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Conversas'O brasileiro está deixando de sonhar'
Presidente do Instituto Locomotiva vê crise de perspectiva travar confiança e consumo no país
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‘O brasileiro está deixando de sonhar’
Presidente do Instituto Locomotiva vê crise de perspectiva travar confiança e consumo no país
É praticamente impossível dissociar a situação financeira do brasileiro da política. Depois da ascensão do consumo e da confiança na primeira década dos anos 2000, vivemos agora uma crise em camadas: a econômica, a política, a sanitária e, a pior delas, a de perspectiva, que ao derrubar o ânimo do consumidor trava qualquer possibilidade de retomada. Ela é gerada pela combinação das outras, mas a política tem peso dois na equação, pois são afirmações de governantes que podem dar a sensação de beco sem saída. A análise é de Renato Meirelles, que há pelo menos duas décadas acompanha os movimentos de ascensão e queda do poder de compra das classes C, D e E com pesquisas que comandou no Instituto Data Popular, no Data Favela, e agora no Locomotiva, do qual é presidente.
Meirelles diz que no Brasil de hoje é difícil pensar no longo prazo; o brasileiro, ele afirma, está deixando de sonhar. “Temos um consumidor que precisa, para fazer uma dívida de dois anos, acreditar que estará empregado nesse período —por isso o otimismo é tão importante. É ótimo ter juros mais baixos, mas não adianta nada se você não tem um consumidor confiante com relação aos rumos da economia”, afirma.
Declarações dadas pelo presidente Jair Bolsonaro — como a feita em 5 de janeiro sobre o Brasil estar “quebrado” e, por isso, ele não conseguir “fazer nada” —minam os últimos resquícios de confiança e otimismo. E o problema, acredita Meirelles, está no fato de que a situação continua agindo como oposição, com críticas à própria política econômica. Isso faz com que o brasileiro tenha medo de gastar, que o pequeno comerciante não venda e, logo, não faça pedidos à indústria que, por sua vez, não consegue manter a produção. A economia trava. “O presidente faz oposição a ele mesmo.”
Na entrevista a Gama, Renato Meirelles fala ainda sobre os avanços tecnológicos gerados pela pandemia, como ela atingiu nossa relação com o dinheiro e como, em uma “profissão de fé”, acredita que, assim como ocorreu na Idade Média, depois da Peste Negra vem o Iluminismo.
Nenhuma economia cresce apenas se mantendo ou nadando contra a maré
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G |Como você vê a curva que a classe C desenhou ao longo das últimas duas décadas? Alguma chance de retomar seu poder de compra?
Renato Meirelles |A classe C teve um processo de crescimento muito rápido, e o viu como fruto do seu trabalho e esforço, como mérito pessoal. Como efeito colateral, ampliou o repertório de consumo, muitos viajaram de avião pela primeira vez, consumiram marcas premium, descobriram o gosto de produtos de melhor qualidade. Esse crescimento não ocorreu apenas pelo crédito, mas pelo aumento efetivo da renda. A crise econômica de antes do coronavírus encontrou um consumidor que tinha aprendido o que era bom, e perder dói muito mais do que deixar de ganhar. Tivemos cinco anos de crise econômica e política, e por fim a maior de todas as crises até a pandemia, a de perspectiva, de não ver luz no fim do túnel. E aí o mau humor da população foi crescendo e o consumidor deixou de ver no Estado a competência para auxiliá-lo a ter melhores oportunidades. Alguns leram isso como um crescimento de um pensamento mais liberal, o que não é verdade. E quando se começava a esboçar alguma melhora, mesmo que simbólica, com a eleição, veio o coronavírus. E com o vírus, as desigualdades que já existiam na sociedade brasileira ficam escancaradas. A maior fake news dessa pandemia foi de que era um vírus democrático, que atingia da mesma forma pobres e ricos. Os números são muito autoritários. Trabalhar ou não em home office virou um novo indicador social, como ter geladeira dentro de casa.
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G |Vocês já usam isso nas pesquisas, esse indicador?
