Ler ficção nos torna mais empáticos? — Gama Revista
Qual o papel da literatura na sua vida?
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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

Ler ficção nos torna mais empáticos?

Como a identificação com personagens da literatura pode ter impacto nas interações da vida real

Flávia Mantovani 06 de Outubro de 2024

Ler ficção nos torna mais empáticos?

Flávia Mantovani 06 de Outubro de 2024
Ilustração de Isabela Durão

Como a identificação com personagens da literatura pode ter impacto nas interações da vida real

“Um leitor vive mil vidas antes de morrer. O homem que nunca lê vive apenas uma.” A citação, que aparece em um livro do escritor e roteirista americano George R. R. Martin, ficou famosa por sintetizar o que todo entusiasta de obras de ficção conhece bem: a incrível capacidade da literatura de nos transportar para dentro da história e da mente dos personagens.

A experiência da leitura permite que uma jovem de classe média que vive em uma metrópole brasileira, por exemplo, tenha a chance de se sentir na pele de um soldado que luta uma guerra na Ásia, de uma mulher escravizada no período colonial ou de um aristocrata britânico do século 18. Isso é possível graças à suspensão da descrença, uma espécie de pacto pelo qual o público aceita como verdadeira uma narrativa ficcional enquanto está em contato com a obra, para poder realmente apreciá-la.

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A pergunta é: será que esse poder proporcionado pela literatura, de se colocar no lugar do outro, tem reflexos na vida real? Ler ficção nos torna pessoas mais empáticas? A resposta não é simples, mas cientistas vêm tentando desvendá-la com experimentos que podem parecer surpreendentes diante do caráter subjetivo do assunto. Alguns deles usam máquinas de ressonância magnética para monitorar a atividade cerebral dos participantes no momento em que eles leem livros, enquanto outros aplicam testes padronizados de empatia em pessoas com grande bagagem de leitura e em outras que não têm esse hábito.

Uma das descobertas é que, além de ativar os mecanismos cerebrais relacionados ao processamento da linguagem, o ato de ler é capaz de acionar as mesmas regiões neurológicas acessadas para lidar com estímulos reais. Um estudo espanhol publicado no periódico “NeuroImage”, por exemplo, mostrou que, quando participantes liam palavras fortemente associadas a cheiros, como “canela” e “alho”, o córtex olfativo primário deles se ativava. O mesmo não acontecia quando ouviam palavras neutras.

Nos EUA, um experimento descobriu que metáforas envolvendo textura, como “O cantor tinha uma voz de veludo”, ativavam nos leitores o córtex sensorial, responsável por perceber a textura pelo toque — o que não acontecia quando eles ouviam frases literais, como “O cantor tem uma voz agradável”. Na França, outro estudo revelou que frases que descrevem movimento (como “Pablo chutou a bola”) estimulam o córtex motor, que coordena os movimentos do corpo. 

Outros estudos vêm se debruçando mais diretamente sobre as correlações entre a leitura de obras ficcionais e a capacidade de se colocar no lugar do outro. “Nossas pesquisas vêm mostrando que quanto mais ficção as pessoas leem, melhor elas se tornam em empatizar e entender os outros”, disse à Gama o canadense Keith Oatley, professor de psicologia cognitiva da Universidade de Toronto.

Em 2013, em uma pesquisa com cem universitários, Oatley e sua equipe descobriram que aqueles que eram leitores frequentes tinham mais habilidade para identificar estados mentais alheios com base apenas nos olhos delas. Para isso, aplicaram o Teste dos Olhares, um exame com fotos dos olhos de pessoas com diferentes expressões. Quanto maior era a leitura de ficção ao longo da vida — avaliada em um teste que mostra quantos autores a pessoa consegue reconhecer em uma lista de nomes —, melhor os participantes se saíram no Teste dos Olhares.

Outro autor canadense, Raymond Mar, analisou 86 estudos que usaram ressonância magnética e concluiu que há “uma sobreposição substancial” entre as redes cerebrais usadas para entender histórias e aquelas usadas para interagir com outros indivíduos — em particular, interações nas quais tentamos descobrir os pensamentos e sentimentos dos outros.

Simulador de voo

Segundo Oatley, que também é escritor de romances, a qualidade da narrativa afeta o nível de empatia que o livro gera no leitor — afinal, uma obra bem escrita envolve mais o leitor com o enredo e com os personagens.

O pesquisador costuma comparar a literatura a um simulador de voo, no qual o contato com as histórias funciona como um treinamento para habilidades sociais que são úteis para o ser humano. Nesse sentido, a ficção ainda traria a vantagem da variedade, por proporcionar interações com cenários e personagens que aquele leitor nunca encontraria ao vivo. Questionado se as obras de não ficção, como biografias, memórias e perfis jornalísticos, teriam o mesmo impacto, ele diz que o efeito pode ser semelhante, mas não há pesquisas suficientes para cravar isso.

