Por que jovens investigam sua saúde mental nas redes?
De testes rápidos ao autodiagnóstico de transtornos como TDAH e autismo, as redes trazem informações importantes, mas também geram riscos
Durante a pandemia, a jornalista Maria Flor, 48, recebeu uma notícia preocupante da escola de sua filha: após as férias de julho, a adolescente deixou de aparecer nas aulas online. “Fomos conversar com ela para entender o que estava acontecendo. Ela tinha dificuldade de se engajar com o ensino remoto porque é uma pessoa muito sociável, muito do grupo”, lembra Flor.
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Por associar os longos períodos de tempo que a jovem passava trancada no quarto a um comportamento típico da adolescência, os pais demoraram para perceber que algo não ia bem. “Em algum momento da conversa, ela disse que achava que tinha TDAH”, conta a mãe. Foi quando a jovem trouxe à tona uma lista de coisas que sentia ou fazia e que seriam sintomas de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade.
“Perguntei como ela descobriu tudo isso, e ela disse que tinha achado na internet”, narra a jornalista. “Primeiro expliquei que o diagnóstico não é assim. Mas, conforme ela falava, fui percebendo que ela de fato tinha várias daquelas dificuldades, como eleger prioridades, dividir o tempo…”
O caso acompanha uma tendência de alta na busca por informações médicas e no autodiagnóstico pela internet e redes sociais. De acordo com uma pesquisa de 2018 do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade, focado em pesquisa e pós-graduação para o mercado farmacêutico, cerca de 40% dos brasileiros têm como hábito fazer autodiagnóstico online.
Também tem se tornado cada vez mais frequente a busca por informações sobre transtornos e distúrbios a exemplo do próprio TDAH, autismo, ansiedade e depressão em redes como TikTok e Instagram. No TikTok, por exemplo, hashtags como #saudemental hoje alcançam bilhões de visualizações. Uma pesquisa de 2022 da plataforma de saúde CharityRX apontou que 33% dos americanos da geração Z — nascidos entre a segunda metade da década de 1990 e o ano de 2010 — buscavam informações médicas no TikTok antes de consultar um profissional.
Em conversas com o orientador da escola na época, o profissional chegou a alertar Flor de que os estudantes tinham inclusive criado um grupo online onde discutiam o TDAH. “Minha preocupação como mãe foi acolher, ouvir o que ela me trazia, mas ao mesmo tempo deixar claro que, em condições como o TDAH ou o espectro autista, tem que buscar um profissional capacitado, fazer toda uma avaliação até chegar num diagnóstico”, explica.
Após um longo de período de testes neuropsicológicos, a adolescente foi diagnosticada aos 14 anos com TDAH e altas habilidades — habilidade ou potencial acima da média em determinadas áreas. “Ter procurado bons profissionais me deixou muito mais atenta à neurodivergência. Hoje faço parte de um grupo online com mais de 120 pais e mães, com foco no TDAH e outras neurodivergências”, conta Flor.
Lado B x Lado A
Embora não seja um comportamento restrito aos mais jovens, a educadora e psicanalista da adolescência Carolina Delboni esclarece que são eles que acabam usando as redes sociais como plataforma de busca com muito mais frequência do que o Google ou um veículo jornalístico. “É um cenário mais difícil, com uma abrangência e um universo muito maiores”, aponta.
A especialista também lembra que a adolescência é uma fase em que emoções e sentimentos são sempre muito agudos, latentes e volúveis. E, apesar de se falar cada vez mais em saúde mental, especialmente desde a pandemia, pouca gente explica, de fato, para os jovens o que são os transtornos psicológicos. Portanto, muitos acabam buscando informações por si próprios.
Apesar de se falar cada vez mais em saúde mental, pouca gente explica, de fato, para os jovens o que são os transtornos psicológicos
“Tem um lado muito bom, porque divulga e democratiza as informações sobre saúde mental”, afirma Delboni. “Deveríamos estar falando mais da prevenção desses transtornos. E cuidar da saúde mental de crianças e adolescentes é prevenção de um transtorno.”
