente com uma cultura que beneficia e valoriza casais. Em inglês, existe até um termo para esse comportamento: “single-shaming”.
Segundo a Euromonitor International, o número de solteiros já ultrapassa o de casados na América do Norte e na Europa e deve crescer mais de 20% no mundo até 2040. No Brasil, o IBGE estima 81 milhões de solteiros* e 63 milhões de casados, segundo o último levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) – 16% dos lares do país são ocupados por pessoas que vivem sozinhas. Também nos casamos cada vez mais tarde, ou seja, passamos mais tempo da vida solteiros.
Quem está solteiro sente muita necessidade de se justificar. Quando você diz que está solteira, as pessoas costumam perguntar o porquê
“Quem está solteiro sente muita necessidade de se justificar”, diz a comunicadora Carol Tilkian, 37. “Quando você diz que está solteira, as pessoas costumam perguntar o porquê.” A paulistana criou no fim de 2018 o Soltos S.A., canal no Youtube voltado para discutir a solteirice e outras questões de relacionamento. Ela já entrevistou o filósofo Leandro Karnal sobre medo de se relacionar, o psicólogo Christian Dunker sobre liberdade de escolha no amor e a Monja Coen sobre amor próprio e autocobrança.
“Grande parte do meu público é composto por mulheres com entre 30 e 45 anos. Algumas chegam cansadas de buscas amorosas frustradas, se sentindo diminuídas por estarem solteiras, e outras em conflito por estarem bem assim mas acharem que o esperado para elas nessa idade era estarem casadas e com filhos”, conta ela. “Minha intenção é mostrar como lidar com a solteirice de forma mais empoderada.” E sim, são as mulheres que mais sofrem com esse estigma. É para elas que a “falta” do relacionamento ganha esse peso de “fracasso social”.
Para a psicóloga clínica Lígia Baruch, doutora pela PUC (SP) e coautora do livro “Tinderellas: O amor na era digital” (Ema, 2019), ainda vivemos resquícios de uma mentalidade antiquada e machista que assume que a mulher precisa de um homem para cuidar dela. “O encontro amoroso é um tema central na psique feminina”, diz ela. “O ‘sucesso’ da mulher ainda é muito atrelado a ter uma parceria romântica.” Ela explica que, até pela questão biológica, o homem tem menos ansiedade por esse encontro. E um homem estar solteiro é uma situação social bem mais positiva – ele está “aproveitando a vida”, enquanto ela está “ficando para titia”, segundo a autora.
A cobrança que vem de fora – e de dentro, já que incorporamos essa mentalidade de muitas formas – é mais forte fora dos grandes centros urbanos. A publicitária Isabela Moreira, 32, de Delfinópolis (MG), se mudou de São Paulo de volta para a cidade natal durante a pandemia e sentiu isso na pele. “No interior, as pessoas são mais conservadoras, e as famílias fazem mais pressão – os olhares de ‘coitada, não achou ninguém’, são mais frequentes. Fora que tem menos chances de conhecer gente nova.” Ela conta que, como acontece com muitas mulheres, conquistas profissionais e outros aspectos da vida são ofuscados pelo fato de ela não estar em um relacionamento.
No livro “Happy Singlehood: The Rising Acceptance and Celebration of Solo Living” (Solteirice feliz: cresce a aceitação e celebração da vida solo), o sociólogo americano Elyakim Kislev explica que parte disso vem de uma atitude tribal: em uma sociedade onde se casar – e querer se casar – é o padrão, solteiros se tornam elementos “estranhos”, como se não compartilhassem os mesmo valores.
Solteirice: estado transitório?
De tradições religiosas a produções hollywoodianas, não é difícil perceber que muitas das referências que nos rondam ainda colocam o casamento como realização crucial na vida – mesmo diante de índices cada vez maiores de divórcios – no Brasil, um em cada três casamentos termina em separação. A própria definição de “solteiro” tem ares discriminatórios — em muitos dicionários, solteiro é “pessoa que ainda não se casou” e “que revela falta ou carência de algo”. Para Carol Tilkian, tendemos a supervalorizar o amor romântico em detrimento de outros tipos de afeto e caprichamos no “oversharing” de declarações de amor, pedidos de casamento e vestidos de noiva nas redes sociais — famosas com Sasha e Ariana Grande, recém-casadas, deram suas contribuições recentemente. “Não tem nada de errado em celebrar o amor conjugal”, diz ela. “Mas precisamos de mais referências de vidas solteiras felizes.”
A pesquisadora Bella dePaulo, do instituto de psicologia da Universidade da Califórnia, dedicou os últimos 20 anos a esse objetivo. Autora do livro “Singled Out: How Singles Are Stereotyped, Stigmatized, and Ignored, and Still Live Happily Ever After” (Como os solteiros são estereotipados, estigmatizados e ignorados e, ainda assim, vivem felizes para sempre) e de uma palestra do TEDx com mais de um milhão de visualizações, a americana direcionou seu trabalho para pessoas (entre as quais ela se enquadra) que ela chama de “solteiras de coração”, que vivem melhor sem se casar.
Muita gente vive sua versão mais autêntica e realizada estando solteira. Precisamos parar de seguir o script sem refletir se casar é o que funciona pra gente
Em suas pesquisas, que tentam desmistificar os estereótipos colocados nos solteiros, Bella descobriu que, no geral, pessoas que escolhem viver assim são mais felizes e mais saudáveis, procuram empregos com mais propósito e fazem mais trabalhos voluntários. Elas passam mais tempo sozinhas no dia a dia, sim, mas também têm laços mais fortes com amigos, familiares e com a comunidade onde vivem. “Eu questiono o preconceito de que tem algum problema com pessoas que optam por não se casar”, diz ela a Gama. “Assim como eu, muita gente vive sua versão mais autêntica e realizada estando solteira. Precisamos parar de seguir o script sem refletir se casar é o que realmente funciona pra gente.”
