Maria de Medicis: "O streaming também tem a força dos fandoms" — Gama Revista
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Catarina Ribeiro

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Conversas

Maria de Médicis: "O streaming tem a força dos fandoms"

Diretora de “Beleza Fatal”, primeira novela original da Max, fala sobre tietes de folhetins  e a força que os fãs têm para até mudar os rumos de uma trama

Ana Elisa Faria 16 de Março de 2025

Maria de Médicis: “O streaming tem a força dos fandoms”

Ana Elisa Faria 16 de Março de 2025
Foto de Catarina Ribeiro

Diretora de “Beleza Fatal”, primeira novela original da Max, fala sobre tietes de folhetins  e a força que os fãs têm para até mudar os rumos de uma trama

Noveleira de carteirinha e com três décadas de carreira, a diretora Maria de Médicis, 55, conhece bem o poder dos fãs em transformar personagens de novelas em fenômenos da cultura pop brasileira. As Empreguetes, vividas por Isabelle Drummond, Leandra Leal e Taís Araújo em “Cheias de Charme” (2012), são provas disso. “Ali sentimos o começo do que depois se multiplicaria exponencialmente na internet, com os fandoms, os shippers, as hashtags”, diz.

Já na estreia na função, em 2001, com “Estrela-Guia”, ela lidou com uma avalanche de tietes antes mesmo do início do folhetim: os fãs da cantora Sandy, protagonista da obra. Anos depois, um improvável casal de “Paraíso Tropical” (2007), trama da qual fez parte da equipe de direção, ganhou espectadores fanáticos que vivem ainda hoje nas redes sociais compartilhando cenas e saem nas ruas, no Carnaval, a caráter. A prostituta Bebel (Camila Pitanga) e o empresário picareta Olavo (Wagner Moura) deram tanto match e foram tão shipados pelo público, que ganharam um romance que não estava previsto no roteiro inicial.

Para homenagear esses aficionados pela dupla de vigaristas carismáticos, Médicis até reprisou uma das falas mais famosas da garota de programa em seu novo trabalho, “Beleza Fatal”, primeira novela original da plataforma de streaming Max. Na pele da vilã Lola, tão sem “catiguria” quanto Bebel, Pitanga repetiu os dizeres: “Que boa ideia esse casamento primaveril em pleno outono”, o que rendeu milhares de memes nas redes sociais. “Tinha certeza de que as pessoas ficariam loucas. Fiz a cena só para alegrar o fandom”, conta.

Fãs homenageam personagens de Camila Pitanga no carnaval deste ano
Fãs homenageam personagens de Camila Pitanga no carnaval deste ano Reprodução/Instagram @caiapitanga

A diretora reconhece, no entanto, que mesmo um admirador carinhoso vira hater em um minuto, quando contrariado. “Às vezes, eles podem ser muito loucos e até um pouco cruéis. Ela lembra que no lançamento de “Beleza Fatal”, quando o companheiro de cena de Giovanna Antonelli foi apresentado — ele é interpretado pelo ator Augusto Madeira —, houve um frenesi entre os fãs da atriz, que a queriam ao lado de Alexandre Nero, colega com quem ela já fez três pares românticos.

A gente se apaixona por casais de novela, e quer que eles perdurem, mas temos que ter abertura para criar outros casais e outros ships

Com o sucesso no streaming consolidado — a produção estreou em 27 de janeiro e passou semanas no top 1 do Brasil e chegou ao topo em outros 15 países —, o êxito no X, no TikTok e no Instagram, plataformas que têm reunido muitos Lolovers, os apaixonados pela antagonista Lola, “Beleza Fatal” se lançou na Band na última segunda-feira (10).

Em entrevista a Gama, Maria de Médicis fala sobre a força dos fandoms, revela os bastidores de decisões criativas inspiradas diretamente pelo público e explica por que vilões têm se tornado tão populares. Ela reforça ainda a importância dos canais abertos como meios de comunicação essenciais e democráticos, mesmo em uma era dominada pelo streaming.

