Djaimilia Pereira de Almeida e a literatura negra — Gama Revista
Que livro mudou a sua vida?
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Foto: Humberto Brito / Ilustração: Isabela Durão

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Conversas

Djaimilia Pereira de Almeida: "Raramente me encontrei na literatura portuguesa"

Autora de “O Que é Ser uma Escritora Negra Hoje, de Acordo Comigo”, luso-angolana fala sobre como são as autoras pretas que devem decidir o tipo de literatura que querem fazer

Flávia Mantovani 17 de Março de 2024

Djaimilia Pereira de Almeida: “Raramente me encontrei na literatura portuguesa”

Flávia Mantovani 17 de Março de 2024
Foto: Humberto Brito / Ilustração: Isabela Durão

Autora de “O Que é Ser uma Escritora Negra Hoje, de Acordo Comigo”, luso-angolana fala sobre como são as autoras pretas que devem decidir o tipo de literatura que querem fazer

Certa vez, em uma livraria de Lisboa, a escritora luso-angolana Djaimilia Pereira de Almeida foi abordada por um leitor, que elogiou sua obra, mas lhe recomendou que parasse de escrever “essas coisas sobre negros”, pois seria um “assunto de gueto”. Djaimilia ficou com aquilo na cabeça. Autora de livros aclamados pela crítica, como “Esse cabelo” (ed. Todavia, 2022), “A visão das plantas” (ed. Todavia, 2021) e “Luanda, Lisboa, Paraíso” (Cia das Letras, 2019) — este último, vencedor do prêmio Oceanos —, ela se perguntou qual resposta deveria ter dado.

Mas, então, só é universal a literatura que retrata personagens brancos? Afinal, ela escreve sobre pessoas negras ou sobre pessoas, sem se importar se são brancas ou negras? Em que medida a cor de sua pele influencia sua obra? Faz sentido catalogar escritoras negras em uma só categoria? Perguntas como essas se sucedem em “O Que é Ser uma Escritora Negra Hoje, de Acordo Comigo” (Todavia, 2023), título que reúne dois ensaios de Djaimilia e uma conversa que teve com a poeta e tradutora brasileira Stephanie Borges, durante um evento do Instituto Moreira Salles.

 Editora Todavia

Mais do que entregar respostas, o que Djaimilia faz é entremear questionamentos e reflexões sobre o espaço ocupado por escritores e escritoras de pele negra na literatura de língua portuguesa e mundial, os dilemas que enfrentam sobre assumir esse traço identitário em seus discursos e narrativas e a maneira como o mercado editorial muitas vezes se apropria dessa temática como uma jogada publicitária.
Sua análise parte de algumas experiências pessoais. Filha de uma mulher negra e de um homem branco, nascida em Luanda e criada pelo pai em Portugal, ela reflete sobre como sua identidade foi moldada pelo fato de ter crescido em uma família branca para a qual sua cor era considerada um tabu, e em um país em que faz parte de uma minoria.

Foi escrevendo que ela se reencontrou com sua pele. E foi depois que começou a publicar suas obras que passou a ser vista como uma escritora negra, algo que lhe trouxe sentimentos paradoxais: se por um lado ela não acredita que exista uma imaginação negra ou característica de autores negros, por outro considera que o que escreve é indissociável de sua experiência de ser uma mulher negra no mundo.
“A minha imaginação é marcada pela minha percepção do mundo, de que a minha pele faz parte, mas esse é apenas o início da conversa, apenas um aspecto da minha sensibilidade”, afirmou, em entrevista à Gama, por e-mail.

É assim que ela chega à conclusão de que se recusa a ser uma escritora negra se isso significar um subgrupo exótico dentro dos escritores do mundo, mas se orgulha de ser “uma mulher negra que escreve”. E aí vem o desafio de não permitir ser limitada pelo rótulo, mas também não desperdiçar a chance de reabilitar a forma como o negro é representado na literatura de língua portuguesa. “Relegadas à condição de personagens vazios e estereotipados, pessoas negras são raras no cânone português e apresentadas como seres humanos desprovidos de individualidade”, escreveu.

Para Djaimilia, a reconstrução da “interioridade negra” cabe à literatura e à arte, em uma missão coletiva que vem sendo adotada pela maioria dos artistas negros luso-afro-brasileiros —ela cita nominalmente a poeta Aline Motta e os escritores Jeferson Tenório e Itamar Vieira Júnior, entre outros.

Doutora em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa e professora da New York University (NYU), Djaimilia vê avanços no acesso de mulheres negras à literatura e ao mercado editorial, mas também considera “que há tudo por fazer e todo o caminho para percorrer”. “As portas abertas ainda a poucas precisam de ser multiplicadas e sobretudo precisam de configurar-se como portas abertas para um campo livre, em que cada uma de nós possa decidir que escritora quer ser”, afirma.

