Como comprar menos (e com mais consciência)? — Gama Revista
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Reportagem

Como comprar menos (e com mais consciência)?

Num mundo de ofertas cada vez mais convincentes, especialistas indicam por que compramos tanto e dão dicas para consumir de forma consciente

Leonardo Neiva 23 de Junho de 2024

Como comprar menos (e com mais consciência)?

Leonardo Neiva 23 de Junho de 2024
Isabela Durão

Num mundo de ofertas cada vez mais convincentes, especialistas indicam por que compramos tanto e dão dicas para consumir de forma consciente

Para comprar menos, remova os apps de lojas do seu celular, desative as notificações e saia de todos os grupos de promoção, sugere Gabriel Silva (@ogabrielmds), especialista em planejamento financeiro, no Instagram. “Não use cartão de crédito!”, exclama João (@ja.o), um pouco mais radical e enfático. Vários outros usuários também contam que já deixaram de seguir os perfis das lojas que mais curtem, para evitar cair em tentação.

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Essas são algumas das respostas que Gama recebeu num post que fez na rede, junto o perfil de educação financeira @graninhas, que ajuda os jovens a lidarem melhor com o dinheiro (veja dicas dos leitores em imagens ao longo do texto). A pergunta: Como dizer não para as compras online?

À primeira vista, a questão pode parecer retórica. Afinal, para dizer não às compras, basta não comprar, certo? Porém, o problema se torna muito mais complicado num mundo em que os estímulos a consumir estão para todo lado, de uma mera caminhada nas ruas ao post daquele influenciador que você adora. Às vezes, a impressão é de que não podemos nem fazer um simples comentário sobre um tema que nos interessa sem sermos bombardeados com mensagens, anúncios e promoções. Algumas delas, inclusive, atendendo a necessidades que nem sabíamos que tínhamos — talvez porque, em alguns casos, elas de fato não são reais.

Para o professor de psicologia e neurociência do consumo da ESPM Alexandre Michels Rodrigues, a palavra-chave para essa conta quase impossível de fechar é oportunidade. “Se no passado você tinha muito poucas referências de tipos e modelos de produtos, hoje essa gama é muito mais extensa. Além das necessidades, que também aumentaram”, aponta o especialista.

Outro termo importante, na visão de Rodrigues, é a facilidade. Facilidade de acesso, de pagamento… “Algo que você deixa em débito automático no cartão de crédito é praticamente invisível, você nem percebe aquele consumo.” Diferente do ato de pegar a carteira e tirar o dinheiro ou o cartão para pagar, ação que, por mais breve que seja, permite alguns segundos de reflexão. Portanto, para quem tem pouco domínio sobre as próprias prioridades, reforça o docente, tudo parece importante.

Se no passado você tinha muito poucas referências de tipos e modelos de produtos, hoje essa gama é muito mais extensa

Também entra nessa equação a proliferação de players gigantescos com ofertas para lá de atrativas, como as asiáticas Shein e Shopee — em que aproveitar uma oportunidade “imperdível” pode ficar acima da qualidade ou origem daqueles produtos.

Rodrigues levanta um outro tema antigo, mas que permanece atual: a obsolescência programada — a prática adotada por muitas empresas de fabricar e vender produtos com “prazo de validade”, que se tornam obsoletos rapidamente. Segundo o especialista, o método é movido pela necessidade humana por novidades, que vem desde os homens das cavernas. “Se você tinha uma lança melhor, um arco e flecha melhor, tecnologias mais refinadas, consequentemente tinha maior chance de competir. E essa mesma mentalidade nos traz até hoje, só que com demandas diferentes.”

O que nos leva à pressão social contemporânea por status e glórias que para muitos se resumem a desfilar por aí com um produto da última geração. “Mesmo que a gente possa ignorar esses estímulos quando são muito exagerados, ainda assim você precisa garantir a sua imagem diante das pessoas que te rodeiam”, reflete Rodrigues.

O ano sem Zara

A consultora de comunicação pessoal Fernanda Resende enxerga a jornada para evitar o consumismo como uma espécie de batalha entre nossas questões internas e uma série de pressões que vêm de fora. “A gente podia inverter essa ordem e olhar mais para dentro, ter alguma clareza de quem que a gente é, do que quer, e daí tentar desenvolver uma força individual para furar a onda do sistema ao redor”, declara Resende.

