Movimento global luta contra danos causados pelas viagens de avião e prega formas alternativas de transporte para conter impacto no meio ambiente
Ainda que uma grande parcela da população nunca tenha voado na vida, o número de pessoas que entram em ao menos um avião durante o ano cresceu com força nas últimas décadas. Segundo dados da Organização da Aviação Civil Internacional (Oaci), essa quantidade quase dobrou entre os anos de 2008 e 2018, chegando a 4,37 bilhões de passageiros. E a expectativa era que crescesse ainda mais nas décadas seguintes, ao menos até a pandemia tornar incertos os rumos do setor daqui para frente.
Esse crescimento constante , no entanto, não veio apenas como uma notícia positiva para o setor e o turismo como um todo. Mais voos significam um uso muito maior de combustível e, consequentemente, mais gás carbônico (CO2) liberado na atmosfera — uma péssima notícia para o meio ambiente.
Esse fator há algum tempo vem chamando a atenção de ativistas e ambientalistas de todo o mundo, que pensam em formas de atenuar esse impacto. E motivou a criação de um movimento que está ganhando adeptos, principalmente na Europa: o no-fly movement. Ou, em bom português, o movimento sem voo, que prega formas alternativas — e menos prejudiciais — de viajar.
A aviação é responsável hoje por 5,9% da cota do aquecimento global provocada pelo homem
Hoje, a aviação é responsável por 5,9% da cota do aquecimento global provocada pelo homem, de acordo com dados da organização Stay Grounded, rede que reúne mais de 160 iniciativas pelo mundo que advogam contra viagens de avião. Isso levando em conta que mais de 80% da população mundial nunca colocou os pés dentro de um avião.
E o impacto negativo não para por aí, enfatiza a cofundadora da organização, Magdalena Heuwieser. “Um exemplo é Porto Alegre, onde comunidades pobres foram removidas para uma extensão de pista. Especialmente na Ásia e na América Latina, o boom na construção de aeroportos (pausado momentaneamento pela covid-19) é extremo, e frequentemente comunidades locais e ecossistemas sensíveis acabam sendo afetados.”
O enigma do transporte
Há um bom motivo para explicar por que você talvez nunca tenha ouvido falar do movimento contra as viagens de avião: ele simplesmente é muito mais fraco no Brasil do que na Europa ou nos Estados Unidos. Para começar, explica o analista de projetos do Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente) Felipe Barcellos, pela disparidade financeira, nós brasileiros viajamos proporcionalmente muito menos de avião do que alguns dos lugares citados. Além disso, segundo ele, por aqui os aviões representam só 0,5% do gás carbônico gerado no país, responsável pelo efeito estufa — num contexto global, esse número salta para 2,5%.
Há experimentos que usam óleo de cozinha e prometem reduzir drasticamente a emissão de CO2, mas ainda longe de aplicação em larga escala no setor aéreo
No país, os campeões da poluição são o desmatamento e os automóveis, de longe o principal meio de transporte utilizado pelos brasileiros. “No Brasil, faltam alternativas de meios de transporte rápidos para longas distâncias. Carros, ônibus ou caminhões de carga são menos eficientes e ainda consomem muito combustível”, aponta Barcellos.
Para efeito de comparação, boa parte do ativismo europeu contra o uso de aviões defende como alternativa a enorme malha ferroviária que existe no continente, um transporte muito menos poluente e mais ágil que os automóveis. Por aqui, essa ainda é uma possibilidade distante. A falta de viagens de trem, o sucateamento das ferrovias e as lacunas em investimentos ainda são problemas que impedem o avanço do setor no país, apesar de alguns projetos recentes que tentam mudar essa realidade.
Por outro lado, há sim uma vantagem do uso de carros no lugar de aviões: as opções de combustíveis alternativos, como etanol e biodiesel, são muito mais diversificadas. Embora haja experimentos sendo realizados com o SAF, sigla em inglês para combustível de aviação sustentável, feito com óleo de cozinha e que promete reduzir drasticamente a emissão de CO2, o setor aéreo ainda está longe de uma aplicação em larga escala. “No Brasil e no mundo inteiro, as pesquisas são muito incipientes”, diz o representante do Iema.
