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ConversasRaphael Montes: “Ao tratar de violência você consegue tratar da sociedade”
Best-seller de livros de suspense e terror e coautor de “Bom dia Verônica”, carioca fala de cancelamento, lugar de fala e de seu processo de inventar histórias assustadoramente viciantes
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Raphael Montes: “Ao tratar de violência você consegue tratar da sociedade”
Best-seller de livros de suspense e terror e coautor de “Bom dia Verônica”, carioca fala de cancelamento, lugar de fala e de seu processo de inventar histórias assustadoramente viciantes
Escrever, para Raphael Montes, 32, depende de escolher um tema que o interesse, ter uma boa história para contar, definir o formato — livro, filme, série — e um motivo para gastar horas e horas nesse projeto. Quando o carioca tem essas respostas, além da pesquisa e do trabalho de texto, acrescenta um pouco de excesso “latino-almodovariano”, como ele mesmo caracteriza seu estilo, que faz com que a narrativa ultrapasse um pouco a realidade. Montes prefere não descrever muito os personagens em seus livros, na medida que sobre espaço para o leitor dar o contorno que preferir. O foco é fazer seus leitores entrarem fundo nas suas criações, sem aquela paradinha para checar o celular.
Essas características aparecem em seus seis livros, que o fizeram um escritor best-seller e premiado. O título de maior sucesso, “Dias Perfeitos” (Companhia das Letras, 2014), é um suspense que trata de um homem paranoico e obcecado por uma mulher que a sequestra e, em determinado momento, chega a enfiá-la em uma mala rosa. O livro foi traduzido para 22 países. Em “Jantar Secreto” (Companhia das Letras, 2016), o autor traz uma história de canibalismo e crítica social. Ambos devem virar filme.
Na TV e no cinema, Montes é roteirista e produtor-executivo de “Bom dia, Verônica”, série da Netflix baseada no livro homônimo que ele lançou com a escritora e criminóloga Ilana Casoy. A dupla também assina o roteiro dos três filmes que tratam do caso de Susane Von Richthofen, sendo o mais recente “A Meninaque Matou os Pais: A Confissão”, disponível a partir de 27 de outubro no Prime Video. Em “Uma Família Feliz”, thriller sem data de estreia que tem Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini no elenco, o carioca assina como roteirista e diretor-assistente ao lado do diretor José Eduardo Belmonte. A trama apresenta a história de uma mulher que é acusada de machucar as filhas, em um roteiro que inclui temas como o machismo, o cancelamento e a depressão pós-parto.
Sobre trazer muitos assuntos sensíveis, relacionados à violências que as mulheres sofrem, ele diz acreditar na liberdade do escritor e em um trabalho embasado. “Como autor valorizo muito a liberdade de poder vestir e ser o personagem que eu quiser. A questão é que junto com a liberdade hoje, ainda bem, justamente pelo lugar de fala, vem também a responsabilidade”, diz na entrevista que você lê a seguir.
Como autor valorizo muito a liberdade de poder vestir e ser o personagem que eu quiser
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G |Quando você pensou que o tema do cancelamento poderia estar em um thriller, caso de “Uma Família Feliz”?
Raphael Montes |Sempre gostei de histórias policiais porque acredito que, ao tratar de violência, você consegue tratar da sociedade. Até a literatura policial por muito tempo marcou a identidade de alguns lugares. A gente tem uma imaginário de Nova York muito por causa de filmes, de séries e dos livros policiais. O imaginário de Londres também pelo Sherlock Holmes e assim vai. A minha chave para inventar histórias é sempre encontrar o que estou falando, discutindo e provocando. O cancelamento sem dúvida é um dos temas que me interessa muito. E esse tema, na verdade, vem na metade da história. A primeira parte é sobre o machismo silencioso. Como a personagem [vivida por Grazi Massafera] acredita viver uma vida perfeita, com um marido perfeito [Reynaldo Gianecchini] mas sem entender que ela está tendo que dar conta de tudo e que se cobra por isso. As vizinhas comentam que ela não está tão arrumada, e o marido também reclama de maneira passivo-agressiva como ela não está dando conta da casa, e que ele já faz a parte dele, afinal de contas. Tem também a questão da depressão pós-parto no filme, mas o que me interessa mais é o machismo velado.
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G |Você tem livros, uma série e agora esse novo filme centrados em temáticas que envolvem o sofrimento da mulher — depressão pós-parto, violência doméstica, relacionamento abusivo, etc. Em um momento em que se fala tanto de lugar de fala, por que escolheu esses temas? Como se preparou para escrever sobre eles?