RM |A gente usa, não como forma de classificação, mas de diferenciação dos perfis. Mesmo entre quem faz o home office, uma coisa é estar na minha casa com 300 metros quadrados, geladeira, água encanada. Nas favelas, 46% dos lares não têm água encanada. Os mais pobres sofrem mais na pandemia. O índice de contaminação das áreas de favela é quase três vezes maior do que o das áreas nobres. A pandemia não trouxe uma realidade de pobreza, ela já existia. Mas a desigualdade econômica ganhou ares trágicos. E fica cada vez mais claro que ou a sociedade entende as consequências dessa desigualdade econômica, e portanto socializa as oportunidades, ou vai pagar um preço muito caro. Não teve convulsão social porque as organizações sociais das favelas se juntaram com a iniciativa privada [para tentar resolver o problema].
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G |O que acontece se ficamos sem o auxílio emergencial? Corremos o risco de convulsão social?
RM |O auxílio emergencial era necessário porque o Brasil, o segundo país mais desigual do mundo economicamente, tem uma parcela considerável da sua população fora do emprego formal e à margem da proteção social do Estado. Esse processo de auxílio emergencial, um mecanismo liberal que a Alemanha e os EUA praticaram, tem um efeito grande na retomada do processo econômico porque as pessoas gastam esse dinheiro no comércio do bairro, o que cria um ciclo virtuoso na base da economia. O cara da favela contrata mais gente, faz mais pedidos na indústria, e com isso a economia consegue renascer. O auxílio emergencial foi fundamental para o Brasil não quebrar. E enquanto não se voltar a um processo de geração de emprego, ele ainda é necessário.
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G |E o que você acha que pode acontecer? Renda mínima sempre foi uma bandeira da esquerda, mas hoje é considerada pelo governo, que já se permitiu falar sobre ampliar o Bolsa Família ou criar outra renda assistencial. Você acredita que sai do discurso?
RM |Se o governo quiser ser reeleito, não vai ter muita saída. A moeda política é uma moeda que, na história do Brasil, costuma orientar a decisão dos governantes. O Bolsonaro, ao ser obrigado a fazer o auxílio emergencial — maior do que ele desejava inicialmente, pois esse valor foi imposto pelo Congresso Nacional —, começou a colher os dividendos políticos de não ter gente passando fome. Isso segurou sua popularidade e deu a ela um perfil de renda mais baixo, que o faz caminhar para um movimento muito parecido com o do ex-presidente Lula. Lula foi eleito pela classe média e foi reeleito pela base da pirâmide. O caminho de Jair Bolsonaro vai nesse sentido.
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G |Algo muito curioso também, não?
RM |Super, e que muda a geodemografia do voto. O problema é — e a frase do presidente Bolsonaro de que o Brasil está quebrado e sem rumo mostra isso — que ele ajusta a vela de acordo com as circunstâncias. Por outro lado, a oposição é incapaz de conseguir construir uma narrativa alternativa a essa.
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G |A oposição está patinando?
RM |A oposição não sabe exatamente para onde ir porque foi establishment por muito tempo. O Bolsonaro, que foi eleito por uma narrativa anti-establishment, tenta mantê-la no poder e adota uma narrativa de oposição a ele mesmo. Para a economia, gera uma crise de perspectiva e de futuro: o consumidor gasta menos, o empresário investe menos no seu negócio, você procura menos o crédito de capital de giro. Você, de alguma forma, fica mais receoso de assumir riscos, e a economia não volta a crescer. Você deixa de comprar a crédito. A ausência de perspectiva e de liderança diminuem a confiança [do consumidor]. Com menos confiança, os brasileiros consomem menos, investem menos, compram menos.
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G |Em 2020, o Instituto Locomotiva fez 38 pesquisas no país sobre o ânimo e a economia. O que mudou mais fortemente no país nesse ano atípico?
