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Quem é o imigrante?
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Ilustração de Isabela Durão. Foto de David Peinado

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Reportagem

Por que imigrantes estão entre os maiores alvos da extrema direita?

Com política de deportações em massa nos EUA, extrema direita escreve mais um capítulo da cruzada global que coloca imigrantes na posição de inimigos

Leonardo Neiva 23 de Fevereiro de 2025

Por que imigrantes estão entre os maiores alvos da extrema direita?

Leonardo Neiva 23 de Fevereiro de 2025
Ilustração de Isabela Durão. Foto de David Peinado

Com política de deportações em massa nos EUA, extrema direita escreve mais um capítulo da cruzada global que coloca imigrantes na posição de inimigos

Em um mês como presidente dos Estados Unidos, Donald Trump empilha medidas contra a população de imigrantes do país. Além de um aumento considerável no número de pessoas detidas e deportadas pelo ICE — o Serviço de Imigração norte-americano —, o mandatário também anunciou uma série de medidas sobre o tema: enviou tropas para a fronteira com o México, estabeleceu uma meta de pelo menos 1.200 imigrantes presos por dia, anunciou a criação de um centro de detenção para imigrantes em Guantánamo e, mais recentemente, pausou pedidos de imigração de pessoas da Ucrânia e América Latina que já tinham sido autorizadas a entrar nos EUA durante o governo Biden.

Isso sem contar o pacote criado para combater a imigração ilegal, que inclui a possibilidade de uma deportação muito mais rápida e que autoriza a prisão de imigrantes em locais antes protegidos, como igrejas e escolas. Todas essas ações respondem a uma das principais plataformas da campanha de Trump, em que prometeu realizar a maior deportação em massa do país durante seu mandato.

Para além das implicações práticas, a professora e pesquisadora de imigração, educação e política internacional de Harvard, a Gabrielle Oliveira, enxerga nesse primeiro mês uma tentativa do presidente de inundar a política, o noticiário e o próprio sistema judiciário com medidas sobre o tema. “Tem uma dispersão muito grande de esforço para tentar entender quais são essas mudanças, então você acaba deixando a confusão reinar como estratégia, de propósito”, ela reforça.

Uma das consequências desse método é a formação do medo generalizado entre a população de imigrantes ilegais em solo norte-americano. “Faz com que essas pessoas não queiram ir trabalhar, levar filho para a escola nem sair na rua”, diz Oliveira, que pesquisa movimentos migratórios e é autora de um livro sobre maternidade entre imigrantes. Segundo a pesquisadora brasileira, embora isso já tenha acontecido no primeiro mandato do presidente, lá em 2017, o movimento voltou com ainda mais força agora.

O governo Trump quer invocar uma lei do século 18 que diz que, se você estiver sofrendo uma invasão de estrangeiros, pode deportar essas pessoas imediatamente

A especialista também chama de mito o discurso oficial do governo, de que está deportando apenas criminosos. Isso porque a Casa Branca ampliou consideravelmente a definição de crime nesses casos, passando a abarcar não só quem cometeu crimes hediondos ou mesmo contravenções menores, mas toda a população sem documentos — o que inclui pessoas que entraram legalmente nos EUA ou perderam o visto há pouco tempo. “A porta-voz da Casa Branca falou que agora a definição é: se você está neste país e não deveria estar aqui, você é um criminoso”, conta Oliveira.

A pesquisadora também aponta que novas medidas estão sendo estudadas para expulsar imigrantes do país de forma ainda mais rápida: “O governo Trump quer invocar uma lei do século 18 que diz que, se você estiver sofrendo uma invasão de estrangeiros, pode deportar essas pessoas imediatamente.” Ou seja, cortando até mesmo a passagem mandatória por uma audiência frente a um juiz.

O resultado desse panorama, segundo a professora, é uma insegurança e pânico generalizados, que não poupam nem quem vive legalmente no país. “No último mês, recebi uma quantidade enorme de telefonemas de pessoas que fazem parte da minha pesquisa — algumas inclusive com visto de trabalho ou de estudante —, de advogados com quem trabalho, de clínicas de imigração”, conta Oliveira. “O maior medo é esse: o que vai acontecer no futuro, o que vai acontecer comigo?”

Preconceito histórico

Encontrar um inimigo em comum como forma de direcionar os anseios e o ódio da população é uma estratégia política comum na trajetória humana. Judeus, negros, homossexuais e uma série de grupos étnicos e minorias em algum momento se tornaram bode expiatório para as dificuldades de uma determinada sociedade. Nesse contexto, estrangeiros são particularmente vulneráveis, explica o professor e pesquisador de semiótica da Universidade Mackenzie, Paolo Demuru.