  • G |Você estreou na direção com “Estrela-Guia”, que já nasceu com um fandom enorme, os fãs da cantora Sandy. Como foi essa experiência?

    Maria de Médicis |

    Eu ficava impressionadíssima quando a gente ia filmar na rua, era uma coisa tipo Beatles. Uma loucura conseguir gravar externa com a Sandy. Foi uma experiência diferente porque “Estrela-Guia” veio com um fandom pronto. Os fãs já existiam e eles acompanhavam tudo o que a Sandy estava fazendo no momento, que era muita coisa. Na época, ela fazia a novela, o programa “Sandy & Junior” [1999-2002] e os shows. Uma coisa impressionante e de um profissionalismo que nunca vi igual.

  • G |Já com “Cheias de Charme” aconteceu o contrário. O fandom das Empreguetes foi crescendo capítulo a capítulo. Como a equipe percebeu que aquelas personagens e as músicas que elas cantavam estavam fazendo tanto sucesso?

    MdM |

    Com “Cheias de Charme”, aconteceu uma coisa interessante. Foi a primeira integração direta de novelas com a internet, criada pela própria Globo, muito em função dos fãs. Quando lançamos o videoclipe de “Vida de Empreguete”, o público assistia, na novela, elas filmando o clipe e, no fim do capítulo, entrava um link para o clipe pronto, na íntegra. Algo que, antes dessa ideia, as pessoas só veriam o clipe, ou parte dele, na novela mesmo, uns dois dias depois, pelo menos. E isso se deu por uma percepção de que as pessoas queriam mais das Empreguetes. Começamos a perceber que tinha uma galerinha de 12, 13 anos completamente fascinada pelas Empreguetes. Inclusive, o aniversário da minha filha naquele ano foi das Empreguetes. Fiz todo temático, não existia nada à venda nas lojas, mas construí as bonequinhas do bolo, contratei a pessoa que criava as coreografias da novela para ensinar as dancinhas das Empreguetes para as meninas.  A internet ainda não tinha tanta força, mas ali sentimos o começo do que depois se multiplicaria exponencialmente na internet, com os fandoms, os shippers, as hashtags. E aí começam a ter os fandoms mudando histórias de novelas.

  • G |Tem algum exemplo de trama que mudou por força dos fãs?

    Maria de Médicis |

    Sim! Em outra novela que eu fiz, “Paraíso Tropical”, a Bebel (Camila Pitanga) e o Olavo (Wagner Moura) não seriam um casal. Bebel ia ficar com o Ivan [Bruno Gagliasso] e o Olavo, com a Taís [Alessandra Negrini]. Só que a gente viu a força de um fandom louco por Bebel e Olavo. Um fandom que existe até hoje, aliás. É uma loucura. Quando o Wagner veio lançar “Guerra Civil” no Brasil, ano passado, a gente se encontrou no samba e ele me falou: “Maria, todo programa que eu vou para lançar o filme, ninguém fala do filme, só falam de Bebel e Olavo”. Fazem ele repetir a frase que ficou famosa: “Você é a cachorra mais burra daqui desse calçadão”.

Fiz a cena só para alegrar o fandom. Tem esse lado, mas a gente sabe que, às vezes, eles [os fãs] podem ser muito loucos e até um pouco cruéis

  • G |Você homenageia “Paraíso Tropical” em “Beleza Fatal”, com a Camila Pitanga reprisando frases clássicas da Bebel, agora como Lola. De onde veio essa ideia?