RM |Nós já víamos um processo de aumento das compras online, que passou por uma aceleração gigantesca no e-commerce tradicional e nas compras por aplicativos. O varejo teve de ser ágil para não quebrar. É impressionante como se juntaram e começaram a ofertar muito mais para o consumidor. Outro movimento foi o de grandes lojas. O Magazine Luiza abriu a sua tecnologia, a sua plataforma e os seus modelos de distribuição para mais de 120 mil pequenos empreendedores, e cresceram com isso. O Mercado Livre virou a Amazon da América Latina, com uma forma de entrega genial. Agora, para se manter, eles precisam manter a entrega na última milha e ter programas de “lock-in”, estratégias para fidelizar o cliente para uma próxima compra — basicamente cashback.
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G |E o jeito que as pessoas lidam com o dinheiro mudou?
RM |Essa foi outra tendência acelerada, a migração para dinheiros eletrônicos e meios eletrônicos de pagamento. Antes, as pessoas preferiam pagar em dinheiro, cerca de 71%. A ideia era que o dinheiro era capaz de controlar melhor o orçamento, tinha um diferencial comercial muito grande. Mas, com a pandemia, o dinheiro diminuiu em circulação. Nós tivemos o auxílio emergencial sendo feito por cadastros eletrônicos. Imagina que 5,441 milhões de pessoas tinham direito ao auxílio emergencial e não tinham nem conta em banco e nem acesso a internet. Como havia uma cenoura de dinheiro, tudo foi acelerado. As doações feitas por meios eletrônicos de pagamento fizeram as fintechs crescerem nas classes C e D. Houve também o Merenda Voucher, dos governos estaduais, para mães de alunos da rede pública. O dono de um restaurante, que passou a vender pelo iFood, também recebeu por eles. Toda a cadeia se viu em um movimento de substituição do dinheiro pelos meios eletrônicos. Mas isso é mais incerto do que o e-commerce porque depende de como os cash-ins continuarão a ser pagos no final da pandemia. Depende dos superapps e das fintechs terem a capacidade de mostrar para o consumidor que, usando aquela plataforma, o dinheiro dele vale mais. Ele consegue comprar mais coisas. E isso não está dado ainda por nenhuma das plataformas.
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G |O Instituto Locomotiva trabalha com uma perspectiva de encolhimento de 6% do consumo das famílias. Vemos a precarização do trabalho com uma uberização massiva no país. Como mudou a percepção do dinheiro e da economia para as pessoas?
RM |Como valor monetário, nós vimos que, por mais que a inflação ainda esteja baixa, está 4% acima da meta. O fato é que não se compra o que se comprava antes. Você vê a inflação nos itens básicos, ela foi maior do que a inflação geral da sociedade. A dona Maria, que vai ao supermercado, sofre mais do que o sujeito que vai comprar um carro. Por outro lado, nós temos pessoas ganhando menos, e procurando fontes alternativas de dinheiro. E esse cenário da uberização precisa ser visto por duas óticas, que mudam muito a análise. Pela lógica do século 20, o trabalho formal dá uma série de garantias, com um determinado modelo de jornada, que protege o trabalhador se ficar doente, se tiver que se aposentar, na forma de ser mandado embora. E tem o modelo do século 21, que não dá essas garantias, mas que objetivamente resolve outros problemas dessas pessoas. O problema de não passar fome, de ser dono do seu próprio horário, de não ter que trabalhar para uma única plataforma, de conseguir uma renda extra efetiva. É necessário pensar sobre quais modelos de regulação têm que ser feitos para garantir que o sujeito, se fica doente, recebe seguro e tem condições mínimas. Mas o fato é que eu tenho no Brasil 21,5 milhões de trabalhadores que recebem alguma renda por aplicativo — é mais do que quase todos os estados da federação, só não é maior do que São Paulo. Dois terços desses brasileiros mantiveram ou aumentaram a sua renda durante a pandemia, enquanto na média dos trabalhadores brasileiros é o contrário: dois terços caíram na pandemia. Tem uma série de riscos colocados aí. Qual é a regulação, qual é o preço justo, quanto eles podem pagar de taxa sobre isso? É justo que uma empresa ganhe dinheiro com o desespero e a falta de alternativa dos trabalhadores? Eu não estou aqui para fazer um juízo moral disso, mas negar a existência disso, achando que o modelo correto é o do século passado, não me parece nem justo nem inteligente.