Rastro de vergonha no ar
Em 2019, a jovem ativista sueca Greta Thunberg, então uma adolescente de 16 anos, cruzou o oceano Atlântico num veleiro, dos Estados Unidos à capital portuguesa Lisboa. A meta era chegar a tempo para a abertura da COP 25, a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. Em vez de algumas horas num desconfortável assento de avião, a viagem acabou levando três semanas. Isso porque não se tratava apenas de uma viagem, mas de uma importante declaração — e um alerta contra o impacto da aviação sobre o meio ambiente.
Um avião com 88 passageiros emite 285 gramas de dióxido de carbono per capita por quilômetro. Um trem com 150 tripulantes, cerca de 14 gramas
A nacionalidade da jovem ativista ambiental não entra na equação por acaso. Foi na Suécia que se cunhou a expressão “flygskam”, feita para descrever a vergonha de voar que muita gente vem sentindo nos últimos anos. A própria mãe de Greta, a cantora sueca Malena Ernman, declara não pisar num avião desde 2016 devido aos impactos da aviação na crise climática.
E a preocupação, ao que parece, não é infundada. Segundo um estudo da Agência Ambiental Europeia, um avião carregando 88 passageiros emite 285 gramas de dióxido de carbono por passageiro a cada quilômetro viajado. Por outro lado, um trem com 150 tripulantes produz somente cerca de 14 gramas.
REUTERS/Rafael Marchante
Eita trem bão
Devido aos riscos da covid-19, a ativista sueca Susanna Elfors foi obrigada a conseguir um carro para se deslocar. Ainda assim, se recusou a comprar um. Em vez disso, preferiu alugá-lo durante todo o período da pandemia. Hoje, ela aguarda ansiosamente para retornar à sua rotina usual, em que dá preferência ao uso de trem, bicicleta e meios de transporte públicos, como metrô e ônibus.
“Tomei consciência dos riscos das viagens de avião há mais de dez anos. Na época, fiz um PhD no Instituto Real de Tecnologia da Suécia, onde entrei em contato com pesquisadores que estavam estudando o impacto ambiental dos meios de transporte”, conta Susanna a Gama.
Desde 2014, ela mantém no Facebook o grupo Tågsemester — que pode ser traduzido do sueco como “feriado de trem” —, hoje com 116 mil membros. O objetivo, um tanto autoexplicativo, é inspirar seus membros a dar preferência às ferrovias em vez do avião ao viajar nos seus dias de folga. Hoje, os membros também aproveitam o espaço para contar detalhes sobre suas viagens, compartilhar imagens ensolaradas e pedir dicas sobre os melhores caminhos para se tomar.
Segundo a ativista, há indicações de que o público sueco está se tornando mais consciente. Em 2019, antes da pandemia, ela conta que as vendas de passagens de trem triplicaram no país, enquanto os voos domésticos caíram. A meta de seu ativismo, Susanna diz, é levar as pessoas que hoje sentem vergonha de entrar num avião a se gabarem de andar de trem. “Outra forma de reduzir nossa emissão de carbono em família é não ter filhos. Infelizmente, eu já tenho dois”, brinca.
Boicote pandêmico
Com inúmeras fronteiras fechadas e um controle rigoroso da entrada de estrangeiros em boa parte do mundo, é possível dizer que a pandemia, especialmente em seus primeiros meses, serviu como teste para um mundo sem viagens de avião. No Brasil, houve uma queda de 59,6% no faturamento do setor aéreo na comparação com o período anterior à pandemia, apontam dados da FecomercioSP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo).
A pandemia serviu como teste para um mundo sem viagens de avião. No Brasil, as aéreas perderam 59,6% no faturamento, diz a FecomercioSP
“A longo prazo, o futuro do setor é um mistério”, declara Felipe Barcellos, do Iema. Uma das possibilidades aventadas pelas aéreas, diz o especialista, é uma redução drástica das viagens de negócios, com o avanço do home office e das reuniões por videoconferência durante o período da pandemia. Outra seria uma queda permanente no turismo internacional, em detrimento de viagens domésticas.
