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ReportagemDas turcas ao k-drama: a moda das novelas estrangeiras no Brasil
Impulsionadas por streamings e redes sociais, produções internacionais ganham espaço no Brasil e dividem cada vez mais a atenção dos noveleiros
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Das turcas ao k-drama: a moda das novelas estrangeiras no Brasil
Impulsionadas por streamings e redes sociais, produções internacionais ganham espaço no Brasil e dividem cada vez mais a atenção dos noveleiros
Se rodar pelo nicho noveleiro do TikTok, você provavelmente vai topar com as cenas de uma garotinha chorando de forma muito convincente, chamando pela mãe e repetindo frases como “você disse que nunca ia me abandonar” e “por favor, não vá embora de novo”. Embora pudessem ter saído de qualquer telenovela com o melodrama ligado nas alturas, a dublagem sobre a voz da pequena mostra que o folhetim certamente não foi feito no Brasil.
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Isso porque as imagens que viralizaram em 2023 são tiradas da telenovela turca “Mãe” (2016), disponível na Globoplay. A trama narra a história de uma jovem professora que, ao descobrir que uma de suas jovens alunas sofre maus-tratos da mãe e do padrasto, decide levá-la para começar uma nova vida em outro lugar. A pequena Melek, interpretada pela atriz mirim Beren Gökyıldız, acabou comovendo os usuários por sua doçura, sim, mas também pelas muitas cenas de sofrimento choroso.
Divulgação / Globoplay
Novela estrangeira de maior sucesso na história da Globoplay, “Mãe” chegou a figurar no catálogo do streaming à frente de troféus da casa como a elogiada “Vai na Fé” (2023) e “Travessia” (2022-2023), transmitida no horário de gala das 21h.
Se pode parecer estranho o sucesso estrondoso de uma telenovela estrangeira no Brasil, um dos mercados que mais produzem e consomem o gênero no mundo, esse está longe de ser um caso isolado. Não é à toa que streamings como a Globoplay, HBO Max, Prime Video e Netflix investem cada vez mais em produções vindas de outros países. No caso da Netflix, aliás, já faz tempo que um nicho novelesco específico vem se solidificando entre as pratas da casa: os populares dramas coreanos, ou k-dramas.
O que é dito nas redes determina não só o que as TVs vão oferecer, mas o gosto da população
Alguns dos maiores aliados dessa tendência são plataformas como TikTok e Kwai, rede que no Brasil faz sucesso com suas mininovelas amadoras. “O que é dito nas redes determina não só o que as TVs vão oferecer, mas o gosto da população”, aponta a pesquisadora de televisão e cultura pop Clarice Greco, professora de comunicação na Universidade Paulista.
São elas que ajudam a alimentar a nostalgia que tem direcionado remakes nacionais como “Pantanal” (2022) e agora “Renascer” (2024). Ao mesmo tempo, memes e cortes de cenas excessivamente dramáticas e até hilárias impulsionam revisitas a clássicos internacionais como “Marimar” (1994), “Maria do Bairro” (1995-1996) e “A Usurpadora” (1998).
Segundo Greco, ainda que os interesses de muitos usuários alimentem essas postagens, os streamings e emissoras hoje estão atentos a qualquer burburinho sobre essas produções, alimentando conversas e novas publicações, e usando-as também como base para tomar decisões importantes sobre o próprio catálogo. “Virou um sistema que se retroalimenta, porque as duas coisas andam de mãos dadas. A rede social ajuda a compor o comportamento das audiências”, afirma.
Divulgação / Globoplay
Como já admitiu o líder de Operações de Entretenimento do TikTok no Brasil, Ronaldo Marques, em entrevista à Veja, a rede tem utilizado estrategicamente hashtags como #Novelas e #TikTokMeFezAssistir, que reúnem bilhões de visualizações, para impulsionar recortes em vídeo de produtos audiovisuais, entre os quais as novelas se destacam. Portanto, se já tem costume de acompanhar conteúdos do tipo, é certo que vão pipocar ocasionalmente na sua rede “edits” de telenovelas turcas ou k-dramas que você já acompanha ou que vão te gerar interesse em acompanhar.
“É uma internacionalização facilitada pelas redes, de onde não tem como fugir”, explica Greco. “Elas viram palco desse tipo de transação cultural, uma via de publicidade, negócios e visibilidade que auxilia a formação desses nichos de audiência.”