Na visão da especialista, autora de livros sobre moda sem consumismo, como “Substitua Consumo por Autoestima” (Paralela, 2019), hoje o fenômeno do consumo em excesso não se limita só à moda, mas a uma gama de experiências que vai de festivais de música a viagens, dentre as quais acabamos por não nos aprofundar em nenhuma.

Se antes eram as publicações de moda que buscavam ditar e pasteurizar tendências, indo no sentido contrário da construção de pluralidares, Resende acredita que hoje esse lugar é ocupado pelo consumo e a produção incessante de informações, em que nós também somos colocados numa prateleira. “Hoje somos pressionados a nos disponibilizar como creators, influencers, esses nomes em inglês que fazem a gente parecer mais erudito”, indica a consultora. “E aí a gente começa a posar de uma certa forma, a querer parecer que tudo está sob controle.” Um spoiler: quase nunca está.

A publicitária e produtora de conteúdo Joanna Moura admite que, quando começou a se preocupar com o volume excessivo de coisas que comprava, não foi por ter criado uma consciência sobre os malefícios do consumismo. Sua preocupação na época era bem prática: queria poupar e melhorar sua vida financeira.

O relato que fez sobre esse impulso virou o blog Um Ano Sem Zara, que criou em 2011 e fez grande sucesso nas redes. Mais recentemente, ela recontou no livro “E Se Eu Parasse de Comprar?” (HarperCollins, 2021) sua jornada ao longo de um ano em que não adquiriu uma única peça de roupa sequer.

A Gama, ela afirma que a consciência sobre questões inerentes ao consumo contemporâneo, como o impacto no meio ambiente e a exploração do trabalho, vieram ao longo do tempo. “No ano em que eu fiquei sem comprar, foi a primeira vez que ouvi falar de um grande escândalo relacionado à fast fashion, com a Zara envolvida num caso de trabalho análogo à escravidão”, conta a publicitária. “E foi um grande abrir de olhos para mim, porque eu consumia de uma maneira muito inconsciente em todos os sentidos.”

A professora e pesquisadora de sociologia do consumo na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Fátima Portilho, acredita que, mesmo incluindo os mais consumistas, somos todos híbridos: às vezes compramos por necessidade, às vezes por puro impulso. Por isso, ela busca quebrar a visão do consumo sempre como algo negativo.

“Consumo também é trabalho. A maior parte daquilo que a gente consome não é prazeroso, mas para suprir as necessidades da casa”, aponta a pesquisadora, para quem a atividade acaba entrando no rol de trabalhos invisíveis feitos por muitas mulheres.

A professora Flávia Galindo, também da UFRRJ, vai pela mesma linha. Ela enfatiza que o que impacta mais a nossa vida em termos de sustentabilidade não é o consumismo em si — que, segundo ela, ocupa uma porcentagem pequena das compras —, mas como consumimos recursos essenciais como alimentos e água. E a especialista destaca ainda que, embora boa parte das pesquisas mostre que há uma preocupação geral de consumir de forma mais sustentável, muitas vezes isso fica apenas na intenção.

“Outros pesquisadores já dizem que a intenção nem sempre é relevante. A pessoa pode até querer ter uma prática sustentável, mas o comportamento não acompanha”, explica Galindo. E isso não só por culpa do indivíduo. Muitas vezes, segundo ela, o governo não oferece a infraestrutura necessária. “Eu moro em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Já falei mil vezes que seria legal se a gente pudesse adotar a coleta coletiva, mas o meu bairro não tem esse serviço. Então, por mais que meu prédio queira adotar a prática, falta um ator fundamental, que é o Estado”, conta.

Hoje à frente do marketing de uma marca de decoração londrina, Moura busca conscientizar seu público sobre consumo consciente e outros temas em suas redes e na coluna semanal que mantém na Folha. Ela considera que teve sorte por ter se proposto esse desafio numa época em que as compras não estavam a apenas um clique de distância. “Naquela primeira fase, a única coisa que eu tinha que fazer era ficar longe de um shopping”, lembra.