RM |Eu sou um escritor e como escritor sinto que tem uma empatia e um interesse, mesmo imaginário, pelo universo feminino. Falando de “Uma Família Feliz”, quando eu tive a ideia do filme, há uns oito anos, algumas amigas engravidaram e aí ouvindo as experiências de depressão pós-parto eu pensei “gente, como é que ninguém fala sobre isso?”. Então os temas vão chegando a mim por amigos, pessoas com quem eu converso. Acho que a questão do lugar de fala é absolutamente essencial e importante. O que é o lugar de fala? É você dar voz à pessoas que não tinham voz para narrar histórias que elas viveram. Mas perceba, pra mim a ideia do autor, da pessoa que conta histórias, é justamente assumir papéis que não são os seus. Eu posso me vestir de vários personagens. Como autor valorizo muito a liberdade de poder vestir e ser o personagem que eu quiser. A questão é que junto com a liberdade hoje, ainda bem, justamente pelo lugar de fala, vem também a responsabilidade. Ao tratar desses temas você tem que se embasar bem, tem que se cercar das pessoas certas. Para tratar desses temas tão frágeis eu pesquiso bastante, trago pessoas que têm essa vivência para contar a história para mim, para ler. No caso da literatura a gente tem leitores sensíveis que leem e discutem esses assuntos. Acho que o importante é você se cercar e se armar de responsabilidade, de informação para poder contar as histórias com segurança de modo que, eventualmente no caso de críticas, e as críticas existem, você fale “pois bem, fiz um trabalho criativo e bem preparado”.
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G |No “Uma Família Feliz” são dois diretores homens falando de temas sensíveis como a depressão pós-parto. O que a Grazi Massafera, que interpreta a personagem principal, trouxe para esse entendimento de como isso se dá de fato?
RM |Trouxe muito porque a Grazi, junto com Belmonte, é a única que está no projeto desde o nascimento dele. Ou seja, há oito anos, quando eu e o Belmonte conversando sobre essa história ele falou que queria muito trabalhar com a Grazi novamente. Ele mandou o argumento e ela entrou no projeto. Então há oito anos nós temos essa tríade – Grazi, Belmonte e eu — e também a produtora, que é a Juliana Funabi. E aí eu escrevia o roteiro e mandava pra Grazi. Ela me voltava com notas e conversava, me contava coisas pessoais, da gravidez e da experiência dela como mãe. Porque de algum modo a Grazi também trazia um conceito que me interessa muito numa família feliz, e aliás é algo que está presente em várias coisas que eu escrevo, que é a ideia do jogo de aparências, do que você mostra e do que você realmente é. E a Grazi é essa pessoa que vem de uma origem humilde, cresceu na vida e virou uma estrela e aparentemente tem uma vida perfeita. E claro que não, ninguém tem uma vida perfeita, todos temos questões. Então esse jogo está até no próprio título. Tem essa imagem perfeita que na verdade não se confirma quando você investiga um pouquinho mais a fundo.
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G |Desde que seus livros começaram a ser adaptados para o cinema seu jeito de escrever literatura mudou de alguma maneira?
RM |O meu esforço quando vou escrever literatura é justamente o contrário. Hoje eu me pergunto: por que estou fazendo um livro? Há que ter para mim algo de intrinsecamente literário na maneira que estou contando, não necessariamente na história, porque senão poderia ser um filme. É engraçado que, quando as pessoas leem o meu livro falam que enxergaram um filme. Eu acho isso bem elogioso, mas ao mesmo tempo os livros têm algo que os fazem ser livros e não filmes. Aquela ideia tem que ser um livro porque a literatura permite algumas coisas, ela tem uma espécie de cumplicidade entre quem escreve e o leitor. Ou seja, eu provavelmente não descrevo tanto meus personagens. Quero que você imagine e use as suas referências. No audiovisual essa informação de algum modo é mais imposta. “Dias Perfeitos”, que agora vai ser adaptado para o cinema [ainda sem data], por mais visual que seja ele tem algo de muito literário: um narrador que entra na cabeça do personagem, em terceira pessoa. O grande desafio da adaptação é justamente como é que você traz a cabeça desse personagem, desse narrador, para o filme.
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G |Quando seus livros começaram a ser traduzidos, chamou sua atenção algum tipo de retorno ou alguma adaptação que você teve que fazer?
RM |O “Dias Perfeitos”, e quase todos os meus livros, têm um tom que é um pouco acima do realismo. Ou seja, eu faço um policial que não é exatamente realista, tem um quê de exagerado, tem um quê latino, ao meu ver almodovariano. Foi a chave que eu achei para contar as histórias policiais do Brasil. “Dias Perfeitos” tem situações um tanto exageradas, é a história de um amor obsessivo, de um sujeito que sequestra uma mulher amada e ele a coloca dentro de uma mala cor-de-rosa. Então é uma imagem forte e claramente exagerada, eles vão para um hotel em que os donos são uma família de anões. Tem um quê meio surreal e quando foi traduzido eu achei que as questões viriam dessas coisas que estão um tom acima. Em uma palestra que fiz em Amsterdã, onde o livro foi lançado, um leitor levantou a mão e disse “eu adorei seu livro. Só tem uma coisa que eu não comprei… quando eles são parados numa blitz o cara pega 200 reais, dá para o policial e é liberado. Isso não existe”. Então o que ele questionou foi justamente a corrupção policial. Para ele não faz o menor sentido ser tão fácil se livrar de uma blitz.
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G |Somos um país com muitas questões relacionadas à violência. Quando você escreve seus livros, que muitas vezes trazem essa realidade, você pensa em debater esse tema?