O docente publicou em 2024 o livro “Políticas do Encanto” (Elefante), em que aborda as estratégias de comunicação e convencimento da extrema direita para chegar ao poder: entre elas, discursos de ódio, fake news e fantasias de conspiração. Dentro dessa lógica, a luta contra a “invasão” por povos estrangeiros é fonte de temor constante, reforçado pelos métodos de desinformação.

“Desde os bárbaros — povos que mantinham sua própria língua e cultura —, lá na Grécia Antiga, isso é feito para reforçar a coesão interna de uma nação, claramente para fins ideológicos, políticos e de obtenção e manutenção do poder”, afirma o pesquisador. “The Great Replacement [A grande substituição] alega que poderes ocultos estariam implementando a troca de europeus e estadunidenses brancos por parte de povos oriundos da África e do Oriente Médio”, Demuru cita como exemplo em um trecho do livro.

O pesquisador lembra que movimentos contrários à imigração já vêm ganhando espaço na política dos países europeus ao longo dos anos, especialmente a partir da crise dos refugiados que se intensificou na última década.

“A construção do inimigo externo fez com que fosse muito mais fácil gerar consenso em torno dessas ideias e movimentos”, explica Demuru. “Dizem que eles estão roubando nosso trabalho, atacando nossa identidade, mesmo em países extremamente plurais, onde a identidade não é nem um pouco definida, como os EUA, países intrinsecamente constituídos por imigrantes.”

Cartilha da desumanização

De acordo com o especialista, os estrangeiros também são rapidamente identificados como ameaças devido ao caráter profundamente nacionalista desses movimentos, a exemplo da sigla Irmãos de Itália, de Giorgia Meloni, que Demuru classifica como “herdeiro do partido fascista”, ou a AfD, hoje um dos maiores da Alemanha.

Movimentos anti-imigração podem ser atraentes para uma boa parte do público devido ao seu caráter simplificador, diz o docente. Ou seja, a proposta “dá uma resposta bastante simples a questões muito mais complexas”. E que, no caso de países como os Estados Unidos, encontra alguma conexão com a realidade: “É muito fácil identificar [os imigrantes] como inimigos externos porque a imigração é uma questão visível.”

Se, por um lado, não se pode negar que os movimentos migratórios existem, por outro, há uma série de exageros em torno de sua dimensão e impacto. Nesse contexto de excessos é que, segundo Demuru, questões como a saúde pública, o aumento da desigualdade e o empobrecimento da população, intrínsecas ao sistema neoliberal contemporâneo, acabam sendo colocadas na conta dos imigrantes. “Eles se tornam responsáveis por um mal-estar que não é culpa deles.”

Um dos desdobramentos disso é que o ódio social e financeiro contra os imigrantes logo se torna também físico, na visão de Demuru. “O corpo dos imigrantes é descrito como o corpo alheio, como um corpo que é sujo”, aponta. Um exemplo bastante representativo desse processo de desumanização é uma fala de Trump, que, durante sua campanha, afirmou com todas as letras que imigrantes são “animais” e “não humanos”.

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Imigrantes e criminalidade

Na terça-feira (18), as redes oficiais da Casa Branca postaram um vídeo com o título “ASMR: Illegal Alien Deportation Flight” (ASMR: Voo de deportação de imigrantes ilegais). As imagens reforçam o som de correntes e da turbina de um avião enquanto pessoas algemadas embarcam na aeronave. Um lembrete: a sigla ASMR define a sensação de prazer físico sentida em resposta a estímulos sonoros.

Oliveira evoca esse tipo de postagem particularmente cruel para apontar que, em comparação com a primeira administração Trump, esta apresenta muito menos limites no seu modo de agir. “Esse governo tem um apetite muito maior, entrou numa conversa cultural de proteger a nação, corrompendo o patriotismo para invocar o nacionalismo. Esse movimento vai ser muito difícil de conter”, considera.

Além de conectar a prisão e deportação de imigrantes ilegais a uma sensação de prazer, os perfis ainda trazem em destaque uma lista de suspeitos de cometer crimes — todos eles estrangeiros — que teriam sido presos pelo Serviço de Imigração norte-americano nas primeiras semanas do governo Trump.

Ações como essas, segundo os especialistas, integram uma estratégia de relacionar a presença de estrangeiros a um aumento generalizado na criminalidade. Na ocasião em que Trump comparou imigrantes a animais, por exemplo, o então candidato citou o caso isolado de uma estudante assassinada por um imigrante venezuelano, que chegou a ocupar os principais noticiários norte-americanos na época.