Hoje, não sabe se conseguiria lidar com o “bombardeio de estímulos de consumo, disfarçados até na roupa que uma influencer usa. E o caminho para a compra está muito facilitado. A gente pode estar no trabalho, numa reunião chata, e ali no telefone comprando. Então realmente é muito difícil”, conclui.

A mente consumista

Muitas vezes essas comodidades nos levam a usar as compras como mecanismo de recompensa, para aliviar a ansiedade ou ocupar a mente após um dia de trabalho estressante. Trata-se de uma forma natural do cérebro lidar com tarefas e situações que não nos agradam, aponta o professor de psicologia do consumo da ESPM Alexandre Michels Rodrigues.

“O cérebro encontra uma razão para você voltar a um trabalho do qual não gosta, porque tem como consequência essa recompensa”, exemplifica. A lógica ativa o mesmo neurotransmissor que o uso de uma droga, continua o docente. Por isso a compulsão por comprar pode ser equiparada a um vício.

E, quando você acaba comprando um produto do qual nem precisava tanto numa promoção aparentemente imperdível, o problema não é só sua falta de força de vontade. Rodrigues explica que o funcionamento da nossa mente tem origem centenas de milhares de anos atrás, numa realidade completamente diferente da nossa. Ali, não aproveitar uma oportunidade única podia ser caso de vida ou morte.

É nesses momentos que nosso cérebro se enche de dopamina — um dos hormônios da felicidade —, bloqueando momentaneamente nossa capacidade de raciocinar. Quando a dopamina baixa novamente, talvez a temida compra já tenha sido feita. “Aí vem a racionalização pós-compra”, acrescenta o especialista. É aí que “você começa a justificar o porquê de comprar algo que não deveria ou que não tinha necessidade.”

Um dos grandes problemas desses mecanismos compensatórios é que eles raramente trazem resultados lógicos. Em especial quando têm origem em questões emocionais, aponta Resende. “É como se você quisesse fazer um chapéu de palha, mas comprasse uma banana. São campos completamente diferentes, o emocional e o material”, afirma.

Segundo ela, nas redes pode ser até mais difícil identificar qual caminho te levou a fazer uma compra. “Você está rodando o feed do Instagram, vê a sobrinha de uma amiga, um crush, alguns gatinhos, e de repente já sacou uma fita métrica e mediu o tamanho da sua sala para um tapete que vai comprar.” Realidade que também tem a ver com o apagamento das fronteiras entre o online e o offline nas nossas vidas, diz a consultora.

Numa coluna recente, Moura lidou com outro aspecto dessa frequente falta de lógica na forma como consumimos. O texto traz à tona o termo “doom spending”, algo semelhante a gastar pelo fim do mundo. Em resumo, é a forma como o estresse gerado por catástrofes naturais, políticas ou sociais nos leva a comprar ainda mais para lidar com nossos sentimentos, com potencial de agravar algumas dessas mesmas questões. “Esses dois movimentos, aparentemente conflitantes, acabam se auto alimentando”, aponta a publicitária.

Como comprar menos?

Mas Moura também destaca tendências recentes mais positivas, como o fato de muitos jovens passarem a valorizar a experiência presencial, com novas lojas e tipos de atendimento físicos surgindo. “Então tem um contramovimento também, especialmente depois da pandemia, com um consumidor que quer voltar para o que tínhamos antes.”

Sabendo de tudo isso, como lidar melhor com esse impulso de comprar, se as armadilhas estão para todo lado? A conversa com Resende, por exemplo, enveredou para o assunto “gasto com pets” e por pouco não levou este repórter a adquirir um apetrecho para alimentar gatos, quase tão vistoso quanto inútil — preferi não citá-lo aqui para não gerar impulso semelhante nos leitores.

Numa visão realista, a consultora não crê que seremos capazes de vencer a propaganda ou as estruturas de consumo tão cedo. Portanto, sugere estar mais atento a si mesmo e às próprias necessidades, cuidar das relações pessoais e dos prazeres cotidianos de forma mais profunda. E também entender o que é preciso cuidar na própria vida e as necessidades que, de vez em quando, até podem ser supridas com compras. “Eventualmente o algoritmo traz uns negocinhos que são maneiros da gente ter”, brinca.