RM |Com o “Dias Perfeitos”, por exemplo, eu queria muito tratar de machismo. Observando algumas relações que eram tóxicas, eu queria contar uma história que levasse isso ao exagero de um sujeito que acredita que pode transformar uma mulher na mulher que ele quer. Eu acho legal porque esse livro é muito adotado nas escolas do ensino médio. E a quantidade de meninas que me procuram e falam “cara, eu tinha um namoro e depois eu vi que ele era o personagem do livro”. Então ela encontra um símbolo na ficção de algo que ela sente mas não consegue colocar em palavras.
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G |Este ano você lançou “A mágica mortal: Uma aventura do Esquadrão Zero” (Ed. Seguinte), que é um livro juvenil. Da onde vem esse interesse das crianças e dos adolescentes pelo terror, pela história de suspense?
RM |Acho que a literatura em geral nos permite viver coisas que nunca vivemos, nos leva a experiências que a gente nunca teve. No geral a dramaturgia também. Os personagens vivem situações dramáticas que nós não enfrentamos e a gente passa a ganhar bagagem emocional pra entender coisas do mundo. Comecei a gostar de ler muito por causa dos livros juvenis, da coleção Vagalume, dos livros de Pedro Bandeira. Sempre quis fazer uma história nesse universo. Então “A Mágica Mortal” é diferente de todos os meus outros e tem muito como objetivo chegar nesse público mais jovem, a partir dos dez anos, para mostrar que ler pode ser legal, ler não tem que ser chato, pode ser divertido, pode ser funny e pode ser tão legal quanto ver uma série do Netflix.
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G |A gente tem visto uma produção independente de filmes de terror cada vez maior no youtube de nomes que acabam entrando para o mainstream. Você vê algo semelhante na literatura?
RM |Na literatura eu brinco que explodir um avião é de graça. Custa uma linha só. Já no cinema, se no roteiro você escreve que um monstro destruiu a casa o produtor te liga e pergunta “precisa destruir a casa inteira ou você quer só as vidraças da frente?”. Então na literatura eu não percebo esse movimento, o que existe cada vez mais é uma proliferação de autores que publicam da maneira que conseguem. As editoras tradicionais não são suficientes para a produção nacional de literatura de terror e por isso tem uma galera publicando, dando um jeito de colocar na internet, de começar com o e-book e depois ir para o livro físico. Uma coisa que acho interessante é que cada vez mais o leitor brasileiro está descobrindo o prazer de ler histórias nacionais. Quando eu comecei a publicar, há dez anos, me diziam que literatura policial brasileira não vendia no Brasil; que a estrangeira sim, todos esses gringos o pessoal gosta de ler. E eu senti isso no início e conforme fui publicando fui percebendo que cada vez mais o preconceito ia caindo.
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G |Seus livros são falados por muitos “BookTokers”, a nova mania do Tik Tok relacionada a esse mercado. Como as redes sociais te ajudam a vender mais?
RM |Esses canais ajudam muito. Eu tenho uma brincadeira com meus leitores em que eu falo “espalha a palavra”. Meus livros vendem muito de gente indicando. É no boca a boca porque eu faço livros com muitas viradas, eles sempre têm finais surpreendentes. Então as pessoas que terminam de ler querem conversar com alguém… Mas desde o começo escrevo histórias que eu quero que cheguem ao público. E é por isso que gosto também do audiovisual, porque chega num público ainda maior. Quando comecei a publicar, as redes sociais estavam começando, só tinha Facebook e os leitores passaram a entrar em contato comigo e eu achava legal. Então eu passei a ter muito contato com eles nas redes, principalmente no Instagram, até hoje. Mas uma bela hora cresceu tanto que profissionalizei essa relação… No Tik Tok eu não sou ainda tão presente, mas sei que o “Jantar Secreto” e o “Suicidas” viralizaram no BookTok.
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G |Tem alguém produzindo algo nos gêneros de suspense, thriller, policial, terror que você esteja gostando?
RM |Tem alguns autores brasileiros que eu gosto muito, que eu tenho a alegria de dar uma frase na capa do livro porque são livros que realmente eu acredito e gosto muito. Uma delas é uma autora brasiliense chamada Fabiana Guimarães, ela é jovem e minha amiga desde os 15 anos. Nos conhecemos via Orkut numa comunidade de escritores; ela em Brasília, eu no Rio de Janeiro. A Fabi faz um suspense meio poético, não é tanto policial, mas um suspense melodramático. “Apaga a Luz se for Chorar” é meu livro favorito dela e também um romance que ela acaba de publicar, o “Como se Fosse um Monstro”. E acho que nós temos uma grande autora policial que ainda é pouco lida que é a Patrícia Melo. Ela escreve livros sempre muito bons. “Menos Que Um”, o mais recente dela, é uma obra-prima maravilhosa, vale muito ler.
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CAPA Quem tem medo de filme de terror?
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2Reportagem De YouTuber a cineasta
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3Podcast da semana Gabriela Amaral Almeida: "O terror é um gênero que se alimenta da ansiedade"
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4Repertório Filmes de terror para iniciantes
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5Bloco de notas As dicas da redação sobre o tema da semana