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Depoimento"A adoção é um lugar de conflito: querer ser mãe e de fato se tornar mãe"
O relato da jornalista Jaqueline Amaral sobre o longo e burocrático processo de adoção, o primeiro encontro e a chegada do pequeno Otto, e como foi sentir-se mãe pela primeira vez
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“A adoção é um lugar de conflito: querer ser mãe e de fato se tornar mãe”
O relato da jornalista Jaqueline Amaral sobre o longo e burocrático processo de adoção, o primeiro encontro e a chegada do pequeno Otto, e como foi sentir-se mãe pela primeira vez
“Uns três meses antes da chegada do Otto [hoje com dois anos e nove meses], quando eu e o Eder, meu companheiro, ainda nem sabíamos se e quando ele chegaria, muitos passarinhos começaram a aparecer na nossa janela. Nunca tínhamos visto passarinhos ali antes. Perguntamos no prédio se mais algum apartamento estava passando pela mesma coisa. E nada – os passarinhos só apareceram na nossa janela. E fizeram visitas até o Otto chegar. Parece ridículo associar as duas coisas, mas foi algo muito intrigante, e na época me perguntei: será um sinal?
Estávamos há mais de dois anos na fila da adoção. Eu atendia absolutamente qualquer ligação no celular, porque sabia que qualquer uma delas poderia ser do Fórum de Adoção. Mas naquele mês de dezembro, em uma fase em que estava trabalhando muito e pensando pouco no processo, recebi uma ligação durante uma reunião. Virei o telefone de cabeça para baixo e continuei minha conversa com o cliente. Um tempo depois, vi muitas ligações do Eder. Quando retornei, preocupada, recebi a notícia: nosso filho tinha chegado, poderíamos conhecê-lo. Entrei em contato com a assistente social, e lembro das palavras dela até hoje: ‘Temos um bebê aqui. Ele tem quatro meses e meio. O nome dele é Rodrigo [nome dado pela juíza quando ele foi acolhido, e que foi mantido como segundo nome pelos pais adotivos]. Ele é saudável, lindo, maravilhoso’.
‘Você é meu bebê? Você é meu bebê?!’ era tudo que eu dizia
Poucos dias depois fomos conhecê-lo. Estava chovendo muito, ficamos encharcados. Então, ao chegarmos no abrigo, conversamos um pouco com a assistente social da casa e fomos nos secar. Voltando para a sala, a vi com o nosso filho no colo. Tomei um susto, não estava esperando aquilo. Ele estava com uma roupinha toda arrumada, de calça e camisa social, que colocaram especialmente para aquela situação. Minha reação foi de puro choque. ‘Você é meu bebê? Você é meu bebê?!’ era tudo que eu dizia. Aninhei ele comigo, continuamos conversando com a assistente social, e ele dormiu no meu colo.
No dia 15 de dezembro, quase uma semana depois do primeiro encontro, nosso filho chegou em casa. Foi muito especial. Meus sentimentos estavam mais acomodados, e eu entendia melhor o que estava acontecendo. Porque no abrigo, quando o conhecemos, foi muito louco chegar numa sala e me dizerem: ‘Aqui, este é seu filho’.
No processo de adoção, tão bege e burocrático, não houve espaço para sentirmos que teríamos um filho. Por mais que tenhamos ficado tanto tempo na fila, a ficha não cai ali. Com uma barriga, todo mês você vai ao médico, faz um ultrassom, escuta o coração bater, sente o bebê chutar. E assim elabora essa ideia de se tornar mãe. E na adoção, é só um monte de papelada. Não se sabe se o bebê vai chegar, quando vai chegar, com qual idade, menino ou menina. E se você começa a idealizar alguma coisa, automaticamente se força a voltar para a realidade e evita imaginar algo que pode não acontecer. É um lugar de conflito: querer ser mãe e de fato se tornar mãe. Por isso, a maternidade foi se construindo em cada troca, cada mamadeira, cada olho no olho. Uma vez um amigo me perguntou como era ser mãe. E respondi que eu sabia ser mãe do Otto Rodrigo.
Se começa a idealizar, automaticamente se força a voltar para a realidade e evita imaginar algo que pode não acontecer
Na primeira semana em casa, ele teve um episódio de terror noturno, que só depois fui entender o que era. Foi um choro descontrolado. Ele não acordava e só chorava, gritava. Era um choro diferente e desesperador. Não sabíamos o que fazer. Só agarrei meu filho e chorei junto. Lembro de pensar que não queria que ele sofresse, e que faria qualquer coisa para que ele parasse de sofrer. É o sentimento de que aquele ser pequeno precisa de você, do seu amor, carinho, conforto. E é querer ser esse conforto. Foi como se, nesse choro forte, o Otto me dissesse: ‘Olha, eu cheguei mesmo, e vou chorar. Você está pronta para cuidar de mim?’
Foi quando percebi que faria qualquer coisa por ele. Não é nem amor, com o Otto é uma outra coisa. Não dá para colocar em palavras. É uma conexão diferente. Ele ter sido adotado é muito relevante – é parte da história dele, uma parte anterior ao nosso encontro. E é algo que jamais vou negar. Mas a história dele é também a nossa. Foi uma forma não convencional de ter um filho, e de me ver mãe.”
(Depoimento a Manuela Stelzer)
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CAPA Qual o direito das mães?
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