A psicóloga Lígia Baruch enxerga esse comportamento entre, por exemplo, mulheres com filhos que se divorciam, principalmente com mais de 40 anos. “Fiz meu mestrado sobre esse tema. Foi interessante perceber que, depois de cumprir essa expectativa social, muitas delas se sentem livres para se relacionar de maneiras mais ‘descomplicadas’.”
É o caso da gerente de projetos Joana Nogueira, 48, de São Paulo (SP), que se separou há quase 20 anos e não quis se casar de novo. “Agora que meu filho cresceu, curto a liberdade de levar a vida do meu jeito. Tenho tempo e independência financeira e viajo bastante. Companhia é superimportante, mas não precisa ser de um marido”, conta. Para ela, a riqueza que se pode ter vivendo solteira não é tão reconhecida.
Solteiros na pandemia
“Muita gente acha que os solteiros se deram pior na pandemia. Mas será mesmo? Porque a convivência entre casais também pode ter sido bem difícil”, diz Tilkian – o Brasil teve um crescimento no número de divórcios no período. A americana Bella dePaulo concorda: “É verdade que, para muitos solteiros, esse período está sendo bem desafiador. Mas também entrevistei pessoas que relataram experiências positivas de autodescoberta, durante as quais conseguiram superar o medo de ficar sozinhas e encontraram novas paixões e interesses”.
Para entender como os solteiros enfrentaram o período de isolamento, Tilkian elaborou, em conjunto com a plataforma On The Go, uma pesquisa com cerca de 1500 pessoas, entre homens, mulheres e não-binários. Alguns dados interessantes que descobriu: 43% dos entrevistados furaram a quarentena para encontrar um “crush”, 29% compraram brinquedos sexuais para se divertirem sozinhos e 44% usaram o tempo para fazer uma limpa na vida amorosa – tipo apagaram contatos e pararam de seguir ex-paqueras.
Se aprendemos a curtir nossa própria companhia, quando um possível parceiro ou parceira aparece, é uma opção, e não uma solução
A influenciadora Maqui Nóbrega, 35, resolveu tirar um ano sabático de relacionamentos em 2020 – o que acabou vindo a calhar com a chegada da pandemia – e escreveu sobre o período. “Foi um detox que eu quis fazer depois de algumas experiências ruins”, conta ela a Gama. “Percebi que aplicativo de paquera é um vício como qualquer outra rede social e que muita dessa energia gasta no flerte pode ser usada em outras coisas. Saio dessa querendo fazer escolhas melhores e não ficar com pessoas nas quais não estou realmente interessada só para passar o tempo.”
Um “detox” nesse sentido pode ser saudável porque, diante do estigma social, o medo de ficar sozinho pode até levar a relacionamentos abusivos e/ou simplesmente infelizes. “Se aprendemos a curtir nossa própria companhia, quando um possível parceiro ou parceira aparece, é uma opção, e não uma solução”, diz Tilkian, do canal Soltos. “Nos conhecendo melhor, podemos questionar o que esperamos do amor, que tipo de relação queremos e o que estamos fazendo para construir isso.”
Estar solteiro pode ser sim uma defesa comum em tempos de individualismo, para não ter que lidar com os atritos inerentes à vida a dois
Outro estereótipo comum da vida solteira é que ela pode se tornar uma espécie de “zona de conforto”, adotada por pessoas que não querem ter o trabalho de se relacionar, ou que são “exigentes” demais. Em maio deste ano, a jornalista carioca Jéssica Batan, 30, fez um tweet se questionando sobre isso, dizendo que faz sete anos que não namora e perguntando qual foi o maior período solteiro dos seus seguidores. Ela não esperava tanta repercussão — foram mais de 14 mil curtidas e 3 mil “quote tweets”. “Fiquei surpresa com muitas pessoas se sentindo mal com a solteirice delas e, mais do que isso, com a minha!”, conta. “Eu estou bem tranquila e segura comigo mesma e acho estranho pensar que é um comodismo. Estou aberta às surpresas da vida.”
“Estar solteiro pode ser sim uma defesa comum em tempos de individualismo, para não ter que lidar com os atritos inerentes à vida a dois”, diz Lígia Baruch. “Ainda assim, estar em um relacionamento amoroso é só uma das formas de aprender e se desenvolver.”
A psicóloga lembra que estar solteiro é diferente de estar sozinho. Solteiro é uma resposta ao social, enquanto estar acompanhado pode acontecer de várias formas. E a tendência é que cada vez mais caminhemos em direção a relações com bordas menos definidas. “Antes era tudo muito estabelecido – ou se era casado, ou se era solteiro. Hoje, estamos em uma fase de transição para novos modelos.” Para ela, com autoconhecimento e desconstrução de paradigmas antigos, podemos nos libertar para que cada um possa escolher o que faz mais sentido para si.
*o número não leva em conta em viúvos, divorciados e pessoas em outros tipos de união conjugal.
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CAPA Solteiro, casado ou outra coisa?
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1Semana Daniel Jones, do 'Modern Love': "Histórias nos fazem pensar em nossas experiências"
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2Semana A vez dos solteiros
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3Podcast da semana Renata Corrêa e Antonio Prata: o relacionamento do século 21
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4Depoimento O que aprendi sobre relacionamentos na pandemia?
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5Bloco de notas Os achados por trás disso tudo