    MdM |

    Tem duas homenagens a “Paraíso” em “Beleza Fatal”. No início das filmagens, eu e a Camila chegamos à conclusão de que iriam comparar a Bebel à Lola. Hoje em dia não existe mais essa comparação, mas na primeira impressão do público, houve. Eu dei a ideia de brincar com isso. Quando a Lola pede o Benjamin [Caio Blat] em casamento e vai abaixando a calça dele, ela diz: “Cueca maneira”, que é uma fala da Bebel. E, no casamento dos dois, não teve jeito, ela teve que falar: “Que boa ideia esse casamento primaveril em pleno outono”. Eu tinha certeza de que as pessoas ficariam loucas. No primeiro meme que saiu comparando uma cena com a outra, eu agradeci por termos feito. Fiz a cena só para alegrar o fandom. Tem esse lado, mas a gente sabe que, às vezes, eles [os fãs] podem ser muito loucos e até um pouco cruéis. Quando começamos a lançar “Beleza Fatal” e apresentamos o Gugu [Augusto] Madeira como par da Giovanna [Antonelli], eles enlouqueceram porque, para o fandom, a Giovanna, para o resto da vida, vai ter que fazer par com o [Alexandre] Nero [os dois já formaram casal em três novelas]. As pessoas foram muito deselegantes, falaram mal do Gugu por conta dessa paixão. Eu entendo, a gente se apaixona por casais de novela, e quer que eles perdurem, mas temos que ter abertura para criar outros casais e outros ships.

  • G |O X é uma plataforma muito propícia aos fãs. Eles divulgam fanfics de personagens e usam a rede como segunda tela para comentar enquanto assistem às obras, além de criarem vários memes. Você acompanha as repercussões ali?

    MdM |

    Eu sou viciada no Twitter, principalmente para os meus trabalhos. Quando eu fazia novela na TV aberta era muito legal acompanhar as reações em tempo real. Você vai vendo que cena funciona, lê os comentários. Eu pensava que com o streaming não teria mais isso, mas tem, de outra forma, em outro tempo. A reação não é ao vivo, mas há as torcidas, os fandoms se manifestando, os ships sendo criados. O streaming tem, de uma maneira diferente da TV aberta, a força dos fandoms. Em “Beleza Fatal”, tem menos fandoms de casais, mas tem os Lolovers, que são um fenômeno. Tem uma quantidade enorme de memes da Lola, de gente que ama odiar a Lola, porque ela é uma peste, né? Esses dias mesmo li um comentário: “Como posso estar torcendo por uma mulher que já matou duas pessoas?”.

  • G |E como você vê esse fenômeno de pessoas que se tornam fãs dos vilões? Algo que tem acontecido bastante com a Lola.

    MdM |

    Começamos a ver isso lá atrás com o Félix [personagem de Mateus Solano em “Amor à Vida”, de 2014]. O Félix joga um bebê, a filha da irmã, numa caçamba cheia de lixo e é totalmente perdoado. Todo mundo começou a torcer por ele. O que talvez seja parecido entre o Félix e a Lola é que eles são de verdade, são humanizados. Quando a Lola mata o Rubem [Rei Black], e, obviamente, um assassinato não tem desculpa nenhuma, os fãs falam que ela fez aquilo para se defender porque ele ia prendê-la. Quando ela manda matar a Cléo [Vanessa Giácomo], na cena seguinte da morte a Lola aparece chorando no sofá com o filho porque, no fundo, ela sofre. Conforme os episódios vão passando, vemos vários momentos dessa humanização, dela lembrando da infância difícil, dos abusos que sofreu do pai. Isso faz com que as pessoas tenham certa empatia pela Lola. Além disso, ela tem uma paixão desenfreada pelo filho, o Gabriel [Enzo Romani]. Duas coisas tornam os vilões amados, a humanização e o humor. Vilões que têm esse trick [artifício] do humor são sempre adoráveis, são vilões que a gente ama odiar. Eu tinha certeza de que a Lola entraria para a lista de vilãs icônicas, como Odete Roitman, Flora, Nazaré, Carminha. São todas vilãs que têm o momento de humanização e têm humor. A Lola tem as duas coisas à décima potência. Ela não tem papas na língua, não é politicamente correta. E eu defendo que elas podem ser assim e falar o que quiserem porque, afinal, são vilãs.

  • G |Ao que você credita o sucesso de “Beleza Fatal” entre os mais jovens, que formam fandoms dos personagens e tudo mais?