Um novo bairro para Maria
O streaming e a possibilidade de assistir às telenovelas por demanda — e não mais necessariamente no modelo de um capítulo por dia — em qualquer dispositivo e lugar iniciou um processo de fragmentação do consumo, de acordo com o professor de comunicação da Universidade do Sul de Santa Catarina, Mario Bressan Jr. “A principal mudança é que [a telenovela] está passando de um fenômeno de massa para algo mais segmentado, numa cultura da convergência”, explica o acadêmico, autor do livro “Memória Teleafetiva” (Insular, 2019), sobre o efeito da nostalgia no público televisivo.
Para Bressan, embora o melodrama seja a base de todas elas, há uma linguagem diferenciada nas narrativas que vêm de fora e que contrastam com as tramas mais aceleradas e naturalistas de algumas produções brasileiras contemporâneas, em especial as da Globo.
Se narrativas como as mexicanas hoje estão longe de seu auge por aqui, a Globoplay não hesitou em recorrer à nostalgia para anunciar a chegada ao seu catálogo de alguns clássicos do excesso melodramático, como “A Usurpadora” e “Maria do Bairro” — a campanha de divulgação desta segunda lançou inclusive uma piscadela ao SBT, “antigo bairro” da estrela Thalia.
“O que são novelas mexicanas para o brasileiro? Novelas clássicas que perduraram por décadas de reprises no SBT”, considera o especialista. Impulsionada também pelas inúmeras cenas e memes que viralizaram nas redes, “A Usurpadora” chegou a permanecer cinco semanas consecutivas entre as tramas mais assistidas da plataforma, mais tarde ganhando espaço também no canal Viva.
Na era do streaming, foi a Netflix que deu o pontapé inicial na estratégia de investir em produções locais para depois distribui-las mundialmente em seu catálogo. Isso ajudou a ampliar o impacto de telenovelas com nacionalidades até então pouco difundidas por aqui, aponta a pesquisadora e professora da USP especializada no assunto, Maria Immacolata. O grande sucesso de alguns desses produtos, segundo ela, levou outros streamings a investirem nesses nichos.
Por isso até a Globo, onde antes só havia espaço para superproduções próprias, agora abriga novelas de origem turca e mexicana com sucesso considerável na Globoplay. “A Globo tem feito como todos os outros streamings, já que agora ela tem uma biblioteca onde todo mundo pode escolher o que e quando quer assistir”, afirma Immacolata, que também coordena o Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP.
A onda sul-coreana
Se engana quem pensa que foi a Netflix a única responsável por desembarcar no Brasil a febre dos k-dramas em meio à “Hallyu” — onda de exportação cultural e artística da Coreia. Bem antes da gigante do streaming, a comunidade de imigrantes coreanos e também os muitos interessados na cultura do país asiático já recorriam à pirataria, inclusive com grande esforço conjunto dos fãs para legendar algumas das produções mais aguardadas, aponta a doutora em comunicação pela Universidade Federal Fluminense, Daniela Mazur.
Pesquisadora da cultura pop coreana no Brasil, Mazur conta que houve, ao longo dos anos 2000, um forte investimento do governo sul-coreano para disseminar suas novelas em países da América Latina, inclusive com a doação de direitos para diversas emissoras. O problema é que o Brasil acabou ficando de fora dessa estratégia. Só mais recentemente canais como Rede Brasil, a extinta Loading TV e a RedeTV chegaram a exibir produções do gênero por aqui na TV aberta.
Divulgação / Netflix
O termo “dorama”, tão popular que recentemente foi compartilhado pela Academia Brasileira de Letras, ainda é usado por muita gente para se referir a séries e novelas de drama coreanas. Mas a expressão, que na realidade tem origem na pronúncia japonesa da palavra drama, vem sendo problematizada justamente por não servir como definição para todas as produções de drama da Ásia. “É um problema sério do orientalismo, uma tentativa de identificar e homogeneizar toda uma região do mundo que é extremamente plural, com culturas muito diferentes. Isso apaga culturas, comunidades e invisibiliza indústrias diferentes”, declara Mazur.
A indústria de dramas de TV sul-coreana é extremamente complexa, e a variedade de produções e gêneros é muito grande
Nas redes, k-dramas viralizam com frequência e de forma orgânica entre os fãs. É possível encontrar desde usuários repetindo com feições tristes a frase “gwenchana” (algo como “estou bem” em coreano), do drama “Bem-Vindos a Waikiki” (2018-2019), até cortes de cenas provocativas com atores suados e seminus, retirados da série “Cães de Caça” (2023).
