O Brasil valoriza seus cientistas?
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Reportagem

O Brasil valoriza seus cientistas?

Com cortes no orçamento, salários baixos e falta de vagas e infraestrutura, cientistas e pesquisadores sofrem para avançar na profissão

Leonardo Neiva 28 de Abril de 2024

O Brasil valoriza seus cientistas?

Leonardo Neiva 28 de Abril de 2024
Isabela Durão

Com cortes no orçamento, salários baixos e falta de vagas e infraestrutura, cientistas e pesquisadores sofrem para avançar na profissão

Hoje, na visão de muitos pesquisadores e cientistas, o Brasil vive um dos seus piores momentos em termos de investimento e desenvolvimento científico. Em meio a uma greve de professores e técnicos de universidades e institutos federais por aumento salarial, o setor ainda enfrenta uma crise financeira após cortes sucessivos de orçamento ao longo da última década, em parte devido à crise econômica e à pandemia, mas também à falta de centralidade do tema junto ao poder público.

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O orçamento para o ensino superior e a ciência no Brasil encolheu assustadores R$ 117 bilhões nos últimos dez anos, segundo relatório do Observatório do Conhecimento. Após um longo período sem aumento de salário, o governo ofereceu em 2023 um reajuste de 9% aos servidores das instituições federais de ensino — que empalidece ao considerarmos que a inflação acumulou acima dos 30% desde o último reajuste salarial da categoria, em 2016.

“Tem muitas questões. A ausência de um crescimento continuado de vagas de pesquisa, um arrocho no financiamento das pesquisas no Brasil nos últimos anos e uma desvalorização salarial. Então o salário desvalorizou e é particularmente menos atraente no início da carreira”, aponta o médico e professor da UFRJ Olavo Amaral, ativista por uma ciência mais aberta e reprodutível.

Para completar o quadro, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) anunciou ainda em abril o programa Conhecimento Brasil, que promete R$ 1 bilhão em bolsas e incentivos financeiros para repatriar cerca de mil cientistas brasileiros que hoje vivem no exterior, na busca por reduzir a fuga de cérebros do país.

Embora traga à tona um conceito importante, a proposta vem sendo duramente criticada por pesquisadores e cientistas brasileiros, num momento em que a área carece de recursos no país. “Tem uma galera sem emprego aqui, e a gente está querendo trazer mais gente de fora”, aponta Amaral. “Só vamos perder quem está aqui e o saldo é negativo de qualquer forma.” Outro ponto é que o projeto prevê bolsas para pesquisadores por quatro ou cinco anos de atuação no país, sem uma perspectiva posterior.

Para entender melhor o momento que vive a ciência nacional, Gama consultou especialistas, professores e pesquisadores da área sobre as dificuldades enfrentadas pelos cientistas brasileiros hoje e os possíveis caminhos para uma melhora. Afinal, a ciência é vista e valorizada como carreira no Brasil?

Muito pesquisador x pouca vaga

Além da falta de recursos financeiros, materiais e de infraestrutura, que tornam complexa a prática da pesquisa, Amaral enxerga um desafio crucial na forma como a carreira vem se organizando no país. Em termos gerais, “não tem vaga para todo mundo”. Segundo o professor da UFRJ, o sistema científico no Brasil forma muito mais gente do que consegue absorver, com docentes orientando muitos doutorados ao mesmo tempo. “Não tem como triplicar ou quadruplicar o sistema nesse tempo”, afirma.

O problema seria fruto de uma lógica em que a carreira científica se confunde com a acadêmica — historicamente no Brasil, a indústria ainda absorve poucos cientistas e pesquisadores. Isso porque, de acordo com Amaral, a pesquisa é um ramo subdesenvolvido na indústria nacional, com pouca tradição de inovação, especialmente no setor privado.

“Num congresso em que participei nos EUA, vi que a menor fatia da pizza era de professores e pesquisadores em universidade”, exemplifica Cristina Caldas, bióloga e diretora do programa de ciência do Instituto Serrapilheira. “O resto atuava em empresas, em educação, política, comunicação e ONGs, um ambiente muito mais diverso.”