Um dos problemas é que notícias sobre crimes cometidos por imigrantes acabam repercutindo muito mais. Esse tipo de retórica, explica Demuru, acaba generalizando um único caso, como no exemplo de crime citado por Trump. Só que essa conexão raramente corresponde à realidade. “97% dos feminicídios na Itália são cometidos por italianos. Mas os 3% restantes, na percepção da opinião pública, se tornam 90%”, indica o pesquisador.

O mesmo ocorre nos EUA, onde imigrantes cometem menos crimes do que a média dos norte-americanos nascidos no país, aponta Oliveira. Além das manchetes sensacionalistas, as redes também ajudam a disseminar discursos absurdos ou mentirosos, como o boato de que estrangeiros estariam comendo os pets de norte-americanos — depois também replicado por Trump durante um debate.

Segundo Demuru, além de reforçar com essas estratégias o perigo que o imigrante representa, o discurso da extrema direita também costuma exagerar propositalmente a quantidade de estrangeiros que vive no país: “É a ideia de que somos a minoria contra uma maioria que está querendo nos invadir. O próprio termo invasão, do ponto de vista do discurso, aponta para a construção de uma maioria. Você é invadido por um mar, por uma onda grande.”

O poder da narrativa

A professora de Harvard lembra que os EUA só conseguiram se tornar a economia competitiva que são por pagarem salários baixos para determinadas atividades, como o trabalho na produção agrícola — que acaba sendo assumido, em grande parte, por imigrantes. Na verdade, pesquisas mostram que a presença de imigrantes tem efeitos positivos para a economia norte-americana, e sua deportação em massa pode até encarecer os preços de produtos e alimentos no país.

Para Oliveira, a questão ideológica tem pesado muito mais nessa cruzada contra imigrantes do que a econômica. Por isso, mesmo que a política de Trump traga efeitos financeiros negativos, a pesquisadora acredita que o governo deve erguer uma cortina de fumaça sobre a questão. “Provavelmente vai alegar que é por causa da gripe aviária, porque a China está fazendo tal coisa ou nossos parceiros estão tirando vantagem da gente. Tudo vira uma narrativa, uma contação de história”, afirma.

É preciso mostrar quais os verdadeiros problemas do mundo contemporâneo, impedindo que leituras de mundo simplórias, como a de que o imigrante é culpado de tudo, se imponham na opinião pública

O fato de muitos dos que apoiam as políticas anti-imigração ignorarem informações como essas está em linha com um dos principais argumentos do livro de Demuru: nem sempre refutar fake news ou trazer dados concretos é suficiente. O pesquisador reforça a importância da checagem e dos dados, instrumentos essenciais para responder a desinformação, mas também enfatiza que é preciso contar histórias de maneira diferente num mundo em que as principais redes sociais vêm se alinhando a discursos conservadores.

“Pesquisas mostram que dados concretos não circulam nas redes. O que circula muito mais são a fake news”, aponta. Na visão de Demuru, as narrativas da extrema direita funcionam porque têm a capacidade de simplificar o que é complexo e trazer um encantamento para a precariedade da vida cotidiana — mesmo que ele não seja estritamente real. “Do ponto de vista da construção narrativa, são histórias atraentes, bem contadas.”

O pesquisador defende sair da posição reativa e contar histórias como a própria relevância dos imigrantes para a economia de forma mais atrativa. “É preciso mostrar quais os verdadeiros problemas do mundo contemporâneo, impedindo que leituras de mundo simplórias, como a de que o imigrante é culpado de tudo, se imponham na opinião pública”, diz Demuru, que dá como exemplo o barulho criado na campanha recente pelo fim da escala de trabalho 6×1.

Oliveira enxerga como sintoma da falta de reação às políticas anti-imigração o relativo silêncio da população norte-americana, em comparação com a comoção despertada pela separação de pais e filhos imigrantes na gestão Trump anterior. “Hoje muitas pessoas da ala moderada concordam com a necessidade de deportações em massa a qualquer custo”, diz a especialista. “Então até o apetite por políticas cruéis está muito maior do que antes.”

Esse movimento evidencia uma outra realidade que pode parecer contraditória: muitos imigrantes que hoje vivem legalmente nos EUA têm apoiado as deportações. De acordo com Oliveira, esse é apenas mais um desdobramento da política do medo que se instalou no país.

“Muitos dizem: eu peguei a fila, enfrentei a papelada, fiz tudo direitinho [em contraste com quem entra de forma ilegal]”, afirma a pesquisadora. “Outros estão com medo de ser invadidos, de que a vida que eles têm agora vai acabar. Por isso você vê venezuelanos, cubanos, brasileiros apoiando o Trump, mesmo que isso coloque sua população em perigo. É porque vem aquele medo de perder, de que algo pode ser tirado deles.”

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