Até há poucas décadas, seria impensável sequer podermos chegar a publicar

  • G |Qual é o lugar reservado às escritoras negras na literatura?

    Djaimilia Pereira de Almeida |

    O lugar hoje é muito diferente daquele que foi noutras épocas, como sabemos. Até há poucas décadas, seria impensável sequer podermos chegar a publicar, ainda que a escrita, as histórias, a poesia, a música não nos estivessem vedadas. Esses são dons que transportamos desde tempos imemoriais. Estavam, isso sim, vedadas a publicação e o acesso ao mercado editorial no contexto presente.

  • G |Você começa o livro observando que é um privilégio viver neste tempo em que uma mulher negra consegue ser escritora, algo que não seria possível se tivesse nascido poucas décadas antes. O quanto nos aproximamos de uma situação de igualdade no acesso de mulheres negras à literatura e ao mercado editorial e o que ainda precisa mudar?

    DPA |

    Julgo que nos aproximamos, mas que há tudo por fazer e todo o caminho para percorrer. As portas abertas ainda a poucas precisam de ser multiplicadas e sobretudo precisam de configurar-se como portas abertas para um campo livre, em que cada uma de nós possa decidir que escritora quer ser.

  • G |Você comenta que só quando publicou um livro pela primeira vez percebeu que era vista como uma autora negra e que não se considerava assim. Como se vê atualmente? Até que ponto (e de que maneira) o fato de ser uma mulher negra se reflete na sua obra?

    DPA |

    Considero-me uma prosadora da língua portuguesa, o que significa ser uma prosadora numa das línguas do mundo, numa língua viva. A minha imaginação é marcada pela minha percepção do mundo, de que a minha pele faz parte, mas esse é apenas o início da conversa, apenas um aspecto da minha sensibilidade. Vejo sobretudo a minha pele como gostaria de ser capaz de ver a minha voz: portas para a liberdade.

  • G |Você conta que percebe uma espécie de exploração comercial da categoria “escritoras negras” como se fosse um trunfo para o mercado editorial, um chamariz para eventos e financiamentos, e que uma forma de subverter isso é “não ser a mulher negra que o sistema quer”. Qual é a expectativa do sistema sobre como deve ser uma escritora negra?

    DPA |

    Teríamos de perguntar ao sistema e não sei bem quem responderia por ele. Ser a escritora que o sistema não quer que eu seja é apenas ser fiel, sem me trair, a ser a escritora que quero e sou capaz de ser a cada momento. Nada é tão revolucionário quanto cada um pensar pela sua cabeça — o que implica pensar com os outros, com outros, como outros.

Meus livros são recebidos de forma mais emotiva no Brasil

  • G |De que maneira a literatura escrita por mulheres negras é recebida por leitores brancos? Vê algum padrão ou diferença em relação aos leitores negros?

    DPA |

    Não vejo os leitores às cores. Escrevo para todos do mesmo modo e gostaria de ser lida por todo o tipo de pessoas.

  • G |Você diz que se sente parte de um projeto coletivo de restituição da interioridade negra nas artes e na literatura, que foi ignorada até muito recentemente. Como os homens e as mulheres negras vinham sendo retratados na literatura em língua portuguesa?

    DPA |

    Sou leitora de literatura portuguesa há mais de 20 anos e raramente me encontrei na literatura portuguesa, na pele de pessoas como eu — ainda que me tenha encontrado na pele de muitas outras pessoas, homens e mulheres, diferentes de mim, e acredito na importância e centralidade desse encontro com aqueles e aquelas de quem somos diferentes. De um modo geral, mais do que um retrato empobrecedor, na literatura portuguesa que fui conhecendo dei com um vazio. Mas aqui estamos para colmatá-lo.

  • G |Você percebe diferenças na forma como sua obra é recebida no Brasil e em Portugal? E que diferenças você vê (ou imagina que existam) entre ser uma mulher negra escritora na sociedade brasileira e portuguesa?

    DPA |

    Julgo que os meus livros são recebidos de forma diferente e talvez de uma forma mais emotiva no Brasil, do que em Portugal.

  • G |Depois de escrever sobre o tema, você foi procurada por outras escritoras negras que se identificaram com suas reflexões? Considera que existe algo de generalizável em suas experiências/percepções?

    DPA |

    Muitas vezes — e, sim. Se não fossem generalizáveis, e num certo sentido, não minhas, não haveria qualquer vantagem em publicar as minhas percepções do mundo e das coisas nos meus livros.

  • G |A categoria “escritoras negras” só existe porque ainda são poucas as mulheres negras que escrevem? Pensa que um dia esse rótulo não será mais necessário?

    DPA |

    Talvez. Importa antes como me vejo. Sou uma escritora numa das línguas do mundo. É um trabalho e tanto. É assim que me vejo.