Professora de teoria da literatura na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pesquisadora do papel da imaginação na literatura, Ligia Gonçalves Diniz vê diferenças na leitura dos dois tipos de obra. “Na não ficção, aquelas pessoas existem em um tempo e espaço muito localizados. Elas existem fora de você, você não consegue ocupar o lugar delas como você ocupa o lugar de um personagem. Um personagem inventado não existe para além daquelas páginas. Você precisa preencher muito mais informações para que ele ganhe vida.”

Em seu novo livro, “O Homem não Existe” (Zahar, 2024), ela propõe uma visão da leitura como “uma experiência suavíssima de alucinação”. “Por meio da imaginação, você empresta seu corpo para aqueles personagens e muitas vezes acaba se confundindo com eles”, explica. “O ficcional nos joga em um espaço de ler uma história de pessoas que não existem como se elas existissem.”

Diniz argumentou, em sua pesquisa de doutorado, que a imaginação permite ao leitor interagir com os personagens de uma história de forma semelhante às interações que mantém ao vivo. “Para a gente acompanhar um romance, precisa compreender o que aqueles personagens estão pensando e sentindo”, diz. “Mesmo que seja um alienígena invadindo a Terra, esse personagem foi criado por um ser humano, que projetou características humanas nele.”

Em sua opinião, as obras de autoficção, tendência na cena literária atual, exigem do leitor “dois exercícios concomitantes que podem ser muito interessantes”: criar um personagem na imaginação e saber que tem alguém de verdade no fundo. “A autoficção te obriga a pensar em questões factuais muito específicas e ao mesmo tempo é construída de forma que você tem que se colocar ali.”

Para Cauana Mestre, psicanalista com mestrado em literatura, uma das riquezas da ficção é “nos convidar a habitar outros mundos”. É o oposto da lógica das redes sociais, que entregam ao usuário apenas conteúdos com os quais ele concorda e podem ser um campo fértil para discursos de ódio. “Um grande problema contemporâneo é a gente só conseguir ter empatia ou criar um laço com o outro pela via identificatória”, diz Mestre. “A literatura nos convida a fazer um movimento que é muito mais interessante: o outro pode ser radicalmente diferente de mim, pode estar imerso numa narrativa política, religiosa ou social totalmente distinta e, ainda assim, ou justamente por causa disso, podemos estabelecer um laço.”

Segundo a especialista, Sigmund Freud, criador da Psicanálise, sempre usou obras literárias para falar das mazelas humanas, de conflitos internos e contradições. “O papel da literatura na transformação da nossa subjetividade é imenso. Nada como ler Hamlet para entender o que é o conflito com o próprio desejo.”

Jane Austen e Harry Potter

Alguns pesquisadores destacam obras ou autores específicos em seus estudos. Em um deles, uma especialista em literatura do século 18 se uniu a neurocientistas da Universidade de Stanford para analisar imagens cerebrais de voluntários que liam, com mais ou menos atenção, uma obra da escritora inglesa Jane Austen. Eles descobriram que a leitura mais atenta ativou regiões do cérebro alinhadas ao que os personagens estão sentindo e fazendo. Já uma leitura mais distraída estimulava outras áreas do cérebro.

Na Itália, uma pesquisa, publicada com o nome “A grande mágica de Harry Potter: reduzir o preconceito”, mostrou que, depois de ler obras do personagem, estudantes em idade escolar se tornaram mais empáticos em relação a imigrantes, refugiados e pessoas LGBT. A explicação, segundo os autores, é o paralelo que existe entre as injustiças da vida real e o mundo de hierarquias sociais rígidas da saga de fantasia, em que pessoas sem poderes mágicos, por exemplo, sofrem discriminação.

O tipo de obra também importa, segundo um estudo publicado em 2013 na revista “Science”. Os pesquisadores fizeram vários experimentos com participantes divididos em quatro grupos: um deles foi designado para ler ficção literária (aquela mais focada no desenvolvimento dos personagens); outro, ficção popular (mais focada no enredo); um terceiro, não ficção; o último não leu nada. Aqueles que leram obras de ficção tiveram melhora em testes de empatia, o que não aconteceu com os demais.

Isso significa que a ficção nos torna pessoas melhores? Não necessariamente, argumenta a professora Ligia Diniz. Nem sempre a empatia desenvolvida com a leitura vai se converter em boas ações. Essa habilidade, na verdade, pode até ser usada para manipular. “Ninguém se torna necessariamente melhor porque conhece mais pessoas, ficcionais ou não. Os políticos, por exemplo, interagem muito e são ótimos em entender o que o outro está sentindo, mas isso não os torna necessariamente melhores”, afirma. Ela também lembra a possibilidade de se criar empatia por personagens canalhas – o clássico “torcer pelo vilão”. “A empatia é um primeiro passo para a virtude, mas não é suficiente mudar alguma coisa no mundo”, diz.