No Brasil, embora haja pesquisadores sendo contratados por empresas, o espectro de possibilidades está longe do ideal. Claro, há exceções notáveis, como a indústria petrolífera, o desenvolvimento agrícola e o setor aeronáutico, aponta Caldas, áreas consideradas estratégicas para a economia brasileira. “A gente precisaria de um repertório um pouco mais amplo de possibilidades de atuação profissional”, avalia a diretora.

Campos mais verdes

Num momento de expansão das universidades públicas e privadas no Brasil, entre as décadas de 1990 e 2000, segundo Amaral, as instituições conseguiram lidar melhor com esse contingente de profissionais. Só que o cenário mudou.

“O sistema universitário público deixou de se expandir com velocidade, porque não dá para expandir para sempre. Como as pós-graduações não encolheram e ainda formam muita gente, esses profissionais acabam dando com a cara na porta.” Tudo isso tem contribuído para um ambiente difícil para aqueles que se formam nas muitas áreas das ciências, deixando como única opção para muitos a atuação no exterior, aponta o acadêmico.

Há essa ideia de que temos que formar cada vez mais doutores, mas isso só pode acontecer enquanto existirem oportunidades

Segundo Amaral, outro problema é que, ao menos nas áreas biológicas e biomédicas em que atua, a universidade raramente dá suporte e formação específicos para o mercado. “A carreira acadêmica é extremamente linear, com pouquíssimas oportunidades de sair e fazer alguma coisa”, explica.

Assim, poucos professores têm vivências fora do ambiente acadêmico, o que ajudaria a perpetuar esse ciclo. Deixar o ambiente universitário pode constituir inclusive “suicídio acadêmico”, aponta o docente, já que cessa no período a produção de artigos científicos, essencial para a carreira.

Apesar da falta de dados concretos em nível nacional, o professor afirma que já há indícios de uma redução na busca por bolsas e pós-graduações na área. “Vejo a academia reclamando, só que o mercado é pouco atraente e não pode expandir para sempre”, conta Amaral, para quem a diminuição pode ser uma notícia positiva. “Há essa ideia de que temos que formar cada vez mais doutores, mas isso só pode acontecer enquanto existirem oportunidades.”

Outra questão que acaba impactando boa parte dos pesquisadores é a alta carga burocrática e administrativa inerente à ocupação, aponta Cristina Caldas, do Serrapilheira. “Sobra muita coisa no colo do cientista, ele é sobrecarregado com questões que tiram tempo de fazer ciência. Isso está no topo das reclamações”, declara. E, se o principal mercado para o pesquisador brasileiro é a universidade, muitas vezes como docente, como Amaral apontou, um mesmo profissional acaba ficando responsável pelo planejamento das aulas e aplicações e correções das avaliações.

Além da imprevisibilidade dos financiamentos, que raramente acontecem de forma contínua, Caldas explica que eles normalmente chegam de maneira engessada, inviabilizando adaptações ou mudanças de rota durante o processo de pesquisa. “É muito comum começar um projeto, e um experimento te fazer mudar de rota”, aponta a especialista. “Minha hipótese é que isso faz com que você desenvolva um projeto menos ousado e inovador, porque fica amarrado para fazer mudanças. Essa liberdade poderia ser melhor explorada no Brasil, confiando que os cientistas vão usar bem os recursos.”

Existe um afunilamento, um vazamento de duto nos níveis mais superiores, em que as mulheres vazam e os homens permanecem

Desigualdade

A carreira também tem se mostrado mais desafiadora para as mulheres, com uma série de barreiras especialmente nos cargos mais altos, na visão da pesquisadora em herpetologia e biogeografia Thaís Guedes, da Unicamp. Embora as mulheres sejam maioria entre novos mestres e doutores no Brasil, segundo o Currículo Lattes, a conversa é outra conforme essas profissionais galgam os degraus da carreira, alcançando cargos de liderança.

A falta de políticas para a questão da maternidade e seu impacto inevitável na produção científica das mulheres também vem sendo apontada como causa dessa desigualdade. Um parecer recente do CNPq sobre um pedido de bolsa para uma professora da USP de São Carlos citou a licença-maternidade como justificativa para sua baixa produção científica. Na ocasião, a bolsa foi negada.

“Existe um afunilamento, um vazamento de duto nos níveis mais superiores, em que as mulheres vazam e os homens permanecem”, aponta Guedes. “Na minha área, os departamentos de zoologia das principais instituições do país são dominados por homens, chega a atingir uma porcentagem acima dos 70%.”