Para Magdalena, da Stay Grounded, no entanto, “a janela para uma mudança real está se fechando rapidamente com o fim da pandemia à vista”. Se, por um lado, há a questão das alterações climáticas, a possibilidade de uma nova disseminação do vírus também preocupa. “Sem mudanças estruturais que incentivem as pessoas a não pegar os voos que perderam no ano passado, temo que haja um grande recrudescimento das viagens aéreas.”
Um discurso perigoso
Mas isso tudo significa que combater as viagens de avião é a melhor forma de conter emissões de carbono no mundo? Na opinião da pesquisadora de ecoturismo e sustentabilidade Laura Sinay, a resposta é não. O impacto da aviação é pálido se comparado aos danos causados pelo setor de energia elétrica, a agricultura e a indústria. Eles são responsáveis por 70% da emissão de gases de efeito estufa, segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, aponta a especialista, que é pós-doutora em sustentabilidade pela Universidade da Sunshine Costa, na Austrália, e idealizadora do primeiro mestrado em ecoturismo do Brasil, na Unirio.
Para Sinay, as consequências positivas da aviação em relação ao turismo e ao contato com novos ambientes e povos suplantam os impactos negativos. “É preciso acabar com o consumo desnecessário, reduzir o desmatamento na Amazônia e criar leis que proíbam o uso exagerado de embalagens. Isso de fato tem impacto nas mudanças climáticas e é muito melhor que ideias mirabolantes e difíceis de implementar.”
No caso brasileiro, a pesquisadora destaca a falta de opções, com o transporte viário ainda padecendo das más condições das estradas, da violência, de distâncias impraticáveis e do fato de que a poluição produzida pelos carros não é assim tão menor. Para ela, o principal investimento a ser feito no turismo brasileiro hoje é na formação de profissionais especializados em ecoturismo, uma área ainda deficiente no país e que vem criando barreiras para a atividade.
“Você vai humilhar alguém porque pegou um avião? Moro na Austrália, e minha família no Brasil e Argentina. Vou visitá-los de barco? Não tenho três meses livres para atravessar o oceano”, declara Sinay. A preocupação com o consumo desenfreado, segundo ela, deveria vir primeiro. “Discursos como o do no-fly movement são perigosos, porque acabam tirando o foco do que realmente importa.”
O que fez o setor?
Mas as reinvindicações de quem quer manter-se em solo têm dado algum retorno. Em resposta ao movimento, a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) vem monitorando desde 2019 o volume anual de CO2 emitido pelo Brasil no transporte aéreo internacional. A cada três anos, o país também submete à Organização da Aviação Civil Internacional (Oaci) um plano para a redução de suas emissões, incluindo os investimentos em combustíveis sustentáveis e as medidas tomadas para combater a poluição em aeroportos nacionais.
A crise climática é uma ameaça à existência. Se queremos evitar um colapso, é preciso fazer algo, ainda que seja voar muito menos do que hoje [em níveis pré-pandemia]
Iniciado em 2016 pela Organização Internacional de Aviação Civil, o Esquema de Compensação e Redução de Carbono para a Aviação Internacional tem buscado neutralizar as emissões de CO2 por aviões no mundo, por meio da compra compensatória de créditos de carbono.
Para a representante do Stay Grounded, no entanto, medidas como essas são um passo importante, mas estão longe de ser suficientes, especialmente quando o setor voltar aos níveis pré-pandemia. “Na América Latina, ônibus de longa distância são muito mais comuns e confortáveis do que na Europa. Então, ainda que não exista uma infraestrutura ferroviária, há alternativas”, afirma Magdalena. “A crise climática é uma ameaça à existência humana. Se queremos evitar um colapso, é preciso fazer algo, ainda que isso signifique voar muito menos do que hoje [em níveis pré-pandemia].”