    MdM |

    “Beleza Fatal” tem um tempero pop que vem muito do Rapha [Raphael Montes, autor de “Beleza Fatal e escritor] e do tráfego dele não só pelas redes sociais, mas também pela literatura juvenil. O Rapha fez os jovens voltarem a ler. “Jantar Secreto” (Companhia das Letras, 2016), por exemplo, vendeu mais de 100 mil exemplares, no total das obras, ele tem mais de 500 mil livros vendidos. Ele tem um fandom maluco, pessoas que tatuam os livros, que fazem filas imensas nos lançamentos. Eu digo que ele fez os jovens voltarem a ver novela. Vejo aqui em casa. Meus filhos estão viciados, enfiados na TV maratonando “Beleza Fatal” [Antônia tem 22 anos e João, 19]. Outro dia a Antônia me disse que está orgulhosa porque vários amigos dela estão acompanhando. Obviamente, estamos falando de um recorte social e econômico, mas é uma faixa que não estava mais na TV aberta. A televisão aberta errou muito de não construir um público, que foi todo para o YouTube e para as redes sociais. Mas a novela viciou, e viciou também porque entrou nesse mundo.

  • G |A Globo está prestes a estrear o remake de “Vale Tudo”, considerada por muitos a novela das novelas. Acha que os fãs da versão original podem atrapalhar o andamento da nova obra, uma vez que, com o que foi divulgado, já estão fazendo comparações?

    MdM |

    Temos que aceitar que comentários vão existir, não tem jeito. Outro dia vi o Walcyr [Carrasco, autor] falar que mudou uma trama inteira de “Caras & Bocas” [2009-2010] por conta da reação do público. Ele contou que pretendia ir para um caminho, mas viu as reações e mudou o curso. Devemos ser receptivos ao público que está vendo e que reage. É claro que, no caso de um remake, principalmente o de “Vale Tudo”, que é uma novela tão icônica, é a melhor novela de todos os tempos, na minha opinião, vão ter 500 mil comparações. Eu tento ser generosa, estou ansiosa para assistir, mas vejo que, às vezes, as pessoas são cruéis em relação à escalação do elenco, comparando com a escalação antiga, e não existe comparação. A Heleninha da Renata Sorrah é uma, a Heleninha da Paolla Oliveira vai ser outra; a Raquel da Regina Duarte é uma, a da Taís Araújo vai ser outra. Não é a “Vale Tudo” original, é uma nova. O público não atrapalha, ele influi mais e reclama mais, mas acho que temos de estar abertos para ouvir e não brigar. Melhor do que pensar que essas coisas atrapalham é pensar em construção com o público.

  • G |“Eu estou no futuro. Eu sou o streaming, o seu pai é a TV aberta. A TV aberta está morrendo! Eu tô aqui, vivíssima!”. Concorda com essa frase da Lola?

    MdM |

    Discordo totalmente. A tevê aberta tem uma força inacreditável. Se a gente for comparar números, então, aí não tem como discutir. Um capítulo de uma novela das nove da TV Globo, não digo nem de uma “Avenida Brasil”, mas uma que esteja indo normal, em termos de audiência, se você comparar com o maior sucesso da Netflix, seriam seis meses para a Netflix pegar um dia de TV aberta. A novela é o entretenimento mais popular do Brasil. Fico feliz com o sucesso de “Beleza Fatal” porque também prova que o gênero está muito vivo. A TV aberta é para todos, ela não tem preconceitos. Vivemos em um país com disparates econômicos enormes, onde ainda tem muita gente sem acesso a uma banda larga decente. O público AA que assistia à novela das nove talvez hoje em dia assista mais streaming, mas acho que quando tem uma novela boa, ele vem. Então, eu discordo da Lola totalmente.

  • G |Você é fã de alguém?

    MdM |

    Eu sou do fandom Dedê, de Denise Saraceni e Dennis Carvalho [diretores de TV]. Também faço parte do fandom de uma pessoa que nos deixou e que me ensinou muito, o Jorginho Fernando, que, para mim, era o mestre das novelas das sete. Quando fiz “Cheias de Charme”, levei muito do que aprendi com ele sobre como uma novela das sete tinha que ser. Estou no fandom do Gilberto Braga também, sou mega fã dele.