Apesar da experiência em cursos no Brasil e no exterior, com passagem como pesquisadora pela Universidade de Gotemburgo, na Suécia, hoje ela se considera uma “jovem cientista desempregada”. “Tenho um laboratório na Unicamp, mas estou desempregada, uma prova de que ser uma mulher competente, com artigos científicos nas melhores revistas da área e vivência internacional não me garantiu um emprego até o momento”, declara Guedes.

Além disso, uma pesquisa de 2023 da Academia Brasileira de Ciência aponta que o perfil do pesquisador brasileiro ainda é majoritariamente branco (73,09%). Entre as respostas, apenas 20,02% se declararam pardos, 4,47% pretos e 0,19% indígenas.

“E não basta você ampliar a entrada”, afirma Katemari Rosa, professora e pesquisadora do Instituto de Física da UFBA, onde coordena o projeto “Contando nossa história”, iniciativa para mapear cientistas negras e negros no país. Segundo ela, mesmo as cotas universitárias — que têm ainda uma prioridade socioeconômica, e não racial —, além de bolsas e auxílios financeiros, não seriam suficientes para reduzir essa disparidade. “Não são suficientes se tenho dentro da disciplina uma cultura que exclui esses corpos, os coloca como inferiores intelectualmente e, portanto, incapazes de adquirir a plenitude do conhecimento científico.”

Ainda de acordo com a professora, essa estrutura interna excludente impede que pesquisadores negros se sintam à vontade e intelectualmente valorizados nesses espaços, reduzindo as possibilidades de pensar uma carreira na área. “Todos esses problemas têm sempre um impacto maior e mais significativo para as pessoas que não estão historicamente nas universidades: pessoas negras, indígenas, com deficiência, pessoas trans e travestis”, declara.

As ciências humanas

No campo das ciências humanas, o cenário é um pouco diferente. Segundo o professor de sociologia e ciência política da UERJ, Luiz Augusto Campos, as ciências sociais têm ampliado a presença de pós-graduações ao longo dos últimos 20 anos, expandindo também o número de vagas para profissionais.

Além disso, de acordo com o pesquisador, o mercado vem crescendo em múltiplas direções, com a diversificação de institutos de pesquisa de opinião pelo Brasil, assim como novas perspectivas dentro do terceiro setor e no campo da antropologia e etnografia, onde profissionais atuam em pontos como o reconhecimento de terras indígenas ou quilombolas.

“No âmbito das ciências humanas, há uma situação paradoxal”, afirma Campos. Apesar de uma gama considerável de possibilidades, o caminho não é tão bem definido para quem está começando. “Depende de bolsas de iniciação científica dentro e fora da universidade, que variam entre estados. Então o início não é transparente. Não tem um horizonte claro.”

Essa variedade e a dificuldade de conseguir vagas em universidades no exterior fazem com que a fuga de cérebros seja menor nas ciências humanas. “Ela fica mais acentuada só no final dos doutorados, com mais facilidade de migrar para um doutorado no exterior, porque já temos um pequeno grupo, inédito na história, que termina o curso sem emprego imediato”, avalia Campos. “Aí os convites para outros países se tornam bem mais atrativos.”

Um dos problemas que aponta no projeto de repatriação de pesquisadores anunciado pelo CNPq é que, embora não tenha restrições oficiais, a princípio ele parece privilegiar as ciências exatas e biológicas. “Existe uma grande preocupação com a compra de equipamentos, um problema muito sério nas ciências mais duras. Há uma perspectiva de grandes mentes que vão para fora e precisam ser reconquistadas, aí você dá equipamentos”, considera Campos.

Síndrome de vira-lata

Para a pesquisadora Thaís Guedes, o anúncio do CNPq pegou boa parte dos jovens cientistas desprevenidos. Apesar das poucas informações disponíveis sobre o programa, a zoóloga considera a mensagem que ele passa preocupante: os cientistas que atuam no Brasil hoje não servem.

“Entra na velha síndrome de vira-lata, de que o brasileiro que mora no país não sabe fazer ciência, mas o de fora sabe”, reforça. Segundo a pesquisadora, fica a impressão de que a gestão atual continua o processo de desrespeito e desvalorização da ciência brasileira. Pior ainda, ela diz, uma proposta como essa surgir quando temos uma das maiores taxas de desemprego de jovem doutores do mundo e em meio a uma greve de professores de instituições federais por melhores salários, mostrando que o tema não é prioridade.