O psicólogo clínico Cristiano Nabuco também indica como ponto positivo o fato de pacientes atualmente chegarem ao consultório muito mais informados sobre suas dores e dificuldades. “A informação vai sendo digerida e preparada pelo lado psicológico, para que a pessoa possa entender por ela mesma, com um tempo de maturação”, afirma o especialista em saúde mental e dependência tecnológica, que tem pós-doutorado em psiquiatria.
Porém, também lembra que nem todo site ou perfil de rede social é feito por profissionais ou traz informações verificadas. E, por viverem um estado de sofrimento psicológico, muitos usuários estão mais fragilizados e vulneráveis, prontos a aceitar qualquer informação como correta.
Além disso, Nabuco aponta que mesmo informações corretas, quando incompletas, podem ser prejudiciais, ainda mais se levarem à automedicação. “A pessoa descobre na rede que tomar erva-de-são-joão pode ajudar o indivíduo que sofre de ansiedade”, exemplifica o psicólogo. “Até ajuda, mas, se você não souber dosar, ela também pode aumentar a pressão pulmonar.”
Cuidar da saúde mental de crianças e adolescentes é prevenção de um transtorno
Para o profissional, a busca por notoriedade e atenção nas redes gera informações distorcidas, mesmo por usuários bem-intencionados. “Um perfil estava divulgando que o uso abusivo das telas causa ‘autismo digital’. Não pode fazer isso, cria pânico e alarme. Outro falou que existe um quadro ligado ao uso das telas chamado ‘demência digital'”. Embora termos como esses até sejam objetos de estudo, a informação não pode ser apontada como definitiva e categórica, na visão do psicólogo.
Delboni também aponta que o acesso na internet acontece quase sempre de forma rápida e superficial, enquanto detectar um transtorno vai no sentido contrário e depende de um processo longo e lento de avaliação, que pode levar anos. Ela dá como exemplo o compartilhamento recente no TikTok de testes como o DASS-21, que faz uma escala dos níveis de depressão, ansiedade e estresse.
“Apesar de ser um teste usado por psiquiatras, para detectar qualquer tipo de transtorno é necessária uma combinação de laudos”, declara.
Banalizando transtornos
Um dos riscos dessa prática entre os jovens, acrescenta Delboni, é que os sintomas de alguns transtornos são muito semelhantes a problemas que eles enfrentam no dia a dia. “Qual a diferença do TDAH para um adolescente superagitado?”, ela questiona. Com isso, afirma, mesmo sem passar por uma avaliação médica, muitos começam a se apresentar como tendo graus leves de TDAH ou autismo, até como uma forma de explicar as próprias dificuldades, banalizando e esvaziando esses transtornos.
Foi mais ou menos o que aconteceu com a advogada e professora Juliana Maciel, 49, quando a filha adolescente a procurou dizendo ter sintomas semelhantes aos do TDAH, após ver posts sobre o assunto no TikTok e Instagram. “Conversei com ela que às vezes a gente é influenciado pelas redes, acaba tomando conclusões precipitadas e se rotulando”, conta. Resultado: as duas optaram por esperar um pouco mais para investigar a questão
Mas, após o término de um namoro e um período de aumento da ansiedade devido às provas na escola e ao repentino desemprego de Maciel, a mãe foi atrás de uma psiquiatra, que achou que a jovem poderia ter um TDAH leve e receitou um medicamento. Como a medicação não surtiu o efeito esperado, mãe e filha buscaram outra opinião profissional. Dessa vez, o psiquiatra disse não ver indícios para um diagnóstico do transtorno e que consideraria irresponsável avaliar o TDAH num momento em que a adolescente passava por uma tristeza e ansiedade fora do normal.
“Primeiro ele falou que teria que tratar essas questões para depois fazer uma avaliação de TDAH”, narra Maciel. “Ainda ressaltou o fato de que hoje as pessoas são muito influenciadas pelas redes e alguns profissionais acabam, por qualquer sintoma, enquadrando a pessoa dentro de um transtorno.”
Essa busca constante por informações sobre saúde mental pode até se tornar ela mesma fonte de ansiedade e estresse para esse adolescente, de acordo com Nabuco. “No fundo, é até saudável, mas procure sites referência e abordagens minimamente sérias, de acadêmicos”, indica. Seria, na visão do psicólogo, como ler todos os possíveis efeitos colaterais descritos na bula de um medicamento, algo que alguns médicos não recomendam.