Vistas no início aqui no Brasil como produções melosas e românticas voltadas exclusivamente para adolescentes, o interesse crescente em k-dramas também tem revelado sua pluralidade de temas e abordagens. Se a primeira produção citada cai no terreno da comédia romântica, “Cães de Caça” vai por um caminho bem distinto. Disponível na Netflix, o drama foca a violência e criminalidade urbana, com personagens frequentemente explorados por grandes corporações.
“A indústria de dramas de TV sul-coreana é extremamente complexa, e a variedade de produções e gêneros é muito grande”, reforça Mazur. “Há até alguns que nós, numa lógica brasileira e ocidental, não temos.” É o caso das produções do tipo “healing”, que acompanham uma jornada de cura e crescimento emocional de seus personagens centrais após passarem por um trauma considerável.
O próprio público dos k-dramas no Brasil parece estar se diversificando por meio desse acesso, ganhando força até numa demografia masculina e de idade mais avançada. “Ainda existe preconceito e racismo com esses conteúdos”, pontua a pesquisadora. “Quando comecei a consumir e pesquisar k-drama e k-pop, muitas pesssoas próximas riram de mim, acharam um absurdo eu gostar disso. Hoje alguns são grandes fãs.”
Divulgação / Netflix
Soft power
Uma bela jovem prometida em casamento a um pescador conhece um homem que se apaixona por ela à primeira vista. Mais tarde, ao lado de outros três amigos, ele reencontra Fatmagul no meio de uma estrada. Seus amigos então violentam a jovem, sem que o rapaz tenha coragem de fazer nada para impedi-los. A partir daí, “Fatmagul” (2010-2012), uma das primeiras e mais bem-sucedidas novelas turcas no Brasil, se torna um torvelinho de paixões e vinganças.
A produção é um exemplo das características mais clássicas e do forte melodrama que marcam as novelas dessa nacionalidade, de acordo com a pesquisadora Clarice Greco. Exibida originalmente na Band entre 2015 e 2016, “Fatmagul” tem um ponto de partida mais violento e controverso do que estamos acostumados, mas sua trama de fortes dilemas morais garantiu na época um público fiel e considerável. No ar no canal Viva, a produção também já passou a constar no catálogo da Globoplay.
Divulgação / Globoplay
“A novela turca tem dilemas morais muito clássicos e personagens maniqueístas: a mocinha e o vilão, o bem contra o mal”, explica Greco. O sucesso da novela, segundo a especialista, ajudou a gerar a segmentação de um público voltado a tramas mais conservadoras e tradicionais, mais ou menos na mesma época do estrondo causado por “Os Dez Mandamentos” (2015-2016) na Record.
A Globoplay hoje é um streaming nacional, mas a tendência é que acabe se tornando internacional também
Na visão da pesquisadora, ainda que dependa da adesão do público, o sucesso das tramas turcas não aconteceu por acaso. Introduzidas na América Latina numa importação negociada primeiro no Chile e só mais tarde por aqui, elas fazem parte de uma estratégia de “soft power” semelhante à da Coreia do Sul, na busca por uma influência política através da cultura e do entretenimento. Não à toa, os dramas da TV turca também aportaram na Ásia, Europa e América do Norte. “Não foram só pessoas postando cenas e viralizando. Existem instituições de telecomunicações interessadas em espalhar essa cultura”, resume Greco.
Para a pesquisadora da USP Maria Immacolata, apesar de concorrentes, as telenovelas estrangeiras hoje são complementares às nacionais. Segundo ela, com o tempo, a tendência pode levar a fenômenos semelhante ao que aconteceu em Portugal, onde o forte impacto das novelas brasileiras ajudou a transformar a produção do gênero por lá. Olhando ainda mais à frente, a especialista sugere que a onda mundial de remakes pode pegar também dentro do gênero, com o Brasil refazendo algumas tramas estrangeiras de sucesso. “É negociar a ideia, o conceito da telenovela, mas com uma produção nacional. Isso tem acontecido com as turcas no Chile”, exemplifica.
E, no fim das contas, até o inverso pode ocorrer, na opinião da especialista. Se o Brasil já exporta há muito tempo suas tramas para outros países, essa influência pode se tornar ainda mais notável com a produção de novelas direto para o streaming, como no caso da aguardada “Beleza Fatal”, marcada para estrear em 2024 na HBO Max. “A Globoplay hoje é um streaming nacional, mas a tendência é que acabe se tornando internacional também.”
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