O cientista brasileiro é conhecido no mundo como um dos melhores pesquisadores, porque estamos acostumados a fazer ciência com problemas estruturais, falta de financiamento

“O cientista brasileiro é conhecido no mundo como um dos melhores pesquisadores, porque estamos acostumados a fazer ciência matando um leão por dia, com problemas estruturais, falta de financiamento, em que a gente usa a criatividade para fazer ciência de ponta. Só que isso não é visto pelos gestores do Brasil”, desabafa.

Já Cristina Caldas, do Serrapilheira, considera o programa estratégico para identificar e dar condições para que os talentos brasileiros no exterior voltem a atuar no país. Mas ressalta a importância do projeto estar conectado a uma estratégia maior para tornar o sistema nacional de ciência e tecnologia mais atrativo, dinâmico e menos burocrático. “O risco é que as pessoas venham, vivam esse ambiente com muita coisa boa, mas também os entraves que dificultam o fazer ciência.”

Consultado por Gama, o CNPq reconhece que o anúncio do programa Conhecimento Brasil gerou desconforto por acontecer próximo do início da greve de professores de universidades e institutos federais. Porém, reforça que a divulgação estava prevista desde 2023, e que os eventos ocorrem de forma independente.

A instituição também informa que o projeto não é uma ação contínua, tem duração prevista de quatro anos e é financiado com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que não podem ser utilizados para aumento de salários e custeio operacional das universidades. Segundo o CNPq, o programa integra a Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, que deve investir cerca de R$ 10 bilhões em outros nove projetos voltados para a ciência nacional ainda em 2024.

De acordo com o Conselho, o programa não define áreas específicas de atuação e prevê como quesitos de avaliação a produtividade, o projeto de pesquisa e a instituição ou empresa onde será desenvolvido. A instituição também reconhece a relevância do aumento das oportunidades de emprego na academia e no setor empresarial. O Conhecimento Brasil seria, portanto, um mecanismo de efeito imediato dentro de uma política mais ampla de atração e fixação de pesquisadores.

O futuro da ciência

Pela visão do professor da UFRJ Olavo Amaral, a academia não tem estrutura para absorver o contingente de pesquisadores que se formam todos os anos, caso ele não se reduza. Ele também defende formações mais versáteis, com mais abertura e um contato mais próximo com o mercado, incluindo um foco na orientação de carreira nos cursos.

O poder público também precisa criar mais programas científicos voltados a resolver grandes problemas do país, como doenças ou a perda da biodiversidade, o que tornaria a carreira mais atrativa, segundo Caldas. “Quanto mais a gente conseguir mobilizar projetos e estratégias nacionais para resolver grandes problemas da sociedade, isso mobilizaria mais gente.”

Quanto mais a gente conseguir mobilizar projetos e estratégias nacionais para resolver grandes problemas da sociedade, isso mobilizaria mais gente

Num aceno para que os estudantes consigam se manter na universidade, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) liberou a partir de 2023 as instituições de ensino a permitir acumular bolsas de pós-graduação, cujo valor nem sempre é suficiente, a outras atividades remuneradas. Para a pesquisadora da Unicamp Thaís Guedes, a decisão integra uma autorreflexão e reestruturação necessárias às universidades brasileiras para que a carreira científica volte a ser atrativa tanto intelectual quanto financeiramente.

Até a fuga de cientistas para o exterior só pode ser combatida por uma cultura que valorize o pesquisador, trazendo condições de trabalho adequadas e estabilidade financeira, defende Guedes. De acordo com a pesquisadora, o poder público deve se aproximar dos jovens que representam a ciência brasileira hoje. “O governo precisa de uma comissão de jovens pesquisadores atuando na construção da ciência do futuro, porque nós somos essa ciência. Mas não temos voz”, conta.

Enquanto isso não acontece, o jeito é persistir nesse caminho, apesar das dificuldades. “Meu país investiu em mim por 20 anos para ser a pesquisadora que sou hoje, e não acho justo com minha trajetória procurar um plano B. O meu plano A é ser cientista. É isso que me motiva.”

Colaborou Emilly Gondim