Hoje existe um entendimento maior sobre a necessidade de endereçar essas questões de forma estrutural, cobrando que governos e entidades privadas, grandes marcas e corporações proponham soluções

Um método prático que ela indica para treinar o cérebro é, na hora em que bate aquela vontade irrefreável de consumir, começar a listar palavras e ideias que definem você, sua trajetória e seus desejos, para construir a vida que gostaria de ter. Pode até colar essas listas em lugares vísiveis, no guarda-roupa, perto do computador ou, sendo mais ousado, no cartão de crédito.

Entender o que te move é essencial para fazer escolhas melhores, mais conscientes e ter uma existência minimalista, segundo Rodrigues. Então, se seu sonho é viajar a Paris, na mesma lógica das listas de palavras, botar uma imagem da Torre Eiffel no seu quarto também pode ajudar. Organizar uma lista de consumo no Excel dá algum trabalho, mas o resultado pode ser relevante: um controle mais detalhado dos gastos e das compras para entender como você vem usando seu dinheiro. “Por exemplo, se já comprou o suficiente, a célula vai ficar vermelha, dando uma dica de que você está gastando demais no que não precisa”, aponta o especialista.

De acordo com Rodrigues, até aquela velha técnica de congelar o cartão de crédito pode ter seus méritos — embora, num mundo digital, sua aplicação prática seja bem mais difícil. Ela te permitia, no tempo que levava para descongelar, pensar bem na escolha que estava fazendo. Outra alternativa na mesma linha foi enviada a Gama no Instagram: ir salvando os links de produtos que te interessam para comprar depois. Assim, diz @manuquerino, você se reserva um tempo importante para refletir se vale a pena levar a compra adiante.

Para a professora Fátima Portilho, vem acontecendo uma politização do consumo, um processo em que alguns usuários buscam cada vez mais pensar além do preço. Assim, consumir passa a abarcar questões como o impacto ambiental e social de determinado produto, comprar de pequenos produtores, usar embalagens que impactem menos o meio ambiente etc. E a tendência, por mais que possa parecer pequena, indica uma politização e ativismo também em outros aspectos da vida desses consumidores, aponta a especialista.

Não é um processo perfeito para quase ninguém, já que ele corre em paralelo com compras baratas e de origem potencialmente problemática, segundo Portilho, como evidenciado pelo sucesso das gigantes da fast fashion. Além disso, entram inevitavelmente na equação a questão do acesso, dos gostos pessoais e, em muitos casos, da falta de dados suficientes sobre as marcas. “Precisaria de muita informação para saber quais empresas são corretas e quais não. E é impossível na vida social a gente ter o nível de racionalidade que isso exigiria”, afirma.

Ao mesmo tempo, Moura afirma que pode ser ingênuo tentar abarcar o problema universal do consumismo de um ponto de vista puramente individual. “Hoje existe um entendimento maior sobre a necessidade de endereçar essas questões de forma estrutural, cobrando que governos e entidades privadas, grandes marcas e corporações proponham soluções.”

Ela também é contra colocar barreiras para o fast fashion ou esperar que todos consumam apenas produtos sustentáveis, de preços maiores, o que poderia excluir os mais pobres. O que precisa acontecer, na opinião da publicitária, é uma maior conscientização sobre o que se está comprando, tanto em termos de necessidades pessoais quanto em relação ao impacto que aquela marca tem no mundo.

“Vai das perguntas mais básicas — eu realmente preciso disso? — até as mais filosóficas, à medida que a gente vai sofisticando nossa maneira de comprar. Mas eu compartilho dos ideais dessa empresa? É uma marca em que eu quero investir? Porque, quando a gente coloca o dinheiro ali, está dando nosso aval para uma marca e contribuindo para o crescimento dela”, reflete Moura.

A publicitária enxerga movimentos de nicho crescendo, como o minimalismo ou os questionamentos à fast fashion, mas ainda vê países como o Brasil num momento de expansão do consumo. Até por isso, considera que a hora é ideal para começar a ampliar essa conscientização. Caso contrário, só recorrendo a algumas das dicas mais extremas enviadas a Gama. “Jogar o celular pela janela”, como sugere @nomenuvem. Ou apelar para a dureza nossa de cada dia. Afinal, é “só não ter dinheiro pra comprar que fica fácil dizer não”, resume @lelamagal.