O médico Fabiano Guimarães, diretor administrativo da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, no entanto, é contra a prática de muitos colegas de tentar limitar essa busca por informações.
“Em vez de questionar, o médico pode orientar uma procura melhor, mostrar os caminhos e como filtrar as informações mais importantes”, afirma Guimarães. “Existe uma busca no Google que te direciona para conteúdos mais garantidos de saúde, de associações com credibilidade. Quando um paciente chega com um monte de informações que encontrou na internet, tento ajudá-lo a filtrar.”
Em vez de questionar, o médico pode orientar uma procura melhor, mostrar os caminhos e como filtrar as informações mais importantes
Guimarães admite que alguns pacientes chegam a confrontae o que diz o especialista com informações que encontraram na internet ou nas redes. Porém, considera que isso acontece principalmente quando a prescrição é impositiva. “Se o profissional faz uma discussão do paciente, do que espera da doença, explica os riscos e porque está passando o remédio, esse tipo de embate costuma diminuir ou desaparecer.”
Na visão do profissional, ainda faltam no Brasil mecanismos para regular a publicação desse tipo de informação por parte dos conselhos de medicina. “Temos médicos oferecendo terapias completamente infundadas, num Instagram repleto de luxo e glamour. E muitas pessoas entram nessa onda”, descreve. Para o médico, uma forma de ficar alerta é buscar saber se há universidades ou outras instituições conhecidas dando aval àquela afirmação, evitando cair em informações falsas
Canais de diálogo
Para Maria Flor, hoje a internet vem jogando luz sobre transtornos historicamente estigmatizados, ajudando a popularizar esses temas. Porém, a diversidade de fontes e conteúdos também tem seus riscos. “Vi muitos vídeos no TikTok dizendo que, se você esquece compromissos ou perde o celular toda semana, então tem TDAH. Um autodiagnóstico baseado em coisas que todos nós fazemos”, reflete.
No caso da filha, considera que a abertura para o diálogo na família foi essencial, assim como o acolhimento dos pais durante todo o processo que levou ao diagnóstico. Outro ponto importante que aponta é sua participação em grupos online com outras mães e pais de jovens neurodivergentes.
“Tem mães perguntando se outras já passaram por tal situação, indicando fonoaudiólogo, artigos sobre o assunto, novos medicamentos. Me sinto muito mais segura trocando nesses grupos do que nas redes sociais”, conta Flor.
Nabuco reforça o impacto dessa abertura ao diálogo. “Tem até uma pesquisa de muitos anos atrás que dizia que uma refeição em família já era um fator protetivo para a saúde mental”, afirma. O psicólogo também considera que a busca dos jovens por informações reflete uma insegurança psicológica estrutural, com a internet como um recurso eternamente disponível. Por outro lado, o diálogo e a possibilidade de se expressar abertamente permite uma maior sintonia e conexão.
E, para quebrar as barreiras que muitos pais encontram na hora de conversar com filhos adolescentes, segundo Delboni, o importante é lembrar que eles ainda não são adultos. “Temos que usar recursos do próprio adolescente para dialogar com ele. Se a gente dialoga com uma criança através da brincadeira, com adolescente tem que ser um papo transparente, que nomeia sentimentos, transtornos, dificuldades e busca informações”, afirma.
Muitas vezes, para abrir esse canal, é preciso procurar fatores de identificação, como a música favorita do jovem, ou mesmo recorrer à memória para relatar vivências semelhantes, diz Delboni. “Se já passou por uma depressão nessa idade, conta algo que você viveu que seja parecido com a emoção desse adolescente.’ Assim, segundo a psicanalista, o jovem sente que não está sozinho, que alguém o compreende e acaba dando um voto de confiança.
Na visão de Delboni, esse voto é essencial para que o jovem se sinta validado e aquilo que sente, valorizado, em vez de tratado como drama. E, ao estabelecer esse diálogo, caso os sentimentos revelados pelo jovem se mostrem constantes e intensos, o caminho é conhecido. “Se achar que não é uma tristeza momentânea ou que ele tem tido crises de ansiedade, precisa procurar um psiquiatra que possa tratar essas dores psicoemocionais.”
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