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G |Mas voltando à percepção do dinheiro de cada um: entre os grandes objetivos do brasileiro, segundo uma das pesquisas do instituto, está o pagamento de dívidas e a formação de uma reserva para emergência. O que isso diz sobre a nossa economia e o poder financeiro do brasileiro?
RM |Que está muito difícil pensar a longo prazo, e que o brasileiro está deixando de sonhar. Eu sempre fui o cara das notícias positivas…
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G |Mas você não me parece exatamente otimista agora…
RM |As dívidas estão aí, e podem acelerar esse processo de perda, perder aquilo que já se conquistou. Então, o pagamento de dívidas dialoga com uma esfera moral da cabeça dos consumidores e uma esfera altamente funcional de que “cara, eu só vou conseguir comprar de novo quando eu conseguir pagar minhas dívidas”. O dinheiro que ele quer guardar para uma emergência é porque vê coisas acontecendo nos últimos anos. A dívida, inclusive, surge desse processo. Isso poderia ser resolvido com seguros, por exemplo. Num cenário positivo da população brasileira, dos rumos da economia e de que o barco tinha um capitão de fato, isso poderia levá-lo a fazer um crediário, e aí criar o ciclo virtuoso da economia. O problema é que depois de cinco anos de políticos que mostram que no Brasil o fundo do poço é alçapão, o que o cara quer ver é uma luz no fim do túnel. Se ele não enxergar essa luz no fim do túnel, vai ser muito difícil ter disposição para crescer. E nenhuma economia cresce apenas se mantendo ou nadando contra a maré. Elas crescem quando aproveitam a maré.
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G |Os juros, que sempre foram altos, agora baixaram. Nem isso pode ter um impacto positivo na confiança do consumidor?
RM |Os juros que baixaram, que são da taxa Selic, não chegam com essa mesma baixa para o consumidor final. Temos um consumidor que precisa, para fazer uma dívida de dois anos, acreditar que estará empregado nesse período — por isso o otimismo é tão importante. Então, é ótimo ter juros mais baixos, mas não adianta nada se você não tem um consumidor confiante com relação aos rumos da economia.
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G |E aí quando vem uma frase como “o país está quebrado e não há o que fazer”, não tem como ninguém se animar.
RM |Claro. “Não sei o que fazer, está quebrado.” Mas, meu amigo, se você não sabe, quem sabe então?
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G |Em um artigo publicado na revista Veja você diz que a pergunta que mais ouviu em 2020 foi: qual é o Brasil que sai da pandemia? Passados dez meses do começo do isolamento e ainda com muitos meses diante de nós, eu repito a pergunta.
RM |O brasileiro está cansado, mais cansado do que no início da pandemia. Além dos impactos na renda e no consumo, nós estamos sofrendo o impacto na saúde mental. Há um grau de irritabilidade e uma procura desesperada de desculpas para sair na rua. [Teremos] um brasileiro que sai da pandemia mais descrente de seus governantes, mas que chama para si a responsabilidade pela própria vida, com hábitos fortemente acelerados pelas novas tecnologias e que mudam o seu poder de escolha na hora de comprar e decidir onde vai deixar o seu dinheiro. Do ponto de vista do trabalho, encontraremos também um brasileiro que começa a se perguntar mais se tem que trabalhar no escritório ou não. E as empresas podem mudar de um escritório virtual para outro escritório virtual, onde as suas relações de amizades no trabalho não são tão firmes como no passado — é um desafio que ainda terá que ser melhor entendido. A boa notícia que eu consigo efetivamente tirar desse processo de pandemia, além da aceleração tecnológica, vem das aulas de história, para lembrar que depois da Peste Negra veio o Iluminismo, com avanços culturais, econômicos e civilizatórios.